Pular para o conteúdo
BRASIL

Ensino de gênero nas escolas: uma grande vitória pelo direito a educar

11 x 0: Em uma goleada contra a Escola com Mordaça! A luta das mulheres e educadores pressiona STF a votar por unanimidade o direito ao ensino de gênero criando jurisprudência nacional sobre o tema

Eliana Nunes*, de São Paulo, SP

Durante a quarentena muitos educadores se emocionaram ao assistirem Mucize e O Mistério da cela 7.   Estes dois filmes turcos tratam com delicadeza olhares sobre portadores de deficiência, a busca de igualdade, equidade e justiça. Mas também chama a atenção como cada película explora a relação docente com suas comunidades escolares, de forma comprometida, levando à reflexão de que a função da escola vai muito além da transmissão de conhecimentos, como pensam alguns.

Em Mucize, o professor Mahir se vê diante de um incomunicável rapaz do vilarejo, chamado Aziz (aparentemente portador de paralisia cerebral), colaborando para a mudança de seu destino, até então incompreendido e condenado ao isolamento social. Já a professora Mine (O Milagre na cela 7), luta pela permanência da pequena Ova na escola, mas percebe que, para conseguir o propósito, deveria ir mais fundo no drama vivido pela menina.

Não se defende aqui uma visão messiânica ou salvacionista da profissão. Sim, profissão: atividade para a qual um indivíduo se preparou. Trabalho que uma pessoa exerce para obter os recursos necessários à sua subsistência; ocupação, ofício. Trata-se aqui de educadores, profissionais da educação.

Ainda sobre a reação dos educadores aos filmes, a empatia ocorre estimulada pelas histórias e também pela forma como os professores são representados em cada uma das narrativas; ou seja, o reconhecimento da importância da profissão, o apoio e o respeito das comunidades locais.

Bem diferente da nossa realidade, em especial no Brasil. A imagem dos profissionais da educação está sob fogo cerrado seja pelo desmonte das carreiras, estrangulamento de salários, retirada de direitos como a aposentadoria e carreiras, seja pela criminalização daqueles que defendem a ciência e assumem esta posição.

Um episódio recente da tentativa de destruição da imagem dos professores foi a declaração do Governador de São Paulo, João Doria, que justificou não dar bonificação ao conjunto dos professores porque parte destes eram preguiçosos e tomadores de suco de laranja. Pífio argumento para negar investimentos na Educação. Doria busca, assim, deslegitimar as lutas contra o projeto privatizante dos serviços públicos que foi ainda mais escancarada na sua gestão.

Como diz Vitor Benvindo,  professor da Faculdade de Educação da UFBA, neste artigo do Esquerda Online , Jair Bolsonaro, que também odeia os professores, não quer uma educação que transforme, mas sim uma educação que mantenha as desigualdades sociais como naturais e que coloque o trabalhador no seu lugar: o de submissão.

As duas últimas décadas foram marcadas por centenas de marchas, greves e ocupações protagonizadas por docentes, pais e estudantes.  As bandeiras eram, entre outras, a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, exigência de direitos sociais, condições de trabalho dos servidores, pelo passe livre escolar. Maior exemplo disso foram as ocupações de escolas em todo país e o Tsunami da Educação.

Reagindo a estas mobilizações foram sendo gestados os primeiros grupos conservadores, como os famigerados MBL (Movimento Brasil Livre), Escola sem partido, inspirados pelas ideias de Miguel Nagib, fundador deste último, o astrólogo Olavo de Carvalho e lideranças neopentecostais.

Estas ideias ganham força na esteira do ressurgimento de organizações de extrema direita em outros países em confronto aberto contra avanços em direção à igualdade de gênero, de raça e dos imigrantes. O capitalismo se utiliza das diferenças para melhor explorar e, em tempos de crise econômica, os poderosos se aproveitam para alimentar a divisão entre os trabalhadores e atacar seus avanços, haja vista o Brexit e os diversos planos de austeridade contra os direitos da classe trabalhadora europeia.

Grupos religiosos levantam faixas contra "ideologia" de gêneroAndré Bueno / CMSP
Votação do Plano Municipal de Educação de São Paulo, em agosto de 2015. André Bueno / CMSP.

Eles pregam a negação da ciência. Defendem que a Terra é plana, fazem campanhas contra as vacinas e chegam ao absurdo de afirmar que o nazismo seria um movimento de esquerda. Aqui no Brasil, foram estes setores que divulgaram mentiras durante a campanha eleitoral. Termos como “mamadeira de piroca”, “kit gay” eram utilizados por Jair Bolsonaro entre outras tantas fake news. Para se ter ideia do tamanho do perigo 83,7% dos eleitores de Bolsonaro acreditavam que estas sandices eram verdadeiras, em pesquisa realizada pela IDEIA – Big Data/Avaaz em outubro de 2018.

