Da série: Relatos da Linha de Frente do Cuidado (Dispatches from the Frontline of Care) da Revista Spectre
Tradução: Gabriel Dayoub
Revisão técnica: Rhaysa Ruas
John Wilson – 10 de maio de 2020
John Wilson é professor da rede de escolas públicas na cidade de Nova Iorque
Na semana do dia 16 de março, meu chefe tentou me matar. Não apenas a mim – há mais de 100 mil trabalhadores da educação na cidade de Nova Iorque, de professores, como eu, a assistentes, de orientadores escolares a secretários, de fonoaudiólogos a bibliotecários, etc. Na semana do 16 de março, nossos chefes do Departamento de Educação tentaram implementar uma política que nos mataria.
A semana anterior foi estranha para as escolas novaiorquinas. A pandemia de Covid-19 estava se espalhando pela cidade e por todo o país. Administradores escolares estavam tentando desesperadamente mostrar que eles tinham controle sobre a crise. Os trabalhadores receberam instruções sobre como lavar bem as mãos, como se o problema fosse esse desde o começo. Novas regras foram impostas aos monitores. Nós, professores, fomos estimulados a denunciar monitores que não limpavam regularmente as maçanetas das portas. Também nos disseram para levar álcool em gel e desinfetante para a sala de aula.
Essas medidas, que alternavam entre o paternalismo e a punição, serviam para nos distrair do fato óbvio: o distanciamento social é impossível na escola pública. Isso é ainda mais verdadeiro na cidade de Nova Iorque, onde, sob o reinado do governador Andrew Cuomo – que passou a última década cortando o orçamento da educação e pregando austeridade para todos, exceto para os ricos – o número de alunos por sala de aula aumentou dramaticamente. Como resultado do esforço fanático de Cuomo por tornar os repasses para as escolas públicas mais “magros” [1], nossas salas de aula estão superlotadas e a ideia de manter as pessoas a 2 metros de distância é ridícula.
Então, passamos a semana do 9 de março lavando as mãos freneticamente entre uma aula e outra e ouvindo sem parar a perguntas de estudantes com medo. A maioria questionava se as escolas iriam fechar.
“Eu não sei”, respondemos. “Espero que sim”. No meio da semana, a frequência nas aulas começou a cair. As crianças usavam cada vez mais o álcool em gel que nós fornecíamos.
Na mesma semana, trabalhadores de base da educação e moradores da cidade em geral começaram a circular um abaixo-assinado exigindo que o chefe do Departamento de Educação, Richard Carranza, fechasse as escolas para diminuir a disseminação da Covid-19 e proteger a saúde da população. Mais de 108 mil pessoas assinaram. Em 12 de março, ao ser questionado sobre o pedido, Carranza desprezou a preocupação dos signatários. Disse que manteria as escolas abertas “até que 108 mil epidemiologistas” reclamassem [2]. Então, como não havia 108 mil epidemiologistas, as escolas continuaram abertas enquanto o vírus se espalhava.
“Na semana do dia 16 de março, meu chefe tentou me matar. Não apenas a mim – há mais de 100 mil trabalhadores da educação na cidade de Nova Iorque, de professores, como eu, a assistentes, de orientadores escolares a secretários, de fonoaudiólogos a bibliotecários, etc.”
Na verdade, descobrimos que Carranza não apenas ignorou nosso abaixo-assinado, como também orientou explicitamente os administradores a manterem secretos os casos reportados do novo coronavírus [3]. Na minha escola, colegas com suspeita de infecção (a essa altura era praticamente impossível conseguir testar) eram comunicados pelos administradores que poderiam dividir com os colegas informações sobre sua condição de saúde, mas que a direção não notificaria ninguém sobre a possibilidade de exposição ao vírus no local de trabalho.
Eu acho que deveria mencionar aqui que tenho uma doença cardiovascular, o que me coloca no grupo de risco para a Covid-19. Tomo remédio todos os dias e estou bem. Mas fiquei apavorado quando na sexta-feira, 13 de março, Carranza e o prefeito Bill de Blasio insistiram em declarar que as escolas permaneceriam abertas. Quando o prefeito mudou de tom e anunciou o fechamento das unidades no dia 15, meu alívio foi grande.
Depois, li a declaração toda. Na verdade, as escolas não iriam fechar. Os alunos ficariam longe das escolas, que eram, como 108.000 cidadãos de Nova Iorque já haviam alertado ao Departamento de Educação, zonas de alto risco. Mas, enquanto os 1,1 milhão de estudantes permanecessem em casa, nós, trabalhadores, deveríamos voltar às escolas na semana do 16 de março para a “transição ao ensino a distância”.
