Da série: Relatos da Linha de Frente do Cuidado (Dispatches from the Frontline of Care), da Revista Spectre
Tradução: Márcio Musse. Revisão técnica: Rhaysa Ruas
Tre Kwon – 15 de abril
Tre Kwon é enfermeira baseada na cidade de Nova York, EUA, militante da Associação dos Enfermeiros do Estado de Nova York (NYSNA) e uma editora da Left Voice
Nota da Editora: Estamos orgulhosos de ter um forte foco analítico na reprodução social na [Revista] Spectre. A pandemia atual está provando tragicamente o que os teóricos da reprodução social enfatizaram há muito tempo: que o trabalho necessário para sustentar a vida e a sociedade, como enfermagem, ensino, limpeza – em outras palavras, trabalho de cuidado – é essencial para qualquer sociedade funcionar. De fato, é o trabalho de cuidado que torna todos os outros trabalhos possíveis.
Ter o foco sob a reprodução social, no entanto, não é simplesmente uma posição filosófica. É simultaneamente um projeto político. É por isso que, durante esse período de crise, queremos que nossos leitores ouçam as vozes dos trabalhadores lutando na linha de frente do cuidado. O trabalho de enfermeiros, profissionais de limpeza, professores e trabalhadores rurais, entre outros, está nos sustentando nessa crise. Nossa série Dispatches from the Frontlines of Care (Relatos da Linha de Frente do Cuidado) foi projetada para nos lembrar de que são os corretores da bolsa e os executivos das empresas que são descartáveis, e queremos um mundo onde eles permaneçam assim.
Se você tem uma história para nós, escreva para a editora desta série, Tithi Bhattacharya em [email protected].
Nota dos tradutores: A série Dispatches from the Frontlines of Care recebe relatos de todo o mundo, em língua inglesa. No Brasil, a série Relatos da Linha de Frente, inspirada na iniciativa de Bhattacharya, recebe relatos em Português através do e-mail [email protected].
“Sou uma enfermeira que trabalha na UTI de um dos maiores e mais ricos sistemas de saúde da cidade de Nova York. Sou uma delegada sindical de base e membro da Associação de Enfermeiras do Estado de Nova York (NYSNA). Também sou uma socialista revolucionária e faço parte do conselho editorial da publicação Left Voice.
No ano passado, eu estava profundamente envolvida em uma luta unificada de várias localidades com meu sindicato, que levou 10.000 enfermeiros à beira de uma greve nos hospitais Montefiore, New York Presbyterian, e Mount Sinai. A potente luta por quantidades seguras de profissionais se desenvolveu nas mãos de uma direção burocrática que respondeu às demandas dos membros por greve com atraso e paralisia. Quando os comitês de negociação aprovaram um acordo provisório que deixou de fora nossa principal demanda por índices razoáveis de enfermeiro-por-paciente, ajudei a organizar uma oposição generalizada (“voto não”) pela base no hospital em que trabalho, o qual consolidou um núcleo de delegados sindicais militantes dedicados à democratização do sindicato e ao avanço das lutas no “chão de fábrica”. Apesar dos protestos dos membros, os dirigentes do sindicato conseguiram aprovar um acordo e encerrar a ação de greve. Agora é difícil não insistir no fato de que uma greve poderia nos preparar melhor para esse desastre, com mais enfermeiros já integrados em nossas unidades quando a crise chegou.
Logo após a assinatura do contrato, fiquei grávida. Eu dei à luz em janeiro e planejei tirar uma licença por vários meses para me adaptar à maternidade e aproveitar os primeiros momentos do meu bebê. No entanto, no início de março, ficou rapidamente claro que o vírus Covid-19 não pouparia o centro do imperialismo. Depois de refletir um pouco, comecei a pegar em turnos na UTI e a levar minha filha de 11 semanas para a creche da cidade que funcionava para os trabalhadores de emergência da linha de frente. Minha UTI de 14 leitos foi expandida para comportar o dobro do número de pacientes. Hoje é uma unidade inteiramente dedicada a Covid-19, com salas de pressão negativa novinhas em folha e motores com isolamento de vibração em todas as enfermarias.
O Estados Unidos é agora o país com mais mortes por coronavírus e ainda não atingimos o pico. A resposta do governo federal foi desastrosa. Após várias semanas de negacionismo, a Casa Branca mudou sua retórica, mas nunca lançou uma resposta eficaz coordenada nacionalmente. A escassez de testes impediu a rápida contenção da transmissão comunitária. Ficou a cargo dos governos estaduais a decisão sobre implementar restrições à atividade. Equipamentos de proteção e respiradores supostamente coordenados pelo governo federal foram canalizados para fornecedores particulares que, fiéis à sua natureza especulativa, estão vendendo máscaras N95 e suprimentos que salvam vidas a quem pagar mais.