Não é por acaso esta sanha sobre as escolas, com destaque para as públicas. Estes movimentos produziram projetos de leis municipais e estaduais em perseguição a alunos, trabalhadores da educação, familiares para que estes não abordem questões de raça, gênero e sexualidade. O objetivo é criminalizar aqueles e aquelas que nada mais fazem do que exercerem suas profissões ao divulgar ciência e criticidade. Sabemos todos que o grande medo da elite é que a classe explorada eleve a cultura e possa estar fortalecida na busca de exercer sua cidadania, ou seja, conquistar e fazer valer direitos e igualdade.

Há bastante elaboração sobre este tema que pode ser conferida aqui.

O dia 24 de abril deste ano ganha importância na história da educação brasileira.

O dia 24 de abril deste ano ganha importância na história da educação brasileira. A votação unânime dos 11 ministros do STF pela inconstitucionalidade da Lei municipal de Novo Gama (GO) que proibia a discussão de gênero em suas escolas endossou os argumentos da sociedade civil organizada em torno da defesa da liberdade. A lei do município goiano afrontava o direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a igualdade e o ensino laico.

A decisão no STF é fruto do intenso debate feito por educadores, defensores da escola pública e dos setores oprimidos diante do obscurantismo vivido desde o golpe ao governo Dilma Rousseff.

O Supremo também reiterou que cabe à União a exclusividade para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional.  Isso inviabiliza a tática do Movimento Escola sem Partido aprovar tais iniciativas em municípios ou estados. Este movimento se construiu sob esta pauta em todo país, elegendo inclusive parlamentares.

O STF devolve a liberdade de cátedra a quem tinha perdido. Lancemos mão desta vitória para intervir na realidade.

O tamanho desta vitória depende do que faremos dela

Educar no Brasil é sinônimo de rebeldia, porque sempre nos foram negadas as condições mínimas de ensino.

Não foi fácil trazer a História e Geografia de volta para o currículo no pós ditadura que as tinham esvaziado nos extintos Estudos Sociais. Filosofia e Sociologia foi uma outra luta encarniçada, bem como a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana. E mesmo assim, todas estas conquistas caem por terra com a Reforma do Ensino Médio, como já dito em artigos anteriores do Esquerda Online que podem ser conferidos aqui e aqui.

Apesar disso tudo, milhares de professores brasileiros, todos os dias, desafiam a lógica e transformam vidas. Não fosse isso, os números do analfabetismo e analfabetismo funcional seriam ainda mais assustadores. Para se ter uma ideia da dimensão das possíveis consequências desta negligência, o número de analfabetos funcionais são, no mínimo, alarmantes: apenas 22% dos brasileiros que chegaram à Universidade tem plena condição de compreender e se expressar de acordo com dados do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional), realizado pelo Instituto Paulo Montenegro em parceria com a ONG Ação Educativa, de 2016.

O que fazer? Por que fazer? Mãos à obra!

Esperamos que no pós-pandemia uma nova visão sobre a importância dos serviços públicos, ciência e educação tomem seu devido espaço na vida da humanidade.

Esta pauta deve ser abraçada pelos movimentos sociais, sindicais e estudantis.  Sabemos que a escola sozinha não é responsável por assumir uma postura ativa para reverter este quadro. A complexidade destes temas obriga que existam políticas públicas entrelaçadas entre os órgãos de defesa da criança e adolescentes, da Saúde e Educação. Mas isso não a exime de discutir e dar seus passos.

A votação do STF deve ser dedicada também a cada docente que foi perseguido, provocado, processado, demitido…

É necessária uma política consciente de inclusão destes temas que se referem à saúde nos currículos escolares, de acordo com cada fase de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Combinado a isso, é fundamental a formação dos docentes em universidades públicas, para que as aulas se apoiem em conhecimento científico com metodologia pedagógica.

Portanto, cabe a nós darmos ampla visibilidade ao que foi reconquistado no STF e exigir, no quesito da sexualidade, a retomada na adoção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (que seguem válidos!!!) para sustentação deste tema nas escolas.

Faz-se então urgente um chamado a um debate nacional, democrático, e a preparação de materiais para subsidiar as discussões numa parceria entre entidades e universidades públicas. Aliás, estas devem ser parceiras nesta empreitada, com criação e extensão de programas de educação sexual em todo o país.

A votação do STF deve ser dedicada também a cada docente que foi perseguido, provocado, processado, demitido, tendo suas vidas e saúde destroçadas. A luta não foi em vão. Eles estavam do lado certo da história.

 

* Conselheira Estadual da Apeoesp