Fica cada dia mais evidente que a pandemia do coronavírus constitui a mais grave crise sanitária enfrentada pela humanidade desde que entre os anos de 1918 e 1920 a gripe espanhola infectou cerca de 500 milhões de pessoas (um quarto da população mundial na época), havendo ceifado algo entre 17 a 50 milhões de vidas humanas.
Nos últimos meses vimos a reação dos governos neofascistas existentes no mundo a essa mortal pandemia variar do mais completo e absurdo negacionismo do governo Bolsonaro, no Brasil, à imposição de quarentenas militarizadas, baseadas na criminalização das oposições, dos pobres e das minorias étnicas e religiosas, a exemplo do que fazem Victor Orban, na Hungria, Rodrigo Duterte, nas Filipinas e Narendra Modi, na India. Entre esses dois polos, temos ainda aqueles governos de ultradireita e neofascistas que iniciaram uma resposta negacionista à crise e foram obrigados pelas circunstâncias a mudarem suas politicas, a exemplo do que aconteceu com Tayip Erdogan, na Turquia, Boris Johnson, no Reino Unido e Donald Trump, nos Estados Unidos.
Apesar de haver mudado sua posição negacionista quando foi evidenciado que a crise sanitária era grave e que apenas negá-la levaria à completa perda das suas chances de reeleição, Trump já havia insuflado sua base de apoio nazifascista contra a quarentena e o isolamento social. Ao tempo em que continuou com sua verborragia midiática destinada a apontar a China como culpada externa pela pandemia e por seus efeitos sobre a economia dos Estados Unidos e sobre a vida dos americanos, e a indicar soluções milagrosas para o tratamento dos infectados, como o uso da cloroquina e a injeção venosa de detergente, o que já causou a morte de cerca de 50 pessoas que ingeriram água sanitária!
Os grupos nazistas, fascistas e supremacistas brancos viram na verborragia presidencial de Trump, como um insuflar de ânimos e como senha para a organização de atos de ódio e violência contra as instituições da democracia americana e contra o povo preto americano. Assim, nos últimos dias, esses grupos conseguiram mobilizar algumas centenas de apoiadores para a realização de protestos em pelo menos três diferentes estados americanos: Michigan, Winsconsin e Arizona. Todos eles marcados pela forte presença de milícias fascistas e supremacistas armadas.
No protesto que ocorreu no estado de Winsconsin, e que reuniu cerca de 1.500 pessoas em torno a uma guilhotina, a imprensa noticiou a presença de pelo menos uma dúzia de homens vestidos de camuflagem e armados com rifles de repetição e outras armas longas. No Arizona, pelo menos uma dezena de homens também armados de rifles e armas longas rodeava o protesto realizado em frente ao parlamento do estado. E, no estado de Michigan, no último 2 de maio, membros da autodenominada Milícia da Liberdade de Michigan, vestidos no mesmo estilo e portando o mesmo padrão de armas, não apenas participaram do protesto como ousaram ocupar a sede do parlamento do estado, em flagrante ato de ameaça à única parlamentar negra daquela casa, e aos demais parlamentares democratas que tem sustentado a imposição da quarentena e outras medidas de distanciamento social e de combate à pandemia do coronavírus.
Esses protestos com a presença de milícias fortemente armadas constituem um passo adiante na radicalização dos protestos mobilizados pelos grupos conservadores, fascistas e supremacistas contra as políticas adotadas por governos estaduais norte-americanos de combate à pandemia do coronavírus por meio de lockdowns, quarentenas e outras medidas. Protestos em meio aos quais se observa a forte presença da bandeira confederada, símbolo do sul escravagista e dos nazistas, fascistas e supremacistas brancos, e de cartazes e gritos em apoio a Trump e sua reeleição.
Por isso, no momento do mais violento desses protestos, que culminou na encenação de uma ocupação armada do parlamento do estado de Michigan, Trump correu ao Twitter para fazer coro à “Milícia da Liberdade” e publicou mensagem segundo a qual os manifestantes eram “pessoas muito boas” com as quais a governadora democrata do estado, Gretchen Whitmer, deveria “fazer um acordo” e atender suas reivindicações. Um pouco antes dos dedos apressados do presidente teclarem em apoio a seus bandos armados, a parlamentar Dayana Polehanki, desde o interior do plenário do parlamento estadual ocupado twitou: “Diretamente acima de mim, homens com rifles gritando para nós. Alguns dos nossos colegas que possuem coletes à prova de balas os usam. Nunca apreciei nossos sargentos de armas mais do que hoje.”
No entanto, os sargentos de armas que fazem a segurança do parlamento de Michigan não foram capazes de impedir a entrada dos sargentos de armas da “Milícia da Liberdade”. Por isso, como resposta ao ato de ameaça fascista e supremacista, a primeira deputada estadual preta eleita para o parlamento de Michigan, Sarah Anthony, classificou o acontecimento como um fracasso da segurança da casa em garantir segurança adequada a ela e a outros parlamentares contra o protesto fascista e supremacista. Razão pela qual, ao voltar à sede do parlamento, uma semana após a ocupação dos fascistas e supremacistas, estava escoltada por três cidadãos e eleitores pretos fortemente armados e dispostos a garantir a segurança da representante que colocaram em uma das cadeiras daquela casa parlamentar. Nas palavras da deputada: “Quando os sistemas tradicionais, sejam eles agentes da lei ou o que quer que seja, falham conosco, também temos a capacidade de cuidar de nós mesmo”.