No epicentro da pandemia, o governador milionário Andrew Cuomo emergiu como uma espécie de campeão do povo. Em briefings de notícias amplamente transmitidos, ele é exibido no comando, em linha direta com Trump. Ele age repreendendo e apelando para os nova-iorquinos com slogans vazios como “Faça sua parte” e “Precisamos nos unir”, enquanto enche a bola dos trabalhadores da linha de frente. A crise que está se desenrolando em Nova York não pode ser divorciada das políticas neoliberais a serviço dos lucros que o governo de Cuomo tem implementado desde que assumiu o cargo em 2011. Mesmo no meio de uma crise de saúde pública que atinge principalmente os pobres, imigrantes, trabalhadores e negros, Cuomo insiste em um corte de US$ 2,5 bilhões no Medicaid [programa de saúde social para famílias e indivíduos de baixa renda] no estado de Nova York; ele insiste em avançar com o corte quando isso significa renunciar a US$ 6,7 bilhões em aporte do governo federal.
De volta à UTI, imediatamente senti o impacto que a pandemia estava tomando sobre as enfermeiras.
“Estamos sendo exauridas pela constante colocação e retirada de equipamentos de proteção, pelos apelos desesperadas de membros da família que não podem visitar os pacientes, pela escassez de equipamentos de monitoramento e equipe treinada, pelo racionamento severo dos respiradores, pelos corpos empacotados sendo enviados aos necrotérios em caminhões frigoríficos.”
Em voz baixa, transmitimos notícias de colegas de trabalho doentes em casa com febre e falta de ar, aqueles que se tornaram, eles próprios, pacientes de UTI. A ansiedade em contrair o vírus e transmiti-lo a nossos pais idosos, filhos e parceiros bate fundo sobre todos nós.
A disseminação viral descontroladamente associada à escassez de suprimentos e pessoal elevou as condições de trabalho que já eram inseguras a novos patamares. Dias depois de passar um único turno protegido de forma inadequada, qualquer paramédico, enfermeiro, médico ou assistente pode acabar com insuficiência respiratória em um respirador. Todos nós ouvimos falar de Kious Kelly, uma enfermeira de 48 anos que morreu ao sair do trabalho quando nos foi negado o mínimo de equipamento de proteção individual (EPI). Todos ouvimos falar das dezenas de trabalhadores do MTA [Metropolitan Transportation Authority, empresa pública responsável pelo transporte urbano na cidade de Nova Iorque] que estão sucumbindo ao Covid-19.
Há uma raiva crescente e uma vontade de revidar. Trabalhadores que antes temiam retaliações agora estão conversando com a imprensa, protestando e saindo de seus empregos, exigindo EPIs para reduzir as chances de contrair ou morrer de Covid-19. A “guerra contra o vírus” é de fato uma batalha campal dentro de uma guerra de classes de longa data: as classes dirigentes e os trabalhadores.
No sentido oposto, a direção sindical no meu hospital pintou a administração em palavras brilhantes, negociando a portas fechadas e sem qualquer participação ou intervenção significativa dos membros. Em um de seus pronunciamentos diários, completamente desafinado com o momento e a mudança de consciência, o presidente da NYSNA do hospital, Robin Krinsky, escreveu: “Agora é a hora do trabalho, da administração, do sindicato, dos não sindicalizados, dos trabalhadores por conta própria, dos trabalhadores não empregados, e todos os demais para trabalharem juntos para que tenhamos o melhor resultado nessa situação sem precedentes. Estamos trabalhando juntos para resolver os problemas o mais rápido possível. Comunicação é a chave. Estou pedindo aos meus colegas enfermeiros que encaminhem qualquer problema para seus supervisores ou gerentes “. De maneira contrária, ela culpou as enfermeiras que foram forçadas a improvisar manualmente equipamentos de proteção em face à escassez de EPIs: “Você não está sozinho nessa luta, mas não podemos ajudar se não soubermos os problemas que estão ocorrendo. Foi a falta de comunicação em todos os níveis que levou os enfermeiros a usar sacolas plásticas, e não a falta de suprimentos”. Então aí está. Segundo os chefes do sindicato, o relacionamento inerentemente antagônico entre patrões e trabalhadores poderia de fato ser resolvido por “comunicação” e “hierarquia”.
Em nível estadual, vimos representantes sindicais (labor officials) emitindo suas declarações de rotina e pedindo cartas a funcionários do governo. Infelizmente, os sindicatos não impulsionaram nenhuma mobilização municipal ou estadual frente à monumental crise de saúde e segurança dos trabalhadores. Independentemente disso, os enfermeiros começaram a organizar ações por toda a cidade. Na maioria das vezes, isso foi feito por indivíduos e pequenos grupos com os recursos e disposição em fazê-lo – com ou sem o apoio formal do sindicato.
