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BRASIL

Lei aprovada em Florianópolis fere a democracia, precariza a educação e ilude profissionais que ficaram sem emprego

Na última segunda-feira, 20, a Câmara de Vereadores de Florianópolis aprovou a lei 10.701/2020, legalizando três questões: Adoção do regime especial de aprendizagens não presenciais; validação das 800 horas para o cumprimento do calendário letivo (a chamada gambiarra pedagógica); e a “recontratação” dos professores substitutos.

Marcos Bueno Canguru*, de Florianópolis, SC

O risco

A adoção do regime especial de aprendizagem não presencial é tema recorrente entre os profissionais da educação desde o início do mês de abril, quando foi imposto às escolas o regime de teletrabalho ou trabalho remoto, de modo a dar continuidade ao calendário letivo.[1]  De forma atropelada, os profissionais do magistério de Florianópolis tem buscado manter o vínculo com os estudantes através de atividades postadas no “Portal Educacional” da prefeitura, ainda que com pouquíssima adesão já divulgada pela própria secretaria municipal de educação (SME).

O município conta com mais de 35 mil estudantes e a SME, ao encaminhar o projeto de lei para câmara de vereadores enalteceu o fato de que até o dia 20 de abril já havia mais de 70 mil acessos. Vamos lembrar que, numa conta rápida, considerando que quase a metade dos estudantes não possuem acesso a internet conforme divulgado pela própria secretaria, provavelmente os cerca de 18 mil estudantes, se assim o fizeram, acessaram o portal, desde o início de abril até o dia 20, em média apenas três vezes. Essa é a prova que a medida adotada é no mínimo limitada para ser promovida como solução durante o período da pandemia.

Outra prova é que, diante da necessidade, diretoras e diretores das unidades educativas do município, em especial do ensino fundamental, têm organizado com as famílias formas para que as mesmas ou o próprio estudante, vão até a escola para buscar as atividades de modo impresso. Em apenas uma escola, em um único dia combinado com as famílias, cerca de 250 “apostilas” com atividades foram entregues. Em outras palavras, certa de 250 pessoas, além da direção da escola, se movimentaram por determinada comunidade, aumentando o risco de contaminação e o consequente aumento da taxa de ocupação de leitos dos hospitais da cidade.

A quebra da democracia no campo educacional

Se já relatamos por aqui em outro momento, o atropelo na implementação das atividades não presenciais, por parte da SME, a verdade é que a lei 10.701/2020, aprovada no dia 20 de abril e publicada no dia 22, fere a legislação no tocante a educação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBDEN) 9394/96, em seu artigo 3º, item VIII afirma que “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:” destacando o item VIII – gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino”. Sendo assim o órgão que regula o Sistema Municipal de Educação é o Conselho Municipal de Educação (CME), por isso cabe ao mesmo a normatização de qualquer nova modalidade de lei, bem como possíveis resoluções acerca da readequação de calendários que deem conta das 800 horas letivas.

A nível municipal, a lei aprovada na última segunda feira ainda fere as leis que criam e dão poder ao CME enquanto instrumento democrático, ou seja, às leis 7.503/2007 e a 7.508/2007 são infringidas em vários de seus artigos, demonstrando total desprezo do governo e sua base na câmara pelo regime democrático.

Além disso, o Sindicato da categoria, SINTRASEM, bem como o próprio CME, abertamente fizeram várias denúncias relacionadas a esse atropelo da prefeitura, porém foram ignorados pela base do governo. A necessidade de um debate amplo, a ser planejado de forma profissional e não atropelada, considerando a prioridade do combate a pandemia, com toda a rede municipal de educação, é o mínimo que se espera de qualquer governo que se coloque como defensor da educação pública, mas não é o caso da atual gestão, pois se promove com sua  “gambiarra pedagógica” apelido divulgado nas redes sociais, da lei 10.701/2020 aprovada.

