Pular para o conteúdo
TEORIA

Karl Marx: relações familiares e problemas financeiros (1836-1841)

Este texto é o quarto de uma série que aborda a vida de Karl Marx

Wesley Carvalho

Como nos dois textos anteriores, neste nos concentraremos no período em que Karl cursava Direito na universidade de Berlim, quando tinha por volta de 20 anos de idade.

O plano de se tornar advogado, incentivado pelo pai, era um alto investimento financeiro que chegou a consumir cerca de metade da renda familiar. Nesta época, tal carreira poderia significar a necessidade de um jovem ser sustentado pela família por uns dez anos, até que finalmente alcançasse um posto de trabalho remunerado. Heinrich Marx preocupava-se para que seu filho se situasse profissionalmente e não se perdesse em tantos poemas ou estudos, aos quais Karl já nesta época se dedicava de forma febril. Houve uma séria frustração na família quando, depois de ter terminado o curso de Direito, ficou clara a rejeição de Karl em exercer advocacia e em ocupar um emprego que lhe foi oferecido no serviço estatal [1].

Uma das preocupações do pai de Marx era que o filho estivesse à altura do comprometimento de sua noiva, Jenny von Westphalen. A moça, amiga e muito apegada a Heinrich, contraíra um noivado com Karl que era bem mais jovem, não tinha um emprego sólido e vivia em uma cidade distante[2]. Provavelmente por isso, Heinrich entendia que Jenny fazia um sacrifício pelo noivado e disse a seu filho “Ai de você se um dia, em toda sua vida, se esquecer disso!”.

Por alguns relatos, tem-se que Jenny era de uma personalidade resoluta. Quando tinha 17 anos, surpreendeu sua família ao encerrar um noivado de meses com um tenente. Em algum momento na década de 1830, suas opiniões políticas, fomentadas também por suas leituras, a colocaram em atrito com o conservador Ferdinando, seu meio-irmão mais velho, e encontros de família com ele chegaram inclusive a ser evitados. Jenny teve com Karl uma correspondência intensa onde, além das demonstrações de amor, também discutiam suas inseguranças e ciúmes. É razoavelmente claro que quando se encontraram no verão de 1841, transgrediram o tabu e tiveram uma relação sexual anterior ao casamento. Ao longo do noivado, iniciado em 1835 ou 1836, enquanto Marx estava em uma cidade grande e com uma vida cultural forte (apesar da censura), Jenny passava seus dias em Tréveris, que descreveu como “lugar da aflição, o velho ninho de clérigos com sua humanidade em miniatura”. Em uma carta enviada à sua mãe, Jenny mostra naturalidade ao mencionar pensadores contemporâneos. Nesta época, também se dedicou a estudar grego. Certa feita, pediu uma curiosa recomendação de livro a seu noivo: queria ler um que não fosse fácil demais a ponto de ela entender tudo, mas que não fosse também muito difícil[3].

O fato de Jenny von Westphalen ter sido filha de um barão leva a que muitos pensem que Karl estava se relacionando com alguém de uma camada social muito diferente da sua. Entretanto, o título de nobreza da família de Jenny era baixo e recente. Na década de 1830, a renda de sua casa era inclusive menor que a da família de Karl. Os Marx eram muito próximos à culta e festiva casa dos Westphalen, e Karl não teve apenas contato epistolar com sua família mas também com a de sua noiva. O pai de Jenny, Ludwig, desde a adolescência era uma referência afetiva para Marx, além de uma influência intelectual. O irmão de Jenny, Edgar, amigo de infância de Karl, era também seu companheiro em Berlim, com quem chegou inclusive a dividir, além de apartamento, um sentimento anti-aristocrata.

