Sobre “O Bêbado e a Equilibrista” e “O Mestre-Sala dos Mares”: os hinos políticos de Aldir Blanc

Romulo Mattos, do Rio de Janeiro, RJ

I

O letrista Aldir Blanc morreu no dia 4 de maio de 2020, de Covid 19. Os noticiários, as redes sociais e até as janelas de apartamentos do país foram tomados por homenagens a esse relevante personagem da MPB, que foi compositor de vários sucessos radiofônicos, mas, principalmente, de hinos políticos, como “O Bêbado e a Equilibrista” (1979) e “O Mestre-Sala dos Mares” (1975), os dois em parceria com o cantor e violonista João Bosco. Quando compôs a primeira canção, Aldir Blanc integrava a luta pela redemocratização. Como se sabe, o cartunista Henfil é citado em um de seus versos mais expressivos: “meu Brasil…/ que sonha/ com a volta do irmão do Henfil/ com tanta gente que partiu/ num rabo de foguete/ chora/ A nossa pátria – mãe gentil/ choram Marias e Clarisses/ no solo do Brasil”. Também é conhecida a informação de que referido irmão do humorista é o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que lutara pelas Reformas de Base, no governo João Goulart, como assessor do Ministério da Educação, e se engajara na oposição à ditadura, a partir de 1964 – embora a sua realização mais conhecida tenha sido o programa Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, criado em 1993. Uma das Marias citadas na canção, ou a principal delas, é a mãe de Henfil e Betinho, à qual o primeiro costumava se dirigir em seus textos publicados semanalmente na revista Istoé, a partir de 1977. As chamadas “Cartas da Mãe” tinham o propósito de: “testar a consistência da distensão do general Geisel” (MORAES, 1997, p. 239). A citação das Clarisses era uma homenagem à companheira de Vladimir Herzog, jornalista torturado e assassinado nas dependências do DOI-CODI, no quartel general do II Exército, em São Paulo, em 1975.

O depoimento de Henfil sobre a experiência de ter ouvido pela primeira vez aquela canção na voz de Elis Regina é importante, porque ajuda a entender esse material artístico como uma peça de propaganda política de oposição à ditadura.

“Quando acabou a música, percebi que a anistia ia sair. (…) Eu percebi uma coisa: a ditadura, o governo vai perceber que por trás dessa música não tem quem segure o momento da anistia. Escrevi para o meu irmão Betinho para ele se preparar. ‘Agora nós temos um hino e quem tem um hino faz uma revolução.’ E de fato não deu outra, aquele negócio cresceu de tal maneira que tenho certeza que aquilo pesou para o comício passar das quinhentas para as cinco mil pessoas. E aí nos comícios era só tocar a música e assistir. Acho que seis meses depois saiu a anistia, antes mesmo que a oposição tivesse condições de gerir aquilo, de propor outras fórmulas. No dia em que meu irmão chegou, ainda havia um clima de saber se ele ia ser preso ou não. Todas as pessoas levaram um gravador com a fita da música. E no Aeroporto de Congonhas foi aquela tocação de O bêbado e a equilibrista. Até os policiais ficaram tocados. A TV Globo colocou a música no ar” (ECHEVERRIA, 1985, p. 65).

“O bêbado e a equilibrista” é um samba que tem uma interpretação mais emocional do que técnica de Elis (e isso não significa dizer que haja imprecisão em sua performance vocal). Ela é acompanhada pelo seu quarteto clássico – César Camargo Mariano, no piano, Hélio Delmiro, no violão, Luizão Maia, no baixo, e Paulinho Braga, na bateria – acrescido pela guitarra de Ary Piassorollo, pelo acordeom de Chiquinho, pelo tamborim de Cidinho e pela orquestra de cordas exclusiva da gravadora WEA. A gravação é iniciada com uma vinheta musical constituída por um delicado tema tocado no acordeom, pontuado pelo piano Fender Rhodes. Esse arranjo que simula o som advindo de uma caixa de música é repetido na conclusão da canção. É como se a palavra cantada no intervalo entre a execução das vinhetas evocasse (intensas) memórias pessoais, despertadas pela simulação da caixa música. Henfil foi sensível a esse efeito criado pelo arranjador César Mariano:

“O César fez um arranjo pra aquela música que começa com aquele acordeão parecendo caixinha de tirar sorte. Eu olhei pra ele, que me devolveu o olhar como se dissesse: ‘É sua’. Aquela introdução é do tipo ‘prepare seu coração pras coisas que eu vou contar’. Eu desmontei ali” (ECHEVERRIA, 1985, p. 65).

