Por Gabriel Lecznieski Kanaan*
Tensões entre frações burguesas e unidade do bloco no poder do Estado capitalista
Para introduzir o debate sobre frações burguesas, é importante lembrar, para começo de conversa, que diferentes capitalistas querem, no fim das contas, a valorização do valor. Como disse Virgínia Fontes, “apesar das distinções entre capitais investidos em setores específicos e de seus interesses particulares, as suas frações constituem apenas elos do movimento do capital tomado como um todo”.
As lutas entre frações capitalistas afloram no combate entre elas pela disputa do controle do Estado. No Estado capitalista, o poder não é exercido descentralizadamente a partir de diversos pólos de poder divergentes de um Estado fragmentado e fatiado em ministérios e secretarias. O Estado burguês não fatia seu poder entre grupos específicos do capital, entregando para cada fração um ministério ou secretaria para que executem projetos que beneficiem seus interesses particulares. Ao contrário, o poder é exercido por uma frente unitária que reúne as diferentes frações da classe dominante que formam o “bloco no poder”, o qual é hegemonizado por uma fração que dirige as demais. O Estado é uma relação social, sendo local de intensas lutas internas, e suas instâncias maiores, assim como a burocracia, têm como função ao mesmo tempo produzir a amoldagem adequada à reprodução das condições gerais da produção, no que consolidam as frações hegemônicas; assegurar o seu aspecto “nacional” (não evidenciando os interesses particulares a que respondem); e, finalmente, conter, formar e adequar as reivindicações das massas populares. Os governos remetem a momentos específicos dessas relações de forças que compõem o Estado.
As tensões entre diferentes frações burguesas dentro do bloco no poder podem se dar entre capitais de diferentes funções (capital dinheiro, capital produtivo, capital mercantil), de diferentes escalas de atuação (pequenas, médias, grandes e mega empresas) e de diferentes territórios (regionais, nacionais, continentais). A organização dos capitalistas em frações, no entanto, não é um reflexo mecânico das condições materiais de cada capitalista em relação à sua função, sua escala e seu território. A classe capitalista e suas frações “se formam” no processo histórico, onde suas funções, suas escalas e seus territórios são experiências que influenciam a formação política de frações, assim como laços familiares e relações pessoais, correntes de pensamento, partidos formais ou resultantes de entidades de agregação de interesses (aparelhos privados de hegemonia como “think tanks”), e diversos tipos de condições conjunturais.
Quer dizer, as frações da classe capitalista, como explica Virgínia Fontes, embora tenham suas raízes no processo produtivo (na sua função, na sua escala e no seu território), não são fixas, porque elementos conjunturais também influenciam a formação de frações. O critério para definir uma fração como força social não pode, já dizia Poulantzas em Poder político e classes sociais (1968) ser fornecido exclusivamente pelo nível econômico. Como pontuou Fontes, ele seguia os ensinamentos de Gramsci, já que para o marxista italiano, a “a agregação de interesses e de visões de mundo pode ocorrer através de quartéis generais que estão aparentemente fora da institucionalidade, mas vertebram os verdadeiros ‘partidos’”. As frações, portanto, não são reflexos diretos do processo produtivo: elas se formam no processo histórico das lutas de classes, enraizadas nas condições econômicas.
As burguesias estão solidamente implantadas no Estado brasileiro, com suas entidades organizativas presentes em muitas das agências públicas. O golpe de 2016 resultou ao mesmo tempo numa unificação feroz – assegurada unicamente pela retirada de direitos dos trabalhadores e destinação dos recursos públicos aos setores empresariais – e numa nova fragmentação, pela devastação que promoveu nos partidos clássicos dessas mesmas burguesias, a começar pelo PSDB de Aécio Neves e Geraldo Alckmin e pelas disputas, agora intestinas e mais ocultas, sobre o fundo público.
Os núcleos do bloco no poder no governo Bolsonaro
Lastreados por essa lente, investiguemos as frações que compõem o governo Bolsonaro. Eduardo Costa Pinto identifica que o bloco no poder com o governo Bolsonaro é formado por 4 núcleos:
1) o núcleo familiar-ideológico (Jair Bolsonaro e seus filhos sob influências do guru Olavo de Carvalho e de pastores) que indicaram diretamente os Ministros da Educação (Ricardo Vélez Rodríguez), das Relações Exteriores (Ernesto Araújo) e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; e 2) o núcleo militar (que tem nos generais Augusto Heleno, Carlos Alberto dos Santos Cruz, Edson Leal Pujol e Hamilton Mourão seus principais comandantes), influenciado pelas ideias (econômicas e ideológicas) do General Avellar Coutinho; 3) o núcleo econômico liberalizante conduzido pelo Ministro da Economia Paulo Guedes; e 4) o núcleo judiciário lavajatista (mais especificamente a “República de Curitiba” comandado pelo Ministro da Justiça Sergio Moro.
