Por: Rhaysa Ruas, Tatianny Araújo, Carolina Freitas e Karine Afonseca
“O que dói é saber que a gente vai lá pra frente, dá a cara a tapa, mas os interesses do capital, os interesses políticos dentro desse instituto, se sobrepõem a qualquer possibilidade de humanidade e de humanização… mas eu ainda tenho esperança e eu espero que o que quer que aconteça comigo não seja em vão, sabe?”
Aline Melo, 42 anos, enfermeira e mãe solo
Muito tem sido dito e escrito sobre a pandemia que assola o mundo com sua síndrome respiratória aguda grave, provocada pelo coronavírus (SARS-CoV-2). Desde que foi identificada pela primeira vez, no final de 2019, na China, virou manchetes de jornais e tem mudado radicalmente a vida da maioria da população mundial. A pandemia surge ainda, em cenário global de desmonte das instituições e serviços voltados à saúde pública, e em um contexto de crise econômica, o que, ao que tudo indica, já causa uma crise humanitária sem precedentes.
Menos conhecida, entretanto, é a realidade daquelas trabalhadoras e trabalhadores que estão na linha de frente do combate à pandemia. Esta conjuntura tem provado de forma trágica quem são os trabalhadores essenciais para o funcionamento de nossas sociedades: enfermeiras e técnicas de enfermagem, psicólogas, médicas, assistentes sociais, trabalhadoras da limpeza, entregadoras, trabalhadoras rurais e do setor alimentício, professoras da educação básica etc. Nas sociedades capitalistas, onde a vida está subordinada à produção do lucro, esses trabalhadores – na maioria racializados e mulheres – têm sido historicamente desvalorizados e precarizados e hoje multiplicam sua carga de trabalho para garantir a reprodução de nossas vidas.
O feminismo da reprodução social há muitos anos vem explicando e denunciando esse fenômeno: nessas sociedades, onde os trabalhadores encontram-se despossuídos dos seus meios de produção e de subsistência, a condição para a produção de valor é a reprodução cotidiana e geracional da força de trabalho, o que acontece através do trabalho de reprodução social. A reprodução social se organiza de forma diferenciada pelas linhas de raça, gênero e status de cidadania, e inclui, de um lado, o acesso aos meios de subsistência, à formação, ao desenvolvimento de competências dos trabalhadores para o processo de trabalho e, de outro lado, o padrão geral de vida, educação e saúde sustentado em uma dada sociedade. Ela envolve não só o que conhecemos por trabalho doméstico, como também o trabalho de cuidado, ambos realizados em sua maioria por mulheres não-remuneradas ou subrremuneradas em unidades familiares, ou em instituições como hospitais, escolas, casas de acolhimento etc. Por não ter em seu cerne uma lógica voltada para a produção de lucro e por demandar grandes quantidades de tempo, este trabalho é, ao mesmo tempo, necessário e um obstáculo à acumulação capitalista, que portanto tende a reduzir cada vez mais as condições de realizá-lo.
O neoliberalismo leva a lógica do capital à sua extrema potência: busca superar suas crises gerando novas crises, através da precarização máxima das condições de vida de todos os trabalhadores, do endividamento público e privado e do desmonte e cortes nas políticas públicas. Os Estados neoliberais retiram sua responsabilidade em compensar a desvalorização dos salários enquanto desregulamentam mercados e relações de trabalho, e expandem o seu papel punitivo e repressor. Entendemos, portanto, que o neoliberalismo é um sistema de re-regulação; há uma mudança no caráter da intervenção estatal, que passa a organizar a economia e as instituições políticas no sentido de salvaguardar os lucros do capital através de processos expropriatórios cada vez mais intensos, em regime de acumulação financeirizado, que em si, é potencial causador de crises. Do ponto de vista da reprodução social, jornadas de trabalho mais extensas, salários e condições de trabalho cada vez mais precários e um alto nível de desemprego geram um padrão intensificado de crise do cuidado, isto é, a incapacidade das famílias e comunidades em garantir a sua própria reprodução.
No Brasil, esta dinâmica tem se traduzido nos retrocessos sobre a seguridade social (saúde, previdência e assistência), os direitos trabalhistas e os direitos humanos em geral, algo que presenciamos nas últimas três décadas, mas sobretudo a partir de 2016. O Sistema Único de Saúde (SUS), forjado pela intensa luta dos trabalhadores, movimentos sociais da saúde, associações de bairros, entidades de classe e garantido pela Constituição Federal de 1988, é uma das políticas sociais mais atacadas pelos governos neoliberais desde a década de 90, sofrendo com o subfinanciamento desde a sua implementação. Seus princípios fundamentais – universalidade, integralidade e equidade -, bem como a manutenção e efetivação dos seus serviços na forma estatal, pública e gratuita, foram atacados pela onda de financeirização da economia impulsionada pelos governos de conciliação do PT, e agora sofrem um rápido processo de destruição direcionado pelas políticas de austeridade como a Emenda Constitucional 95 (EC 95), que congela as verbas da saúde e da educação por 20 anos.