A composição em questão foi o maior sucesso do disco e do show Essa Mulher, tendo ficado por dez semanas como uma das cinco músicas mais tocadas nas rádios de São Paulo. “Ouvindo a voz de Elis nas rádios, centenas de presos políticos fizeram greve de fome dentro dos presídios entre os dias 22 de julho e 22 de agosto. Seis dias depois, a lei da Anistia era assinada” (MARIA, 2015, p. 327). A música foi decisiva para a reconciliação definitiva entre a cantora e Henfil, que a enterrara duas vezes em seu “Cemitério dos Mortos Vivos” do Cabôco Mamadô, do jornal alternativo O Pasquim. Nessa seção, o chargista jogava uma pá de cal sobre as personalidades que colaboravam com a ditadura. O motivo para a diatribe de Henfil foi a participação da intérprete nas Olimpíadas do Exército, na Semana da Pátria, em 1972, em pleno governo Médici, o auge da repressão política empreendida pelos militares. No dia em que Betinho retornou do exílio, Henfil o levou para assistir ao show da intérprete no Anhembi, em São Paulo. E a presença do ex-exilado foi anunciada pela artista ao microfone, sem o costumeiro ar de culpa que ela demonstrava quando encontrava o cartunista. Foi como se esse e a cantora, que tanto fizera para recuperar a confiança de seu antigo crítico, estivessem quites naquele momento (ECHEVERRIA, 1985, p. 65).

Na citada declaração de Henfil sobre a experiência de ter ouvido “O bêbado e a equilibrista” há uma frase especialmente interessante: “Acho que seis meses depois [de a música ser reproduzida nos comícios] saiu a anistia, antes mesmo que a oposição tivesse condições de gerir aquilo, de propor outras fórmulas” (Idem). Aqui fica subentendido que o cartunista enxergou o alcance limitado da lei aprovada em 28 de agosto de 1979, que:

“[excluiu] de seus benefícios os condenados pela ‘prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal’. Por outro lado, incluía os acusados de ‘crimes conexos’, isto é, de tortura, assassinato etc., o que dava à medida um caráter de ‘reciprocidade’” (LEMOS, 2002, p. 295).

Então a Lei da Anistia é uma estranha figura jurídica, pois:

“Afirma uma reciprocidade (…) que, no mínimo, é falaciosa pois, no caso dos opositores políticos, sempre se soube publicamente quais eram os ‘crimes’ a eles imputados; da mesma forma, a grande maioria respondeu a processos na Justiça. No caso dos responsáveis pelos crimes cometidos pelo Estado, nenhum processo na Justiça até hoje foi aberto, nem sequer tiveram seus nomes trazidos a público oficialmente. (…) Por isso, por se entender que a tortura é crime imprescritível e inanistiável, e que a Lei da Anistia (…) não contemplou, em nenhum de seus artigos, a prática da tortura, não se podem considerar tais pessoas como tendo sido anistiadas” (COIMBRA, 2001 p. 17).

Vale ressalvar que a oposição feita pelos setores mais à esquerda exigia uma “anistia ampla, geral e irrestrita”, bandeira do Comitê Brasileiro pela Anistia (1978), acompanhada da apuração dos crimes praticados por funcionários do Estado contra opositores políticos e punição dos culpados. Isso não ocorreu porque: “O sentido básico da transição foi preservar as condições da dominação política de uma classe social absolutamente desprovida de vocação transformadora” (LEMOS, 2002, p. 293). Em abril de 1979, o mencionado Comitê concedeu a Henfil a Medalha Vladimir Herzog, devido a sua luta pela Anistia e os direitos humanos. Esse foi um prêmio merecido porque o chargista: “Durante meses, grudou-se à campanha da anistia. Fez desenhos para comitês, compareceu a atos públicos e assinou o Manifesto dos Artistas pela Anistia ampla e irrestrita, enviado ao congresso nacional com 712 assinaturas” (MORAES, 1997, p. 368). Embora tenha participado da festa do retorno de parte dos exilados, para o cartunista a luta não acabara:

