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BRASIL

Doria avança com a Reforma do Ensino em meio a pandemia mundial

Rafael Aroni* e Ana Amalia Curtarelli**, de Ribeirão Preto, SP
Govesp via Fotos Públicas

Em meio à segunda semana de quarentena, imposta pela pandemia da infecção Covid-19, que acarreta a maior crise humanitária e econômica do capitalismo contemporâneo, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo antecipou, no período do recesso, uma série de vídeos e conferências de caráter formativo, que tratam da implementação da contrarreforma do Ensino Médio Paulista, e antecipa para consulta pública o documento diretriz para o “Currículo Paulista”. Vale lembrar que, desde o governo Temer, o atual secretário[1] é a peça fundamental na implementação dessa contrarreforma.

Segundo a própria Secretaria de Educação, esse debate se iniciaria em julho de 2020. Mas de forma aligeirada e aproveitando do recesso, e principalmente de todo esvaziamento das escolas, necessário por motivo da pandemia da Covid-19, o governo tenta dar um ar democrático a essa consulta.

O que acontece é justamente o contrário, porque parte da comunidade interessada e, diga-se de passagem, grande parte, não participará dessa consulta opinando, debatendo e participando de forma democrática sobre a nova matriz curricular para o Estado de São Paulo.

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Por isso, o governo Dória quer celeridade. Afinal, quantos são os milhares de estudantes paulistas que não tem acesso à internet, e já não tinham com salas de informática precárias da Rede Estadual?

A Secretaria da Educação se aproveita de uma situação contingente gravíssima, em que nem mesmo eles conseguiram ainda assegurar o mínimo de sobrevivência, como o fornecimento de alimentos da merenda, para os estudantes, filhos de trabalhadores que estão sem nenhuma renda neste momento.

E mais ainda, a Secretaria de Educação não conseguiu ainda implementar qualquer plano de ação educacional para orientar os estudantes e comunidade escolar para a excepcionalidade deste momento.

De Temer a Dória, Rossieli segue implementando a contrarreforma do Ensino Médio

Vale lembrar que a trajetória histórica dos mecanismos legais que embasam o Currículo Paulista, que foram construídos gradualmente, nas alterações realizadas de forma antidemocrática no período que se abriu após o impeachment/golpe de 2016.

O acréscimo do artigo 35-A na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional, pela medida provisória 746, de 22 de setembro de 2016, do governo Temer, foi convertida na Lei 13.415, em 16 de fevereiro de 2017. Esse artigo é eixo estruturante do Currículo Paulista, pois ele altera a finalidade do Ensino Médio, enquanto etapa de promoção da educação voltada para o trabalho, cidadania, na formação ética, de autonomia intelectual e pensamento crítico; para se focar apenas em objetivos de aprendizagem, nas quatro áreas do conhecimento (I-linguagens e suas tecnologias, II-matemática e suas tecnologias, III-ciências da natureza e suas tecnologias e IV-ciências humanas e socias aplicadas), que passam a se atrelar a uma percepção instrumentalizada da tecnologia, como suposto recurso garantidor de acesso ao direito à educação. Esse movimento rebaixa e suprime o papel dos professores como meros tutores a disponibilizar formas de estudos e práticas, especialmente para as disciplinas de educação física, arte, sociologia e filosofia. Apenas língua portuguesa e matemática são resguardas como disciplinas de ensino, ou seja, ofertadas por professores formados na área.

Outro embasamento legal do Currículo Paulista foi a resolução nº 3 de 21/11/2018, do Ministério da Educação, que atualizou as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio.  Esta resolução cerceou o direito humano dos jovens estudantes terem acesso a conhecimentos amplos acumulados até esse momento pela ciência, para uma vertente de flexibilização em que o pensamento crítico passa a ser instrumentalizado e capturado por projetos de vida, que de forma pragmática consigam resolver problemas cotidianos, como por exemplo, garantir a empregabilidade dos próprios jovens diante de um cenário de profunda transformações tecnológicas que não mais garantem empregos, nem mesmo no modelo de produção toyotista.

O mais chocante dessa resolução, é a possibilidade em se ofertar 80% do currículo do Ensino de Jovens e Adultos, na modalidade de Educação à Distância, 20% para do Ensino Médio diurno e 30% no Ensino Médio Noturno. O direito à educação é substituído por um modelo flexível de escola e currículo, meramente tecnicista, fragmentado, desconexo e excludente, propagandeado pela ideologia neoliberal na expressão do empreendedorismo. Solução encontrada por parte da burguesia financeira e industrial mundial para estruturar formações precárias que garantam alguma margem de acumulação, na inserção desses jovens em um mercado de trabalho em que não há mais trabalho nos moldes do que a classe trabalhadora experimentou no século XX.

Já o documento da homologação da Base Nacional Curricular do Ensino Médio (dezembro de 2018), que fundamenta o Currículo Paulista, apresentou uma série de cancelamentos das audiências públicas pelo país, como a de São Paulo/SP e de Belém/PA, visto o posicionamento intransigente do então Ministro Rossieli, em escutar pais, estudantes, professores e comunidade escolar, sobre como essa contrarreforma afetará a educação no ensino médio.

