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BRASIL

Bolsonaro: novo discurso genocida e ausência de ajuda econômica ao povo

Marina Machado Gouvêa*
Reprodução

Bolsonaro faz pronunciamento no cercadinho após divulgação do vídeo da reunião ministerial

Em seu discurso, após a divulgação do vídeo da reunião ministerial utilizado por Sérgio Moro para atacar Jair Bolsonaro, o presidente brasileiro novamente defendeu o fim do isolamento social, na frente de uma pequena claque de apoiadores/as. O Brasil é hoje o segundo país com mais casos de COVID-19 no mundo e está com a capacidade do sistema de saúde em lotação máxima.

A base material na qual se apoia para esta defesa é a miséria da população brasileira, que em sua maioria não tem condições de permanecer em isolamento social. Esquece-se de dizer, porém, que seria papel do Governo Federal garantir programas de renda-mínima que permitissem às pessoas se protegerem. E que é porque o Governo não os garante, priorizando os lucros da grande-enorme burguesia e o pagamento da dívida pública, que a população brasileira é obrigada a se expor ao vírus para garantir um prato de comida na mesa.

Esquece-se de dizer, também, que é a recusa do Governo Federal em impor uma fila única de leitos e em organizar a produção para o aumento da capacidade do sistema de saúde, que faz com que, dentre as/os diagnosticadas/os com covid, a população negra e pobre esteja em maior proporção. E sequer tenha acesso ao diagnóstico ou mesmo à internação, nas periferias e comunidades do país.

O Governo se recusa a recorrer à emissão monetária, mais ainda à suspensão da dívida. Não zerou as filas de espera pelo recebimento de benefícios já previstos, como o Bolsa-Família ou o BPC. Não  liberou subsídios à conversão produtiva emergencial, que garantiria milhares de empregos realmente essenciais, bem como a produção dos insumos necessários ao enfrentamento da COVID. Não colocou todos os seus esforços na produção de EPI, material hospitalar e medicamentos (produção esta que, diga-se, geraria empregos), tampouco na expansão da quantidade de leitos existentes no país – há inclusive milhares de leitos federais inutilizados. Não criou uma lista unificada, que permita o acesso do conjunto da população ao sistema de saúde público e privado. Sequer a primeira parcela da mísera renda-mínima de 600 reais, aprovada há quase dois meses pelo Congresso, foi paga ainda ao conjunto da população que a solicitou (8 milhões de pessoas que tiveram o auxílio aprovado ainda não o receberam). E fração importante das/os solicitantes teve o auxílio negado.

E agora, depois de aprofundar por dois anos os efeitos da crise capitalista no Brasil – e sendo um dos defensores da EC95, que propõe o Teto de Gastos e destrói a garantia de serviços básicos à população (apenas o investimento no SUS caiu R$ 22,5 bi desde 2018) –, Bolsonaro vem dizer que é ele quem está na defesa da população pobre, de quem tem que sair às ruas para trabalhar e não pode praticar o isolamento social.

O capitão se arvora em sua (baixa e reformada) patente, dizendo que rompe diariamente o isolamento social apenas porque está na “linha de frente” da batalha e que, junto ao povo que precisa trabalhar para garantir seu próprio sustento. Como um bom comandante, “ele também tem medo de se expor, mas o faz”, porque esta seria a ação correta frente ao exército de pessoas que não podem deixar de trabalhar. Expande o conceito de “atividades essenciais” para qualquer forma de trabalho, de qualquer tipo, e declara o isolamento social como ação egoísta de privilegiadas/os.

Bolsonaro e o governo não oferecem ao povo nenhuma condição para praticar o isolamento social. Preferem que as pessoas morram de fome ou de covid, a deixar que as empresas que ainda compõem seu bloco de sustentação percam parcela expressiva de seus lucros.

Uma aposta política

Mais que isso, Bolsonaro prefere utilizar esta população como bucha de canhão em uma aposta política estilo tudo-ou-nada, na qual se sustenta no momento a frágil correlação que o mantém no governo.

O neofascismo de Jair Bolsonaro não é circunstancial. Foi peça necessária para a legitimação do estreitamento no bloco no poder que atacou a Constituição de 1988, possibilitou a aceleração da adequação do Brasil à reconfiguração da reprodução capitalista em escala mundial (com ênfase nas expropriações e na transformação das relações de trabalho e de reprodução da força de trabalho) e o realinhamento total de nosso país aos EUA, na disputa hegemônica com a China.