Suas palavras tocam na questão chave da vida política norte-americana e que está sendo escancarada pelo atual contexto de crise econômica combinada com a crise sanitária: os sistemas tradicionais, agentes da lei ou de fora dela, têm historicamente “falhado” com os afro-americanos. Dessa “falha” histórica resulta a grave situação dos nossos dias, cuja dimensão nos é dada pelo relatório da Human Watch Rights publicado em 2018, segundo o qual, constituindo apenas 13% da população do país, os afro-americanos somam 37% de sua população carcerária (uma taxa seis vezes superior à taxa de brancos encarcerados), 16.7% dos desempregados (que já somam 14,7% da população economicamente ativa), têm 2,5 vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que um branco, e 22% das suas famílias vivem em situação de pobreza (taxa duas vezes maior do que a taxa relativa às famílias brancas).
Para não retornar, por falta de espaço neste artigo, aos exemplos das inúmeras atrocidades cometidas no processo do rapto dos ancestrais africanos, na travessia do atlântico, no longo período de escravização e durante o período de segregação racial, dentre as quais os estupros e linchamentos constituem a expressão mais horrenda, me limito a citar o caso mais recente do assassinato do jovem atleta Ahmaud Arbey, de 25 anos, por dois brancos supremacistas, um policial e seu filho, enquanto realizava sua corrida cotidiana, no bairro onde morava com seus pais, na cidade de Brunswicck, no estado da Geórgia. Mesmo havendo provas abundantes, inclusive em vídeo, dos dois haverem perseguido e matado o jovem que, desarmado, não pode esboçar defesa ou reação, foram deixados livres. Só foram presos no último 7 de maio, após o caso ganhar audiência nacional e gerar forte comoção e revolta, especialmente entre a comunidade afro-americana, e haver recebido a atenção de personalidades do mundo da política, como o candidato do Partido Democrata à Presidência, Joey Biden, e personalidades negras do mundo da cultura e dos esportes, a exemplo do astro da NBA LeBron James.
Tudo leva a crer que as desigualdades e violências que atingem o povo negro dos Estados Unidos tendem e estão a se aprofundar. Segundo dados oficiais, somente no mês de abril, cerca de 20,5 milhões de postos de trabalho foram fechados nos Estados Unidos, e a taxa de desemprego atingiu 14.7% da população, a mais alta desde que a taxa passou a ser registrada, e é possível que ela atinja a casa dos 20% no mês de junho. Uma grande parcela dos desempregados são pretos e pretas, e isso só vai piorar se o desemprego continuar crescendo.
Por todo o país, o coronavírus está vitimando desproporcionalmente o povo preto. A situação do estado de Michigan, onde a milícia fascista e suprematista ocupou o parlamento pelo fim da quarentena e do isolamento social, é exemplar do que acontece por todo o país. Lá, os afro-americanos constituem 14% da população e respondem por 40% dos mortos pelo coronavírus.
Não é exagero, portanto, traçar o prognóstico de que as tensões sócio raciais na casa de Tio Sam tendem e estão a se aprofundar e generalizar rapidamente, em consequência do rastro de destruição impresso na vida dos negros e negras, dos hispânicos e outras minorias raciais, e até dos trabalhadores brancos menos especializados, pela adoção das políticas neoliberais desde a posse de Ronald Reagan na Presidência dos estados Unidos, em 1981, e aprofundadas em escala exponencial por efeito da atual combinação entre a mais profunda crise econômica da história do capitalismo e a crise sanitária provocada pelo Covi-19. Também não é exagerado dizer que em meio a tudo isso, restará evidente a incapacidade das lideranças políticas ligadas à burguesia e à pequena-burguesia afro-americana de protegerem a vida e os direitos sociais e humanos do seu povo, mantendo o compromisso que historicamente as vincula à direção do Partido Democrata.
Por fim, não parece exagero dizer, que um novo levante do povo negro se faz urgente e necessário e precisará vir com fúria e organização superiores ao que se viu nos levantes de Fergusson, em setembro de 2014, em resposta ao assassinato do jovem preto Michael Brown, de 18 anos, por um policial.
No atual contexto de acirramento dos conflitos sócio raciais e de ascensão das forças sociais do fascismo e da supremacia branca, além do aparato repressivo do estado mais poderoso do mundo, um novo levante do povo afro-americano confrontar-se-á com as milícias armadas confederadas. Para tanto, o radicalismo preto afro-americano precisará desenvolver a maturidade e a capacidade de se colocar na vanguarda da construção da mais ampla unidade de todos os grupos sociais de explorados e oprimidos da América, também castigados pelo desemprego, pela pobreza e pelo coronavírus, apesar de menos castigados do que o povo preto.
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