No meu hospital, eu me reuni com o núcleo militante de delegados sindicais e enfermeiras comuns que organizaram o “voto não” no ano passado. Formamos a Força-Tarefa dos Trabalhadores da Linha de Frente COVID-19 no Mount Sinai, que inclui profissionais de saúde de todas as áreas e especializações. Baseamos nossas decisões e poder na hierarquia organizada democraticamente, com a convicção de que quem cuida diretamente dos pacientes deve decidir quando as condições são seguras ou não.
“Organização, ação no local de trabalho e equipamentos básicos de proteção não são um privilégio. São necessidades, se queremos ser capazes de conter o Covid-19 e salvar a vida de enfermeiras e pacientes.”
Elaboramos uma declaração de intenções que apresentava nossas exigências mais prementes por EPI, equipe, testes e quarentena. Atribuímos responsabilidade às empresas e executivos do hospital, aos governos estadual e federal. Embora esperássemos a ira deles, ainda nos aproximamos do comitê executivo do sindicato e defendemos seu apoio. O comitê executivo chamou a proposta de ações públicas de “elitista”, dizendo: “Como ficaria [quando] tivermos uma das melhores políticas de EPI em Nova York agora?” Mas organização, ação no local de trabalho e equipamentos básicos de proteção não são um privilégio. São necessidades, se queremos ser capazes de conter o Covid-19 e salvar a vida de enfermeiras e pacientes.
A pandemia mudou os parâmetros do que é possível e de como lutamos. As demandas para cancelar aluguéis, congelar demissões e libertar todos os presos de presídios e centros de detenção ganharam força. O Medicare for All [Auxílio Saúde para todos] tornou-se uma conclusão imediata para muitos, e medidas ainda mais radicais, como a nacionalização do sistema de saúde e indústrias relacionadas, são vistas como cada vez mais populares e necessárias.
O burocratismo do sindicato, na maioria das vezes, parece estar parado no tempo, reproduzindo as mesmas táticas antigas e ineficazes de antes. Isso é difícil de entender se não analisarmos o caráter social da burocracia sindical e os incentivos que eles têm para se comportar dessa maneira. É errado considerar essas traições como corrupção individual. Os funcionários do sindicato, em particular os dos escalões mais altos, formam uma camada distinta de pessoas cujas realidades materiais e relacionamento com os patrões diferem acentuadamente das realidades dos trabalhadores que eles fingem representar. Eles não estão sujeitos ao despotismo da exploração capitalista em seu trabalho no dia a dia; eles geralmente não estão na merda e, mesmo quando estão, ainda extraem muito prestígio e privilégio de suas posições quanto podem.
Além disso, os dirigentes sindicais geralmente se identificam e desenvolvem relacionamentos amigáveis com a gerência. Alguns burocratas sindicais nem se importam em esconder isso e reproduzem publicamente a narrativa insidiosa da cooperação entre trabalhadores e a patronal. Seu papel como representantes dos trabalhadores é válido na medida em que servem como interlocutores do outro lado da mesa com os patrões. Além disso, os dirigentes sindicais costumam ter um apego especial a procedimentos formais e canais institucionais – que levam os conflitos para longe do chão “de fábrica” (e fora do alcance de decisão para suas bases) – porque é isso que legitima seu papel como intermediários entre trabalho e a patronal.
Esse tipo de sindicalismo se encaixa no apoio tradicional ao Partido Democrata e no lobby de representantes estaduais e federais – na esperança de que este ano, finalmente, uma pequena concessão caia nas mãos do trabalho. Portanto, eles são menos propensos a lutar decisivamente por taxas seguras de pessoal, uma demanda que está no centro de nossas condições exaustivas de trabalho e um fator importante que contribuiu para o problema atual dos hospitais de Nova York.
O antídoto para essa estratégia infeliz é a construção de um poder real da base dos trabalhadores. Podemos forçar a democracia em nossos sindicatos e organização do local de trabalho; podemos avançar em uma orientação de luta de classes em que os patrões são reconhecidos como nossos inimigos, onde a ação coletiva é priorizada ao invés de queixas e reclamações, e as decisões mais importantes são determinadas democraticamente. Um passo inicial, embora não sem importância, nessa direção é construir uma rede de delegados sindicais de base eleitos democraticamente em todas as unidades de negociação. Os delegados sindicais ou os organismos de representantes combativos devem ter relevância em todas as medidas que a direção local decidir e até definir o rumo quando o comitê executivo do sindicato não responder adequadamente em tempo hábil.
Esse tipo de “sindicalismo para a luta de classes” é necessariamente complementado com uma crítica implacável aos partidos pró-capitalistas e seus políticos. Chegou a hora dos dirigentes sindicais abandonarem seu apoio infrutífero ao governador Cuomo. Em um momento em que nenhuma das partes que se alternam no poder pode oferecer uma alternativa à catástrofe sanitária, social, econômica e climática, é hora dos sindicatos dos EUA investirem seus esforços na construção de um partido da classe trabalhadora que lute pelo socialismo.
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