Neste contexto, o governo nunca teve nenhuma possibilidade de legitimar-se através de políticas de cunho desenvolvimentista – e precisa se aferrar à radicalização conservadora e à mentira descarada, para justificar como correta e necessária uma situação de efetiva piora no nível de vida. O suicida plano econômico liberal de Guedes e seu respaldo na referida reunião ministerial são relevante indicativo em consonância com as medidas que já vêm sendo tomadas. Sabendo do aprofundamento da crise que tem decorrido da pandemia (e que certamente seguirá decorrendo), Bolsonaro optou por fazer tudo que pode para piorar a situação material da população pobre, ao mesmo tempo em que se constrói como aquele que teria avisado e lutado contra a “crise econômica”.

O Brasil é o único país do mundo no qual o governo defende a criação de aglomerações humanas em meio ao coronavírus, o que contraria toda a pesquisa de toda a comunidade científica mundial até o momento. Não é de se estranhar, em um governo que tem o terraplanismo como um importante eixo de sustentação política.

A defesa da cloroquina e a subnotificação são peças fundamentais nesta aposta, que não é um arroubo tresloucado, mas parte de uma estratégia política que se configura como sua única opção. Os dados registrados no sistema federal Sivep-Gripe para internação por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) apontam que o número de infecções por covid é 8 a 12 vezes maior que o registrado. (Atenção: não se trata de um “achismo”, é uma conta sobre registro oficial). Isso, mesmo considerando que a população afetada nas comunidades e periferias sequer chega a ser registrada. O Brasil caminha a passos largos para se tornar o principal epicentro do novo coronavírus no mundo, o que pode vir a explicitar a improbidade administrativa da ordem presidencial ao exército para a produção de grandes quantidades de cloroquina, medicamento que estudos científicos hoje comprovam não apenas que não é efetivo para a maioria dos casos de covid, mas cujos efeitos colaterais podem acelerar ou mesmo causar a morte (o medo desta explicitação levou à queda de dois ministros da saúde em um mês).

Seja devido à cloroquina, devido às ligações que teimam em aparecer com o assassinato de Marielle, devido à escancarada corrupção do próprio governo federal e especialmente de seus filhos, ou devido à corrosão generalizada de sua legitimidade com o aumento das mortes por covid-19, Bolsonaro teme cair. Teme cair e teme ser preso.

A classe dominante não tem contudo condições nem de definir, nem de colocar um nome próprio. E sabe, assim como o sabe o Congresso, que, se cai Bolsonaro, terá que negociar com as Forças Armadas. O vice-presidente do Brasil é o General Hamilton Mourão, militar de fato, ao contrário do presidente. Arrisco-me a dizer, porém, que é mais confortável para as Forças Armadas manterem Bolsonaro e lotarem os cargos de primeiro escalão, que assumirem explicitamente o governo. O Exército tem sustentado Bolsonaro no poder, na medida em que este ainda tenha condições de se legitimar através de mentiras sistemáticas, da continuada radicalização à direita e da progressiva ameaça de autogolpe. Exemplo imediato é o teor da defesa de Bolsonaro feita hoje pelo general Heleno por motivo do encaminhamento aos advogados do presidente, pelo Ministro Celso de Mello, do pedido feito pelo PDT para entrega do celular de Bolsonaro à Justiça. Ainda mais eloquente é o fato de que Bolsonaro segue no governo. E atacar – mesmo que signifique milhares de mortes – é a maneira mais segura de evitar, ao menos por hora, cair.

Bolsonaro utilizou com habilidade a divulgação do vídeo para de novo colocar-se como vítima de um golpe em curso (orquestrado pela mídia, em sua opinião) e aprofundar o ambiente de autogolpe no qual tem apostado desde seu primeiro discurso genocida pelo fim do isolamento social. Convocou o povo em sua defesa, coisa que os governos anteriores – inclusive aquele que efetivamente sofreu um golpe de Estado – jamais fizeram. E conseguiu vitórias parciais.

Há que denunciar que, se quisesse realmente salvar a classe trabalhadora, Jair Bolsonaro defenderia renda-mínima efetiva, não o fim do isolamento. Ele é o Presidente. Que em tese teria poder para fazê-lo, ou pelo menos para defendê-lo. Defenderia a conversão produtiva emergencial aliada à expansão e unificação do sistema de saúde e às medidas econômicas emergenciais que possibilitassem o aumento do orçamento disponível.

Em vez disso, e para se manter onde está, defende a morte e o genocídio, disfarçadas de luta pela vida.

 

*Marina Machado Gouvêa é professora da ESS/UFRJ e diretora da Sociedade Brasileira de Economia Política