1 – Feminismo e antirracismo são ideias populares
A primeira questão que chama a atenção nesses últimos meses é que o feminismo e o combate ao racismo, nos últimos anos, se tornaram ideias populares (1). Isso não significa que são ideias amplamente aderidas, muito menos que estamos “avançando como sociedade” no combate às opressões. Muito pelo contrário, as estatísticas de violência contra a população negra e os casos de feminicídio só aumentaram na história recente. Dizer que são ideias populares é entender que são temas conhecidos pela maior parte da população, para o bem e para o mal.
A grande questão é: qual a ideia de feminismo conhecida pela maior parte da população? Quais são as estratégias que ganham mais visibilidade para o combate ao racismo e as opressões em geral?
2 – Qual feminismo é capaz de transformar a sociedade?
A teorização do feminismo nasceu do berço privilegiado da classe média e alta. Apesar disso, não demorou até que as operárias também enxergassem que as condições da sua luta pela emancipação não eram as mesmas que as dos homens da mesma classe social. As mulheres da classe trabalhadora com o tempo buscaram organizar as suas demandas por dentro do movimento operário, por entender que a sua estratégia não se confundia com as mulheres da classe dominante, que buscavam ter acesso às mesmas condições dos seus parceiros homens, mas tinham interesses materiais em manter o sistema que explorava e oprimia os trabalhadores. Na Alemanha, a batalha de Clara Zetkin pela auto-organização das trabalhadoras nunca se diluiu no feminismo burguês que tinha força no país.
Não é verdade que a esquerda sempre acolheu de braços abertos a luta feminista, muito menos que as experiências socialistas não cometeram profundos erros na aplicação de um programa que emancipasse as mulheres. Por outro lado, é verdade que o capitalismo em nenhum país do mundo existiu sem a opressão feminina. Ao mesmo tempo que a emancipação das mulheres não é garantida no socialismo, não existe possibilidade de ser atingida sem a destruição da sociedade de classes.
O “guarda-chuva” do feminismo comporta diversas vertentes políticas diferentes, desde as liberais até as anarquistas. As feministas classistas disputam uma programa para o feminismo que busca construir um novo modo de produção e reprodução da vida. A luta contra o racismo tem de ser travada com a mesma prioridade. A potência de transformação do feminismo depende tanto do seu caráter antirracista quanto do seu viés anticapitalista, principalmente em um país de maioria negra e onde a população racializada é a mais explorada e oprimida.
O feminismo não pode ser indiferente à condição dos homens negros, porque as bases para a opressão de gênero e raça se encontram em um mesmo sistema que explora e oprime. Não é plausível utilizar as armas do racismo para um suposto combate ao machismo, alimentando a visão do homem negro como criminoso em potencial. Esse erro não é desconhecido na história: Angela Davis já nos chamou atenção para o “mito do estuprador negro”, estereótipo construído a partir da utilização de falsas acusações de abuso sexual à homens negros, como forma de incitar a violência racista (2).
3 – A importância de uma teoria unitária
A “teoria unitária” nos oferece as bases para construir uma luta integrada contra toda a forma de exploração e opressão. O ponto central é compreender que a atividade da produção e da reprodução do capital constituem um todo indivisível (3). Portanto, a lógica dessa corrente teórica não compreende o racismo, o machismo e a exploração econômica como elementos independentes que se conversam, mas entende o sistema capitalista para além do momento da produção.
O processo da reprodução comporta as atividades como a alimentação, os cuidados “psíquicos”, o cuidado com os idosos e desempregados, e a reprodução de novos trabalhadores (4). Essas atividades são essenciais para o capitalismo e são realizadas, de maneira mal remunerada ou não remunerada, por uma maioria esmagadora de mulheres e populações racializadas em todo o mundo. O capitalismo não apenas se utiliza de forma oportunista da opressão feminina e racista, ele precisa delas para dar continuidade à sua existência.
Adotando a teoria unitária como base para a análise, não é possível falar em uma “hierarquia de opressões”. Não é produtivo ou educativo colocar um acima do outro. Se o sistema que oprime e explora é um só, então as bases do machismo, do racismo e da exploração de classe são manifestações de uma mesma totalidade funcional. Sem negar as especificidades de como esse sistema se manifesta na vida de cada indivíduo, bem como a necessidade de auto-organização de cada setor nas suas próprias demandas, é possível dizer que não se pode combater um sem o outro, ou um de cada vez.
4 – A “cultura do cancelamento” não nos serve
É preciso falar sobre o nosso método de combate às opressões. Entendendo o machismo e o racismo como parte de uma estrutura social, não podemos deixar de dizer que o combate aos mesmos no plano individual é necessário, mas insuficiente. A manifestação individual da opressão tem por trás uma forma de organização da sociedade. Não podemos aceitar ou tolerar os que nos oprimem, mas “cancelar” os machistas e racistas não fará diminuir o racismo ou o machismo.
NOTAS
¹ Casamentos e divórcios entre o Marxismo e o feminismo, Cinzia Arruzza, Usina Editorial. Prefácio de Martina Gomes.
² Mulher raça e classe, Angela Davis
³ , Douglas Alves
4 – O que é a teoria da reprodução social? Tithy Battacharya
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