“Apesar da gente ter conseguido uma anistia quase total, apesar do Betinho agora poder voltar, não dá pra ficar feliz. Que foguetes poderemos soltar sem magoar os trezentos que, além de terem sido torturados feito cobaias, continuarão presos ou exilados? (HENFIL, 1981, p. 163).

Na MPB, a decepção dos setores de esquerda com a lei da Anistia foi expressa na música “A marcha do povo doido” (1980), de Gonzaguinha.

II

O samba “O Mestre-Sala dos Mares” foi escrita em homenagem ao líder da Revolta da Chibata (1910), João Cândido, e até hoje é analisada nas melhores aulas de História sobre o tema. Aldir Blanc se refere poeticamente à justeza da luta empreendida pelo tal personagem, que: “Conhecido como o navegante negro/ Tinha a dignidade de um mestre-sala”. O letrista também menciona os castigos corporais sofridos pelos negros na Marinha: “Rubras cascatas/ Jorravam das costas dos santos/ Entre cantos e chibatas”. De fato, foi um levante, organizado durante meses, contra as chibatadas que faziam os marinheiros associarem a sua condição à dos escravos, diante do arbítrio dos comandantes. Mas os marujos também se rebelavam em nome de um projeto de melhorias na condições de trabalho e na carreira (NASCIMENTO, 2008, p. 21). A resistência histórica dos de baixo, que podia ser redefinida em um contexto de luta contra a ditadura, fica evidenciada nos últimos versos (outro significado possível desses na época se relacionava com a recente derrota da luta armada contra os militares): “Glória a todas as lutas inglórias/ Que através da nossa História? Não esquecemos jamais./Salve o Navegante Negro,/ Que tem por monumento/ As pedras pisadas no cais”.

A questão é que a primeira versão da letra de Aldir Blanc foi vetada pela censura, e ele foi com João Bosco, o pianista e arranjador César Camargo Mariano e Elis Regina a Brasília, com o objetivo de tentar a liberação. Pena Vermelha, chefe da censura federal, disse ao letrista que jamais soubera de um almirante negro na Marinha e que, portanto, tratar-se-ia de uma provocação e uma conspiração mentirosa ao sistema brasileiro de repressão ao comunismo. O documento que tinha em mãos trazia as palavras “almirante” e “negro” riscadas em vermelho, motivo pelo qual afirmou a Aldir Blanc que não se falava bem ou mal de negro, simplesmente não se poderia falar sobre o assunto. Diante dos olhos vermelhos do poeta, o censor aceitou liberar a letra, desde que o primeiro trocasse “almirante” por “navegante” (MARIANO, 2011, p. 212-213).