O que aprendemos sobre nossos líderes eleitos – nesse caso, todos liberais do Partido Democrata – com a decisão de mandar mais de 100.000 trabalhadores de milhares de bairros por toda a cidade para prédios que eles mesmos apontaram como ameaça à saúde pública? O que eles pensam dos trabalhadores da educação se eles dizem que as escolas estão fechadas enquanto nós estamos dentro dos prédios, respirando e inalando o vírus? O que são os trabalhadores da educação para nossos superiores se eles consideram as escolas vazias quando estamos nelas? Nossos chefes tentaram, de fato, nos matar.
E por quê? No colégio em que eu leciono, nossos supervisores disseram que estávamos indo ao trabalho no meio de uma pandemia para ficarmos “prontos para a batalha”. O prefeito Bill de Blasio disse à imprensa que os professores estavam indo a prédios infectados com o coronavírus porque nós estávamos em “treinamento de guerra”. Na verdade, foi uma semana de treinamento em ferramentas como o Google Classroom e programas de teleconferência – tecnologias que são criadas justamente para que trabalhadores não precisem estar em um lugar determinado para utilizá-las.
Desde a semana do 16 de março, dezenas de trabalhadores da educação por toda a cidade foram oficialmente contabilizados nas mortes por Covid-19. E há certamente mais dezenas de vítimas não contabilizadas. Além disso, é impossível calcular o número total de familiares, amigos, vizinhos e outros que foram infectados por estudantes e trabalhadores. Tudo porque Carranza e seus administradores nos mandaram às escolas sem estudantes por uma semana.
“No colégio em que eu leciono, nossos supervisores disseram que estávamos indo ao trabalho no meio de uma pandemia para ficarmos “prontos para a batalha”. O prefeito De Blasio disse à imprensa que os professores estavam indo a prédios infectados com o coronavírus porque nós estávamos em “treinamento de guerra”.”
O que é o ensino a distância? Desde 23 de março, mais de um milhão de crianças por toda a cidade precisam passar horas olhando telas iluminadas que forçam seus corpos em posturas danosas à saúde, destruindo suas colunas e vistas. Durante todo o dia, é exigido que esses alunos completem uma série de tarefas apresentadas nessas telas e as enviem a professores como eu. O propósito central desse trabalho é, como o governador Andrew Cuomo deixou claro [4], manter as crianças em casa e ocupadas.
Nós, professores, também passamos os dias na frente dos computadores. Supervisores monitoram nossas atividades, garantindo nossa permanência pelo número de horas requeridas em frente à tela destruidora de colunas, criando tarefas para os estudantes. Durante todo o dia, eu recebo no meu e-mail do trabalho propagandas de empresas de tecnologia me oferecendo a oportunidade de comprar seus produtos de ensino remoto. No final da semana, envio um relatório das minhas atividades.
Nós fomos instruídos a registrar a presença dos alunos, formal e informalmente. Quando começaram as atividades a distância, nos disseram para fazer com que os alunos logassem durante o horário normal de aula e se declarassem “presentes”. Também nos mandaram registrar o nível de “engajamento significativo do estudante”, considerando isso como evidência da sua presença.
Estudantes que não entram nas nossas aulas no horário estipulado são considerados ausentes. Mães e pais que não forçam suas crianças a entrarem e se engajarem com os instrutores através de suas telas iluminadas podem ser classificados como “negligentes” [5]. Pais e mães negligentes podem ser considerados “inadequados”. A prefeitura pode mandar a polícia retirar as crianças da guarda dos pais “inadequados” para colocá-las em abrigos.
O ensino a distância representa um avanço radical no objetivo de privatizar a educação pública. Nós continuamos a planejar e entregar as aulas aos nossos alunos. Enquanto isso, a responsabilidade pela função mais importante da escola pública – cuidar das crianças das famílias pobres da classe trabalhadora para que seus pais possam sair e dar lucro aos capitalistas – foi transferida do Estado para a mais privada das esferas: o lar.
Políticos como o chefe do Departamento de Educação de Nova Iorque, Richard Carranza, consideraram a extração de trabalho não pago de milhões de pais e mães da cidade uma oportunidade para estreitar laços familiares. “Eu acho que os pais vão se divertir”, Carranza afirmou a um jornalista, “se eles tiverem a oportunidade de sentar junto com seus filhos enquanto eles estão fazendo alguma lição da escola” [6]. Pais e mães estafados – já tendo que encarar os impactos emocionais e econômicos da quarentena – não se mostraram tão entusiasmados ao serem colocados pela prefeitura praticamente como instrutores não pagos [7].