Trata-se da Portaria nº 1.432 de 21/12/2018, despachada pelo ex-ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez, durante o gabinete de transição do governo Bolsonaro. A Portaria estabelece referenciais para elaboração dos Itinerários Formativos, cujo objetivo é focar em aprendizagens gerais, ou seja, superficiais das áreas do conhecimento, e foco em formação técnico profissional. Os referenciais dos itinerários formativos funcionam como processos fragmentadores sobre as quatro áreas do conhecimento, possibilitando arranjos e rearranjos dos conteúdos das disciplinas, a partir de quatro critérios: 1) Investigação Científica – focada na sociedade tecnológica do conhecimento, 2) Processos Criativos – focados na ideologia da inovação tecnológica, 3) Mediação e Intervenção Sociocultural – que busca impulsionar os estudantes a se engajarem em projetos de intervenção política na promoção de mudanças socioculturais e ambientais de suas comunidades, algo positivo dentro das realidades escolares, mas sabemos que são profundamente cerceados ou orientados a busca de aplicação ao mercado econômico e 4) Empreendedorismo – que mobiliza a iniciativa individualista e concorrencial entre os estudantes.

Portanto, esses referenciais dos itinerários formativos, funcionam como fragmentadores do currículo como eixo orientador e difusor dos conteúdos, práticas, habilidades e competências. Uma vez que a educação passa a ser operada como se fosse um processo aberto a qualquer possibilidade de configuração e elaboração a partir da responsabilidade do estudante se engajar em algum projeto de vida.

Em 2021, o Currículo Paulista promoverá o desemprego de professoras e professores na Rede Estadual de São Paulo

Na consulta pública do “Currículo Paulista” fica clara a redução da carga horária para 3000 horas ao longo dos três anos do ensino médio, com 1.800 horas de Formação Geral Básica e 1.200 horas dos Itinerários Formativos. Dessa forma, o atual currículo em vigência neste ano de 2020 (Resolução SE 66, de 9-12-2019), que tem sua carga da Base Comum Curricular de 3.600 horas, será reduzido pela metade!!! A Secretaria de Educação sinaliza que não haverá exclusão de nenhuma disciplina, mas sabemos que isso significará a redução das aulas de todas as disciplinas. Isso implicará em desemprego em massa de professores, para o ano de 2021!!! Momento em que viveremos novas etapas decorrentes da crise social da Covid-19. As outras 1.200 horas serão dos Itinerários Formativos, e sabemos que não possibilitarão que os professores, de todas as disciplinas, consigam completar sua jornada de trabalho integral.

O documento em “consulta” aponta caminhos de interdisciplinaridade ao combinar as áreas do conhecimento, ao propor o itinerário formativo como eixo articulador. Na verdade, o que se observa são grades parametrizada de habilidade e competências que homogeneízam processos de aprendizagem sem considerar particularidades regionais, tão pouco a profunda desigualdade social das diferentes escolas do Estado de São Paulo. Para os professores isso significará menos aulas de suas disciplinas, e a necessidade de combinar com outras áreas formas de tentarem efetivar os processos de ensino e aprendizagem, ou por atuarem fora de sua área de formação, ou por não terem tempo disponível de aula, ou  por não existir espaços coletivos, já que os ATPC são por área do conhecimento.

Disciplinas como arte, filosofia, sociologia, e mesmo os conteúdos de todas as demais disciplinas estarão tratados na sua superficialidade, combinados entre áreas do conhecimento, no princípio de interdisciplinaridade, mas que não especifica como será tratado por cada disciplina e nem quem a ministrará. Esse coquetel de maldades fará com que a formação de uma geração toda seja usurpada, de conteúdos básicos para uma formação que respeite os estudantes em sua dignidade e sua inserção ao mundo do trabalho.

Se isso ocorrer, serão necessárias várias décadas para se superar toda essa falácia, como foram as gerações dos anos 1970, formadas pelos acordos tecnicistas MEC/USAID (1968).

A consulta pública do Currículo Paulista é antidemocrática, é uma crueldade se aproveitar de uma situação de calamidade pública para avançar no desemprego das professoras e professores do Estado de São Paulo.

Revogação imediata da Lei 13.415, em 16 de fevereiro de 2017, que iniciou processo da Contrarreforma do Ensino Médio!

Portanto, é necessário mais do que nunca que questionemos: “Qual escola que desejamos para os filhos da classe trabalhadora?”

Por um currículo que garanta o direito a educação pública, gratuita e de qualidade e que fomente a vida digna aos filhos e filhas dos trabalhadores.

 

* Professor e Conselheiro da Apeoesp Ribeirão Preto
* Diretora estadual da Apeoesp e Coordenadora da Subsede da Apeoesp de Ribeirão Preto

 

NOTAS

[1] Rossiele Soares atual secretário de Educação do Estado de São Paulo, foi ministro da Educação durante o governo Temer.

 

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