O Governo do Prefeito Gean ignora o elemento essencial em qualquer processo formativo escolarizado: A mediação do professor. Com as atividades disponíveis virtualmente ou impressas entregues para as famílias, perde-se o elemento Professor no processo, ficando apenas a capacidade autodidata ou intuitiva de alguns familiares e estudantes.

A ilusão da categoria e a realidade do desemprego para muitos professores

O item mais objetivo da lei 10.701/2020 aprovada, que levou inclusive parte da oposição a ser favorável, diz respeito a recontratação dos professores e professoras admitidos em caráter temporário (ACTs). Mas afinal o termo não era “manutenção do emprego”? Por que agora o termo é “recontratação”?

Desde o início da pandemia os movimentos sociais em geral e os sindicatos em específico (SINTE e SINTRASEM) tem defendido que nenhum profissional fique desempregado. No campo educacional, essa defesa ficou evidente com a proposição feita pela Deputada Estadual Luciane Carminatti (PT), a qual virou lei e garantiu a manutenção do emprego para todos os professores substitutos da rede pública estadual durante o período de pandemia.

Em Florianópolis a proposta não foi diferente, porém teve um desfecho distinto:

  • Em resumo, conforme a lei orgânica do munícipio, os vereadores não podem propor lei que digam respeito ao serviço público. Nesse sentido cabe ao prefeito encaminhar os projetos dessa natureza.
  • Vereadores da bancada do PSOL, PT e PDT indicaram isso a prefeitura que ignorou a questão por um longo período.
  • A vereadora Carla Ayres (PT) encaminhou um projeto com o mesmo teor da lei estadual aprovada, mesmo sabendo da especificidade do município de Florianópolis, objetivando levantar o debate e pressionar a prefeitura a agir.
  • O projeto municipal envolvendo a questão foi questionado e enrolado pela base do governo municipal durante três longas sessões na câmara, ampliando a aflição dos trabalhadores já demitidos.
  • Somente na sexta-feira passada, dia 17/04 um projeto nesse sentido foi encaminhado a câmara de vereadores.

Ao barganhar os empregos dos ACTs com os outros dois itens já citados acima, o então projeto de lei deu um nó nas duas bandeiras que até então estávamos em defesa: 1º Manutenção do emprego dos ACTs; 2º Pela NÃO realização de atividades virtuais com cobrança de frequência para os estudantes[2]. Ainda assim, a oposição se articulou e apresentou emendas ao projeto, dentre as quais uma que alterava o texto da lei em relação aos empregos dos ACTs, garantindo a manutenção de todos os contratos que porventura findassem durante a pandemia.

Obviamente a oposição foi atropelada pela base do governo, a qual rejeitou as emendas e em seguida, aí sim junto com a oposição, aprovou a lei 10.701/2020, na sessão da última segunda feira. Se por um lado houve mais uma derrota frente ao governo, pudemos comemorar que pelo menos alguns ACTs, não sabemos quantos, teriam seus empregos mantidos. Só que não.

A lei foi sancionada no dia 22/04, quarta feira. No dia seguinte (quinta-feria) os diretores e diretoras receberam orientações administrativas relacionadas a como “recontratar” os professores e professoras ACTs com contratos já findados, mas apenas os que serão “necessários à efetivação do Plano de Trabalho – Teletrabalho”. Alguns ACTs comemoram, outros começaram a se questionar o que isso significa e é aí que chegamos ao ponto de nossa reflexão.

