Estamos em meio a uma pandemia. Um ainda crescente número de mortes e um luto que é coletivo, frequentemente ocorrendo desumanização quando não se é lembrado que há histórias em cada estatística apresentada, e ninguém sabe até onde isso vai. O nosso problema é mais embaixo: essa pandemia escancara as narrativas mórbidas do nosso mundo, das periferias existentes mesmo em países ricos e imperialistas. Estados Unidos liderando o número de casos.
A gente tende a minimizar a possibilidade do absurdo, do caótico.
Estamos no século XXI, no começo da década de 20. É muito estranho ainda, para mim, como historiadora recém-formada, do alto dos meus 20 e poucos, olhar o tempo que se desenrola bem diante de meus olhos. Hobsbawm dizia que, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a galera ainda achava que não ia estourar. E foi. A gente tende a minimizar a possibilidade do absurdo, do caótico. A gente fica incrédulo quando ele vai se alastrando, mesmo que, todo dia, as pessoas nesse país, em outros países, no mundo, sejam brutalmente assassinadas. Fisicamente, culturalmente, por meios explícitos, escrotos, mas também pelos sutis, estes últimos tão escrotos quanto os primeiros (e de longo prazo).
As informações nos chegam diariamente e o grotesco absurdo se renova no prato do dia, vindo de várias frentes, sortido nos veículos, mas com intuito mesmo: eliminar e oprimir. No Brasil, a gente tinha o racismo maquiavelicamente sofisticado em que as pessoas gritavam e apontavam-no, sentiam-no, mas se dizia, no horrível pacto lançado da democracia racial: “não existe racismo no Brasil, somos miscigenados”. A Constituição de 88, cidadã. Ailton Krenak novinho falando em púlpito na Constituinte com a cara pintada, a tinta se espalhando por todo o rosto enquanto falava “os senhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena.”.
Os senhores e senhoras continuaram, sim, alheios a mais essas muitas e diárias agressões. Os senhores e senhoras aos quais Krenak se dirigia são os próprios mandantes dos crimes, e agora, ainda mais, em um governo que se reinventa no autoritarismo enquanto genocida, enquanto esses dias sai vídeo em rede nacional em que os seus dizem sobre aproveitar a pandemia para usurpar mais ainda a Amazônia e seus povos originários, onde se diz “odeio a palavra indígena, cigano, negro, somos um povo só”, em um discurso declaradamente fascista (não se odeia a “palavra indígena”, se odeia o povo). E não é o primeiro, nem o único discurso fascista. Vídeo esse liberado, em que Excelentíssimo filho da puta diz, cínico, “qual o ditador que quer armar sua população?”. Aquele que organiza sua milícia.
“Nossa bandeira nunca será vermelha”, vociferam eles. Sendo que ela já é e sempre foi. Tá manchada de sangue lá do início.
Clarificar que o que acontece é fascismo, e que esse fascismo, inclusive, tem novos símbolos, novas frentes, é de extrema importância agora. Arregalar bem os olhos, gritar: a gente vive em meio ao fascismo e é preciso combate-lo. A gente vive em meio ao racismo desde que surgiu neste país, com essa bandeira de merda como símbolo imposto. “Nossa bandeira nunca será vermelha,” vociferam eles. Sendo que ela já é e sempre foi. Tá manchada de sangue lá do início. Não se pode falar de fascismo sem que vejamos as facetas horríveis da intolerância arraigadas no nosso país colonial.
Lembro aqui que estudar História não é pra que ela não se repita tal e qual: ela se reinventa e a gente é atropelado pelo bonde do tempo o tempo todo. Tem que ficar esperto. Olhos, ouvidos, boca. Tudo. Olhar ao redor e para si. Estudar pra se entender como gente, como povo. Pra sentir a dor que é necessária, proveniente da constatação. Pra sentir raiva também, muita raiva. Pra que o passado não nos seja carregado nas costas sem que sequer saibamos e processemos, e pra que o futuro seja possível. Não nenhum futuro utópico (não sei se temos tempo!), tampouco pela ilusão nociva e capitalista do progresso, nem pelo retorno. O futuro que na verdade é o agora.
Relendo texto de François Hartog, o qual seguramente eu nada entendi na faculdade e agora um pouco mais entendo, o nosso presente parece eterno e nossas urgências, cada vez mais urgentes. Não nos esqueçamos: nós instalamos uma bomba-relógio no mundo e agora a gente sabe que provavelmente nos resta pouco. Mas ainda estamos aqui vivendo todos os dias. A maioria num processo de sobrevivência e luta que a gente (e com a gente, agora falo de mim) só tem conhecimento, mas não o viveu.
O que é que eu tenho pra dizer? Penso. Eu, privilegiada (pois branca, classe média), o que eu tenho pra dizer? Não nos enganemos nem fiquemos apenas na ideia de eterna culpa que não seja motivadora de mudanças. Se todos nós todos viemos e falamos de um lugar, nos construímos a partir dele, mas nosso papel nessa roda toda não é fixo. Pelo amor de deus, não estou mencionando a falácia da meritocracia. É saber do papel transformador (na mesma medida que destruidor) humano. Ir atrás de movimentos, associações, de gente que tá organizada, ativa nisso tudo. Ouvir ativamente, falar e entender o que nos cabe em cada coisa. Reconhecer nossas ignorâncias e disso fazer algo. Fortalecer os laços e identificar, reconhecer o outro e reconhecer-se no outro. Tomar partido a partir de nossas vozes e ações. É isso ou não acreditamos que de fato as coisas mudem. Na cara e na coragem mesmo. Não se tolera o intolerante, e o intolerante aqui se faz regra há muito tempo.
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