“O ensino a distância representa um avanço radical no objetivo de privatizar a educação pública. Nós continuamos a planejar e entregar as aulas aos nossos alunos. Enquanto isso, a responsabilidade pela função mais importante da escola pública – cuidar das crianças das famílias pobres da classe trabalhadora para que seus pais possam sair e dar lucro aos capitalistas – foi transferida do Estado para a mais privada das esferas: o lar.”
De sua parte, o governador Andrew Cuomo tem sido indiferente, como de costume, ao sofrimento causado pelo ensino a distância às famílias da classe trabalhadora de Nova Iorque. Na verdade, Cuomo declarou, em 5 de maio, que ele vê a pandemia como uma oportunidade para “reimaginar” a escola pública, de modo que o ensino remoto se transforme numa parte permanente do seu funcionamento. Para auxiliar esse processo, o governador anunciou sua parceria com Bill Gates, cujo impacto em escolas públicas na última década foi muito mais destrutivo do que qualquer coronavírus poderia sonhar ser. É difícil assistir Cuomo, o herói do momento do Partido Democrata, comemorando as mortes e o sofrimento como uma oportunidade para privatizar e destruir a educação pública, e não pensar no Secretário de Educação do governo Obama, Arne Duncan, que chamou o Furacão Katrina de “a melhor coisa que aconteceu para o sistema educacional de Nova Orleans”.
Se tomarmos o que aconteceu após o Furacão Katrina em Nova Orleans como um modelo do que os políticos liberais vão fazer com a educação em nossa cidade após a pandemia se não forem impedidos, devemos esperar o pacote completo de destruição da escola pública. Depois do furacão, o governo de Nova Orleans se juntou com “reformadores” ricos como Bill Gates para substituir seu sistema educacional por uma rede de escolas privatizadas e sem regulação.
Os resultados foram desastrosos: as escolas foram transformadas em campos de treinamento frenético para provas “sem desculpas”, onde estudantes negros e latinos são duramente disciplinados por um corpo docente majoritariamente branco. Professoras veteranas, muitas delas negras, foram expulsas (ou deixaram o sistema) e foram substituídas por educadoras inexperientes, com baixos salários e, em sua maioria, brancas. Dez anos depois do Katrina, os níveis de alfabetização e de aprendizado em matemática dos alunos de Nova Orleans caiu muito em relação às escolas públicas do resto do estado da Lousiana. Pais e mães, estudantes e trabalhadores da educação de Nova Iorque, já extremamente sobrecarregados com as demandas do ensino a distância, deveriam ficar aterrorizados ao ouvir as fantasias do governador Cuomo sobre um mundo pós-coronavírus em que o ensino a distância seja adotado como inovação educacional.
O descontentamento entre pais, mães e outros membros da comunidade escolar cria oportunidades de organização para os trabalhadores da educação. O chefe do Departamento de Educação da Cidade de Nova Iorque Richard Carranza, o prefeito Bill de Blasio e o governador Andrew Cuomo nos mantiveram nas escolas tempo demais porque não se importam com as nossas vidas. Eles não se importam com as vidas dos nossos estudantes, filhos da classe trabalhadora. Eles não se importam se esses estudantes levarem o vírus para as suas casas e definitivamente não se importam com as vidas das suas famílias. Tudo o que importa para nossos superiores é fazer os negócios funcionarem para que seus amigos possam ganhar dinheiro.
Nós precisamos dizer não! Em Nova Iorque, o Movimento dos Trabalhadores de Base da Educação (Movement of Rank and File Educators – MORE) [8] está se organizando para lutar contra uma volta ao trabalho prematura. Nós estamos construindo ações de solidariedade e apoiando greves de enfermeiras, de trabalhadores da Amazon e de outras categorias de serviços essenciais cujos patrões estão tentando implementar medidas que os matariam também.
Nós, professoras e professores da cidade e de todo o país, precisamos coordenar nossas iniciativas e formular nossas demandas para estarmos prontos para lutar no momento em que Cuomo, de Blasio e Corranza atacarem de novo.
[1] https://jacobinmag.com/2012/09/lean-production-whats-really-hurting-public-education
[7]https://www.nytimes.com/2020/04/27/nyregion/coronavirus-homeschooling-parents.html
[8] https://morecaucusnyc.org/
Nota dos tradutores: A série Dispatches from the Frontlines of Care recebe relatos de todo o mundo, em língua inglesa. No Brasil, a série Relatos da Linha de Frente, inspirada na iniciativa de Bhattacharya, recebe relatos em Português através do e-mail [email protected]
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