Esta operação histórica de desmonte, que exacerba seus efeitos durante a pandemia, revela um duplo ataque à vida dos trabalhadores: uma ampla gama de profissionais adoecidos, recebendo salários rebaixados, como terceirizados ou quarteirizados nos serviços, sem qualquer amparo ou representação sindical pela natureza de seus contratos. Agora, esses mesmos trabalhadores estão sendo massacrados na linha de frente, sem equipamentos de proteção individual (EPIs) ou qualquer apoio do Estado ou da sociedade a si e a suas famílias quando, por exemplo, necessitam cumprir sua jornada à distância, tendo de combinar a isso a manutenção de sua rotina doméstica. Além disso, um aspecto central do sucateamento das políticas públicas é o processo de genocídio contra negros e indígenas em curso, que, sendo expressão do racismo estrutural, traduz não só uma política de segurança pública voltada ao extermínio dessas populações, mas à segregação residencial e ao acesso desigual aos meios de produção e subsistência (o que inclui, como destacamos acima, trabalho, alimentação e serviços de saúde).
Desde o primeiro pronunciamento sobre a pandemia no dia 13 de março de 2020, testemunhamos, mesmo com a ausência de testes e a enorme subnotificação, um ritmo elevado de crescimento do número de mortes e de pessoas infectadas. Fechamos o dia 27 de abril com dados do governo que apontam 4.555 mortes e 66.896 casos. Para pesquisadores, os números apresentados estão longe da realidade, e podem ser multiplicados em até 15 vezes. Em todo o país, trabalhadoras e trabalhadores estão morrendo, sendo desproporcionalmente afetados negras e negros, indígenas, mulheres, moradores de favelas e periferias, e aqueles trabalhadores que permanecem na linha de frente. Se, de um lado, o isolamento social e a quarentena são uma necessidade para não colapsar o sistema de saúde existente e possibilitar a redução do número de mortes, de outro, reverter o desmonte do SUS e de todos os serviços públicos e combater a postura genocida do Estado brasileiro em priorizar salvaguardar os lucros dos grandes capitalistas é uma urgência!
Acreditamos que um passo importante nessa tarefa é proteger, cuidar e valorizar os trabalhadores que estão na linha de frente. Estamos, no Brasil, diante de uma particularidade no mundo, qual seja, um governo com inspirações genocidas que ergue uma campanha negacionista permanente contra a quarentena. Para o seu objetivo, utiliza-se da desinformação propagada por enxurradas de fake news (certamente em articulação com os setores capitalistas que têm interesse de nos manter trabalhando), o que torna a ameaça à vida de todos nós, mas em particular às vidas desses trabalhadores, muito maior. Com isso, os dados, a estatística, os indicadores são fundamentais, tanto sobre a virose quanto a forma de combate. Mas é preciso ir além: assim como as mortes passam a ter a cada dia que passa, o rosto dos nossos, os endereços de trabalho e casa que conhecemos, desejamos saber também quem está na linha de frente, que setor é esse que chamamos de “essencial” e quem está por trás dele!
Buscamos, portanto, iniciar no país um espaço para receber relatos dessas trabalhadoras e trabalhadores. Devemos ouvi-los, aprender e combater o negacionismo com eles. Essa iniciativa se inspira no espaço aberto pela nova Revista Marxista estadunidense Spectre, que, sob a coordenação de Tithi Bhattacharya, tem recebido uma série de relatos em língua inglesa dos trabalhadores do cuidado de todo o mundo, chamada Dispatches from the Frontlines of Care. Pretendemos nos somar à iniciativa de Bhattacharya, mas também contribuir para que a sociedade brasileira possa ouvir e compartilhar esse momento de crise tão profunda com aquelas e aqueles que estão todos os dias se expondo para garantir nossa sobrevivência. Nosso objetivo é não só a valorização desses profissionais mas do trabalho voltado para a produção da vida humana, como forma de inverter a lógica que nos é imposta pelo capital. Acreditamos que o processo de superação desse sistema é múltiplo e complexo; uma das formas de iniciar este processo é denunciar a contradição existente entre produção de valor e produção da vida ao demandar do Estado o fortalecimento do SUS e dos serviços públicos, gratuitos e de qualidade e a reversão das medidas de austeridade, como a EC 95!
Não acreditamos que o enfrentamento à crise sanitária, assim como à todas as outras crises postas, seja uma tarefa individual. Acreditamos que, se de um lado, a produção e reprodução andam juntas e não há dualidade entre o público e o privado, de outro, as saídas precisam ser coletivas, o que não anula olhares e experiências individuais. Entendemos, no entanto, que não podemos deixar nossas iniciativas coletivas e experiências de resistência serem cooptadas pela lógica neoliberal: precisamos cobrar do Estado para que elas se tornem iniciativas públicas e acessíveis a todos. Para impulsionar esta luta, queremos dar rosto para tudo que aí está posto, humanizar quando somos desumanizados, saber quem está na linha de frente, o que estão vivendo e sentindo os trabalhadores essenciais no combate à pandemia. As experiências desses trabalhadores, seja em casa, seja nos locais de trabalho, estão diretamente conectadas às nossas experiências, ainda que neste momento elas se expressem de formas diferentes. A precarização e o desrespeito à vida deles é a precarização e o desrespeito às nossas vidas. Que ao final disso tudo, a luta e a dor desses trabalhadores não sejam esquecidos e que não voltemos à normalidade, porque a normalidade era o problema.
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