Como houve um atraso no concurso público realizado o ano passado, os efetivos não puderam assumir no início desse ano, o que provocou a contratação de muitos ACTs para ocuparem “classe vaga”, ou seja, lotações de servidores efetivos que ainda não escolheram a respectiva vaga. Essa contratação teve duração até 09/04, data prevista para que então os efetivos assumissem, mas veio o coronavirus e de fato atrapalhou mais ainda o que já estava bagunçado. Nosso primeiro questionamento é:

  • Os profissionais que findaram o contrato em 09/04 terão sua recontratação a partir do dia 10/04 ou apenas após o dia 22/02, data de publicação da lei 10.701/2020? Pelas orientações dadas aos diretores e diretoras, já é sabido que esse grupo receberá a rescisão do contrato no início de maio e o ajuste do que faltou apenas no início de junho. É justo se desculpar pela burocracia da folha de pagamento e quebrar o orçamento de famílias inteiras até o início de junho? Não é preciso nem lembrar que a esmagadora maioria do magistério é composto de mulheres e muitas destas detém o principal ou o único orçamento em seus lares.

Se a “efetivação do plano de trabalho-teletrabalho” refere-se apenas a quantidade de profissionais previstos para cada escola, independente da pandemia, com a lei 10.701/2020 os demais profissionais que “sobrarem” quando do retorno dos respectivos titulares do cargo ficarão à míngua, ou seja, sem emprego. Se é verdade que a lei permitiu a recontratação da maioria dos ACTs que teve seu contrato terminado em 09/04, muitos outros ficaram ou ficarão sem emprego. Nesse sentido é necessário questionarmos ainda:

  • Quantos professores e professoras ficaram desempregados desde o início do isolamento social em 17/03 e que não serão recontratados, por estarem em vagas de afastamento para tratamento de saúde do titular, por exemplo?
  • Como ficará o desconto de todos os profissionais de 30h e 40h que tiveram seu auxílio alimentação cortado pela metade no mês de março? Não haverá reembolso? Agora ninguém mais receberá, uma vez que estamos trabalhando em casa?
  • No início de maio, entre os dias 10, 11 e 12, vencem mais um montante de contratos de ACTs, os quais estavam admitidos devido a licença prêmio do titular da vaga. Foram liberados dois servidores por unidade educativa para entrar de licença prêmio neste primeiro quadrimestre de 2020, ou seja, se pelo menos um servidor tirou licença por unidade educativa, teremos desempregados, a partir desse período, pelo menos 120 pessoas. Provavelmente o número será ainda maior. Assistiremos a isso sem nenhuma mudança?
  • Como um profissional professor ou mesmo auxiliar de sala, conseguirá outro emprego no período da pandemia, no qual todas as escolas, inclusive particulares, estão com as aulas suspensas?

Enfim, o governo Gean, em seu último ano de mandato (esperamos que não volte nunca mais!) deixará como legado para a educação do município o total descaso com o recurso humano do serviço público, o qual já elevou nossa rede inclusive a estar, inclusive, entre as melhores do país. Agora o legado é um conjunto unidades educativas com obras mal feitas, de forma acelerada, com planejamento pífio e sem qualidade; um secretário de educação que despreza a democracia, ignora o papel do Conselho Municipal de Educação e distorce as atribuições do CME na mídia; além de um quantitativo de centenas de professores e professoras, sem emprego, sem perspectiva. Parabéns Gean, és um monstro!

 

NOTAS

[1] Já apresentamos o problema dessa proposta em matéria divulgada em 07/04/2020 – https://esquerdaonline.com.br/2020/04/07/ead-florianopolis-prefeito-quer-que-metade-dos-alunos-voltem-a-frequentar-a-escola/

[2] A nível federal o governo Bolsonaro tem feito isso de forma rotineira, como exemplo da PEC da morte, Medidas provisórias de auxílio ao combate a COVID-19 etc. Aqui em Florianópolis também, como exemplo da lei que aprovou as organizações sociais “O.S.” enquanto negociava a data-base da categoria, a aprovação de verba para asfalto com a desculpa de auxiliar na retomada da economia pós-pandemia etc. A verdade é que deveríamos já estarmos melhor preparados para esse jogo, mas a urgência no enfrentamento a pandemia, as lutas pela vida e não os lucros, tem tomado o tempo de toda organização política atuante em favor da classe trabalhadora.

 

*Marcos é militante da Resistência/PSOL em Florianópolis.