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BRASIL

“Eu te entendo”: os sentidos históricos da homenagem de Lima Duarte a Flávio Migliaccio

Romulo Mattos, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução

O vídeo em que Lima Duarte se despede do também ator Flávio Migliaccio contém fortes palavras do ponto de vista político, mas também emociona pela expressiva humanidade. Longe de julgar o suicídio – um tabu em nossa sociedade – cometido pelo seu antigo colega de palco, Lima Duarte compreendeu essa atitude extremada no contexto brasileiro atual, de avanço do fascismo, de ataque às instituições da democracia, de ódio à ciência e ao conhecimento e de tentativa de interdição da cultura. “Eu te entendo”, diz o artista de 90 anos, a Flávio Migliaccio, que certamente continua vivo em sua memória. Esse último tinha deixado uma mensagem com um lamento segundo qual a humanidade teria dado “errado”.

No depoimento gravado em vídeo, Lima Duarte lembra as incertezas dos artistas na segunda metade dos anos 1960, quando a ditadura perseguia aqueles que haviam se engajado nas lutas nacionalistas do período imediatamente anterior. E mencionou o dia em que foi levado para prestar depoimento ao notório torturador Fleury, que nessa época tinha Tuma como auxiliar no DOPS, tendo conseguido se despedir dos filhos, às pressas, com a promessa de que voltaria. Esse é o mote para que Lima Duarte compare a conjuntura atual à do golpe de Estado que levou os militares ao centro do poder e também à do AI-5, quando os fardados deram vazão a sua utopia repressiva: “Agora, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68”, lamentou o ator. Consciente, ele certamente conseguiu enxergar a dilatada presença de militares junto ao governo, os elogios abertos e em tom de provocação à ditadura por tais agentes históricos, a constante interferência dos milicos do poder, o tratamento do torturador Brilhante Ustra nos termos de um herói nacional pelo presidente da República, o retorno da censura, entre outros fatos.

Utilizando-se novamente da comparação histórica para entender o presente, Lima Duarte lembrou o seu período de formação artística, na virada da década de 1950 para a de 1960, no Teatro de Arena, e isso tem o seu porquê: essa companhia teatral se tornou porta-voz das aspirações vanguardistas do período, a casa do autor brasileiro, em que até conceitos marxistas eram discutidos num importante exercício de apreciação sobre arte e engajamento. Em seu vídeo, o ator relembra a luta contra o imperialismo que empolgou a sua geração e que contaminou a produção artística do pré-1964. Sem dispor do acesso aos jornais da grande imprensa, e de outros meios massivos, como o rádio, esses atores (como também músicos, cineastas e artistas plásticos) se aproximaram da cultura para promover a sua ação política. Por meio de caravanas que atravessam o país, artistas e intelectuais exibiam peças teatrais e divulgavam músicas que debatiam o subdesenvolvimento, as reformas de base, a revolução, o imperialismo. Imersos na ideologia nacional-popular, acreditavam na ideia que poderiam por meio da arte despertar da classe trabalhadora, entendida como a chave da libertação nacional, em conexão com o CPC da UNE.

A primeira metade dos anos 1960 foi um período em que o Brasil começava a ficar “irreconhecivelmente inteligente”, segundo Roberto Schwarz. A formação artística, mas também cidadã, de Lima Duarte remonta a esse contexto ao qual o referido crítico se reporta, distinguido por um debate cultural e ideológico extremamente promissor. Por mais que, ao longo das décadas, o ator tenha se afastado da luta da esquerda, como tantos outros, quem viveu esse período histórico raro, em que a crença no futuro se transformava em esperança coletiva, estranha o tempo presente, pontuado pelo pensamento de despolitização da política, como se essa atividade pertencesse apenas ao domínio dos políticos de fato (exemplificado na figura do comentarista esportivo Caio Ribeiro, que condenou o depoimento de Raí contra o presidente da República, sob o argumento de que jogadores deveriam apenas falar sobre futebol). Lima Duarte também deve se decepcionar com o comportamento de alheamento da maioria dos artistas aos grandes temas contemporâneos e com a dessolidarização de intelectuais em relação à classe trabalhadora. Seria muito difícil, senão impossível, um ator de teatro que atuou sob o impacto da tarefa histórica de conscientizar sobre a pobreza e miséria reinante no Brasil, por meio do teatro, desfazer-se dessa memória, que sabemos, é também identidade.

Antes de encerrar o vídeo com uma frase de Brecht que aponta para a responsabilidade coletiva diante do avanço dos ideais fascistas no país (“Os que lavam as mãos o fazem numa bacia de sangue”), Lima Duarte menciona a triste “devastação dos velhos”, em uma referência à ausência de uma política séria de combate à pandemia da Covid 19 pelo governo federal, que parece ter franqueado o acesso do vírus à população brasileira, em um misto de fundamentalismo neoliberal e ideologia eugenista. Realmente, devemos imaginar as voltas que a cabeça de um homem de 90 anos pode dar ao tomar conhecimento de que o ministro da Saúde já propôs escolha entre um jovem e um idoso “no final da vida”, no ano passado, antes mesmo da pandemia. Para que não fiquem dúvidas, aí vão as palavras de Nelson Teich:

“Então, sei lá, eu tenho uma pessoa que é mais idosa, que tem uma doença crônica avançada, ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que eu vou gastar para investir num adolescente que está com um problema. O mesmo dinheiro que eu vou investir é igual. Só que essa pessoa é um adolescente que vai ter a vida inteira pela frente e o outro é uma pessoa idosa que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha?”

Esse depoimento demostra a preponderância da lógica do mercado sobre a medicina, assunto caro ao Brasil, sendo o próprio ministro um notório representante do bloco privatista na área da Saúde. Mas um determinado sentido dessa frase não pode passar despercebido, especialmente em uma conjuntura de pandemia: quando aceitamos o cenário em que médicos podem e devem brincar de Deuses diante de pacientes em estado crítico, perdemos nesse mesmo movimento o senso de humanidade, sem o qual tudo se tornará possível novamente em nosso país.

Por essa razão, convém lembrar os versos de uma canção de Geraldo Vandré e Carlos Lyra que traduziu tão bem as lutas dos setores progressistas naquela primavera democrática de inícios dos anos 1960, que não se tornou verão por motivo bem conhecido (e que hoje é novamente reverenciado por setores da sociedade que, inclusive, se encontram no centro do poder): “Quem quiser encontrar o amor, vai ter que sofrer, vai ter que chorar”.

 

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