III

Formado em medicina e praticante da psiquiatria, Aldir Blanc foi inicialmente membro do MAU (Movimento Artístico Universitário), ao lado de Gonzaguinha, Ivan Lins, entre outros. Letrista dos mais importantes da História da MPB, o vascaíno misturou humor, acidez e crítica política e social em canções que geralmente optavam por abordar as classes pobres, com linguagem coloquial, gírias e expressões populares faladas nos subúrbios cariocas (ALMEIDA, 2013, p. 145). O seu talento para a palavra cantada está no nível do de um Chico Buarque, do de um Caetano Veloso, porém, com uma sensibilidade própria, tendo sido criado no bairro do Estácio, associado à História do samba, à malandragem e à boemia. Essa sua característica se casou ao talento musical exuberante de João Bosco, violonista com técnica de dedilhar as cordas bem particular, nascido em Ponte Nova (MG) e radicado em Ouro Preto, em meados da adolescência. Desde cedo aplaudida por compositores como Tom Jobim e jornalistas como Sérgio Cabral, essa parceria alimentou também a carreira da maior cantora brasileira de todos os tempos, Elis Regina. Mais tarde, junto a Guinga, violonista carioca criado nos subúrbios, Aldir Blanc desenvolveu um trabalho que pode ser reconhecido como o que houve de mais significativo na MPB dos anos 1990 para cá. Para as melodias compostas por aquele instrumentista influenciado por música erudita, jazz e choro, escreveu letras sobre um universo de sentidos em que tudo é possível, como a ironia a um fictício torturador chamado Vilmar, residente em Xerém, que não mudara em relação aos tempos de pára-militar e dizia não ser nada pessoal (“Par ou Ímpar”, de 1993); e também a um cantor de renome internacional supostamente encontrado em Limoeiro, tentando se proclamar gerente de um Mafuá, no caso Paul Simon – em referência a sua prática de se apropriar de ritmos brasileiros, com a qual conquistou fortuna junto à indústria fonográfica internacional (“Baião de Lacan”, de 1993).

Que não se pense que Aldir Blanc abandonou a crítica política após o fim da ditadura. Foi expressiva a sua crítica à Polícia Federal, que deflagrara no dia 6 de dezembro de 2017 uma ação com o objetivo de investigar o suposto desvio de recursos públicos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), relacionado com a implantação do “Memorial da Anistia Política do Brasil”. A manobra daquela instituição com a juíza Raquel Vasconcellos Alves Lima constituiu um uso exagerado de medidas coercitivas. E o detalhe é que a operação foi chamada de Esperança Equilibrista, um dos versos finais da canção “O bêbado e a equilibrista”. Em resposta, Aldir Blanc redigiu uma nota (também assinada por João Bosco) que citava a parcialidade da Polícia Federal e do Judiciário no que diz respeito ao tratamento a importantes políticos brasileiros, como o presidente da República, Michel Temer, e o ex-presidente do PSDB Aécio Neves – abordados por meio de alcunhas típicas de criminosos populares. Não obstante, citou mais explicitamente Sérgio Moro e Gilmar Mendes, além do expediente das execuções físicas geralmente associadas às intervenções policiais que atendem aos interesses dos setores dominantes.

Era o que se esperava do compositor de hinos políticos, como tais inesquecíveis, e que certamente poderia contribuir criticamente a este contexto em que a MPB, da qual foi um dos principais agentes, vem sendo atacada e tratada como inimiga de morte por um governo que tenta reescrever a História e interditar a cultura, como fazem os governos de extrema-direita. Nada que o próprio Aldir não tenha enfrentado nos anos 1970, durante a ditadura militar, quando teve uma de suas canções reproduzida em rádios de pilha no momento em que amigos e familiares recepcionavam os antigos exilados políticos, no aeroporto. Para quem atuou no campo da composição popular, e escolheu abordar a realidade brasileira como matéria-prima do seu ofício, quando esse projeto artístico podia ser considerado subversivo, não deve existir legado mais importante.

 

Bibliografia

ALMEIDA, Marcus Vinícius de. O violão de João Bosco. Revista Brasileira de Estudos da Canção, Natal, n.4, jul-dez 2013.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura ontem e hoje: resgatando uma certa história. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, 2001.
ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. Rio de Janeiro: Nórdica/ Círculo do Livro, 1985.
HENFIL [Henrique de Souza Filho]. Cartas da mãe. Rio de Janeiro: Codecri, 1981
LEMOS, Renato. Anistia e crise política no Brasil pós-1964. Topoi, Rio de Janeiro, 2002.
MARIA, Julio. Elis Regina – Nada será como antes. São Paulo: Master Books, 2015.
MARIANO, César Camargo. Solo: César Camargo Mariano – Memórias. São Paulo: Leya, 2011.
MATTOS, Romulo Costa. Cantando com a ditadura militar: um diálogo com a cinebiografia Elis. Blog Junho, 14 de dezembro de 2016(a).
MORAES, Denis. O Rebelde do Traço: a vida de Henfil. RJ: José Olympio.1996.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008.

 

 

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