Neste momento em que era um universitário em Berlim, Karl recebeu desaprovação de seu pai por não escrever com frequência, ignorando a aflição da mãe e o carinho dos irmãos. Somado a uma outra queixa posterior de sua mãe neste mesmo sentido, biógrafos acentuaram que Marx não tinha interesse real por sua família. Gareth Jones diz continuamente que Karl era “auto-centrado”, indicando assim que tivesse uma personalidade insensível e apenas dedicada aos estudos e amizades de Berlim. Esta caracterização de Marx não encontra apoio quando se observa o que se seguiu. O autor ignora que as reclamações do pai geraram notório desconforto em Karl (como é evidenciado em troca de cartas da família Westphalen) e a partir de então foram continuamente enviadas cartas e poemas à família Marx e à Jenny. Em um esforço de detratação maior que o de Jones, outros biógrafos anotaram que Marx não compareceu ao funeral de seu pai por ter “coisas mais importantes a fazer” (Francis Wheen). Não perceberam estes a distância entre Tréveris (cidade em que residia sua família) e Berlim: entre a notícia do falecimento do pai chegar a Marx e ele retornar à sua casa não passariam menos de doze dias, sendo impossível estar presente ao enterro. Ao longo de toda a vida, Karl levaria em seu bolso uma foto de Heinrich, que seria depositada por Engels em seu túmulo[4].

Houve um agravamento da situação financeira da família Marx quando Heinrich faleceu em 1838 e a renda passou a ser juros de alguns títulos e de empréstimos, além de rendimentos de uma propriedade agrícola e de um vinhedo. Isto talvez soe muito, mas era menos da metade do salário de seu pai. No tribunal universitário, Marx sofreu várias queixas de credores. Com o dinheiro mais curto, esteve constantemente em dívidas e reestabelecendo acordos para quitá-las. Entre os débitos, o principal era em relação a roupas. Não se trata de uma vaidade de Karl, mas de uma demanda social de sua época, a ponto de o jovem deixar de comparecer a uma reunião justamente por não possuir o traje adequado[5].

Enquanto esteve em Berlim, entre 1836 e 1841, Marx estudou e escreveu muito sobre Direito. Foi profícuo também nas artes, se aventurando em poemas, novela e peça. Cogitou ser crítico de teatro e se aprofundou no estudo da teologia e na crítica política[6]. Livrou-se de suas obrigações militares quando um médico identificou que tinha “pulmões fracos” e que expelia sangue[7]. Seu plano era se tornar professor universitário e passou a se dedicar a uma tese de doutorado em Filosofia que apresentaria ainda em 1841.

 

LEIA MAIS

PARTE 1 – Karl Marx em Tréveris (1818-1835) 

PARTE 2 – Karl Marx estudante de Direito (1835-1841)

PARTE 3 – Karl Marx: ateísmo e política na Prússia (1836-1841)

 

NOTAS

[1]          HEINRICH, Michael. Karl Marx  e o nascimento da sociedade moderna. Biografia e desenvolvimento de sua obra.Vol.1 (1818-1841). Tradução de Claudio Cardinali. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 244. SPERBER, Jonathan. Karl Marx. A nineteenth century life. Londres: Liveright Publishing, 2013. p. 41; JONES, Gareth. Karl Marx: greatness and illusion. Cambridge: Belknap Press, 2016. pp. 47;61;87.

[2]          Ver nosso texto anterior, Karl Marx estudante de Direito (1836-1841)

[3]          GABRIEL, Mary. Amor e Capital.A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Zahar, 2013 (caps 1, 2 e 3). JONES, Gareth. Karl Marx.. pp. 50;52;59; 85-90. HEINRICH, Michael. Karl Marx ….p. 170-3; 269-72. SEGRILLO, Angelo. Karl Marx. Uma biografia dialética. Curitiba: Editora Appris, 2019. p. 49. SPERBER, Jonathan. Karl Marx…p.44

[4]          JONES, Gareth Stedman. Karl Marx.. pp. 55-61; HEINRICH, Michael. Karl Marx ….pp 157-62; 241-5. GABRIEL, Mary. Amor e Capital…(cap.2).

[5]          HEINRICH, Michael. Karl Marx…op.cit. 275-7.

[6]          Ver nossos textos anteriores, “Karl Marx estudante de Direito (1835-1841)” e “Karl Marx: ateísmo e política na Prússia (1836-1841)”

[7]            JONES, Gareth Stedman. Karl Marx…p.35

Marcado como:
Vida de Marx