Concordando com essa divisão (que, como discutiremos, foi remodelada com a saída de Moro), acrescentamos que o “núcleo judiciário-lavajatista”, definido por Eduardo e pelo GAMA (Grupo de Análise Marxista Aplicada, coletivo do qual é integrante) como um “movimento que não aponta um projeto político claro (…) apresenta o combate a corrupção como fim em si mesmo (…) e comporta-se como uma espécie de partido da classe média alta brasileira”, tem, como apontamos na parte anterior, estreitas relações com o capital-imperialismo estadunidense. Portanto, acreditamos que esse núcleo, apesar de aparentar uma crença messiânica no combate à corrupção, enxerga o Departamento de Estado dos EUA como aliado e acredita poder aproveitar essa relação para benefício próprio.
Na análise de Virgínia Fontes, o que Pinto identifica como os núcleos “familiar-ideológico” e “econômico-liberalizante” representam a cabeça bifronte do governo, que tem de um lado uma face ultra-liberal e do outro uma face proto-fascista. A face ultra-liberal comanda o Superministério da Economia, ao qual se agrega o Ministério da Agricultura (dirigido pela latifundiária do agronegócio Tereza Cristina), e sua boca traduz diretamente os interesses empresariais da cabeça. Esse setor, que condensa os interesses econômicos do empresariado, conta com maior grau de autonomia, e tem travado polêmicas (sempre internas, embora por vezes ecoadas pelos meios de comunicação da burguesia) com Bolsonaro acerca da sua condução da política econômica internacional, em torno, por exemplo, das relações com os países árabes (atuando para bloquear o deslocamento da Embaixada em Israel para Jerusalém) e com a China (abafando as acusações do núcleo familiar-ideológico sobre a China ter criado o vírus).
A face proto-fascista comanda o Ministério das Relações Exteriores (dirigido pelo olavista Ernesto Araújo), da Educação (antes dirigido pelo olavista Vélez, substituído pelo também olavista Weintraub em abril de 2019), do Meio Ambiente (dirigido por Salles) e da Família (dirigido por Damares). Embora essa agrupação de ministérios tenha suas “eminências pardas” (poderosos assessores que atuam nos bastidores), como Olavo de Carvalho e alguns generais, ela é organizada a partir da estrita obediência doutrinária ao “capitão” (e seu grupo familiar). Essa conjugação liberal-conservadora evidencia como a expansão do capitalismo contemporâneo vem requentando cada vez mais traços nazi-fascistas. E, quando visualizada a partir de uma mirada global, chama atenção para como essa conjugação está sendo construída internacionalmente, já que Bolsonaro e a trupe de ultraliberais, lavajatistas e os assumidamente proto-fascistas estão estabelecendo conexões com as faces correspondentes das burguesias latino-americanas, estadunidenses e europeias. Como observou Virgínia Fontes, “subalternos frente aos Estados Unidos de Donald Trump e seus ideólogos, pretendem exercer papel de direção doutrinária frente a outros países da América Latina e até mesmo da Europa”.
Para sustentar tal cabeça bifronte e desproporcionalmente gigantesca, o governo escalou para a retaguarda dois times estreitamente alinhados destinados ao emprego da violência, formados pela pata da repressão e pela pata da comunicação. Essas patas formam o “Ministério da Violência”, que tem seu polo no Superministério da “Justiça” dirigido por Sérgio Moro, que centraliza o comando também sobre as polícias, o que é justificado pelo combate à corrupção e à criminalidade. A ele, se agregam o Ministério da Defesa (dirigido por Fernando Azevedo, indicado por Augusto Heleno, general da tradição ultra-direitista e golpista das Forças Armadas que tem referência em Sylvio Frota) e a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom, dirigida por Fabio Wajngarten). A extremamente agressiva pata da comunicação tem como um dos seus maiores dedos o “gabinete do ódio”, que coordena as redes sociais da presidência sob o comando de Carlos Bolsonaro, que, junto com a Secom e respaldados pelos setores da imprensa burguesa alinhados à Bolsonaro (Record, Band, SBT, RedeTV), avança sobre o controle do setor da imprensa não-alinhado, tendo como alvo aparente a Globo, mas já realizando filmes revisionistas históricos e alterando o conteúdo dos livros didáticos.
A missão das patas é dirigir o aparato repressivo do Estado e incitar o uso da violência para-estatal, insuflando a atuação da base social fundamental do bolsonarismo: as milícias, parcela do baixo escalão do exército e das polícias. Com a saída de Moro, a parcela lavajatista da pata repressora foi amputada, e como discutiremos em “Os militares e a pata amputada lavajatista”, uma nova prótese está sendo costurada no seu lugar, composta por elementos milicianos e fundamentalistas evangélicos. Ou seja, a violência para-estatal se mescla ainda mais com o aparato repressivo restrito do Estado.
*Doutorando em História na UFF, membro do GTO (Grupo de Trabalhos e Orientação, coordenado pela professora Virgínia Fontes.
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