Segundo fontes históricas, presumivelmente num dia 10 de janeiro do calendário romano, no ano de 49 a.c, o general Júlio Cesar atravessou as águas do Rubicão, um pequeno rio localizado no centro da península itálica e que servia de fronteira entre a província da Gália e o território diretamente vinculado à cidade de Roma. Ao tomar tal atitude, Cesar desafiou o Senado violando a lei que vedava expressamente qualquer general de transpor, acompanhado de seu exército, aquela fronteira natural.
Sabia Cesar que era um caminho sem volta, uma investida mortal para ele ou para seus adversários na enfraquecida república romana. Por isso, segundo cronistas da época, ao se lançar à travessia, o general teria professado em grego, língua adotada pelas elites romanas, as seguintes palavras: Anerrifthô Kubos (“É jogado o dado”). Com o passar do tempo, o senso comum as traduziu cunhando a famosa expressão A sorte está lançada.
Há uma semana, no dia 19 de abril de 2020, pequenas, porém perigosas hordas fascistas trajadas de verde-amarelo foram às ruas em todo o Brasil. Em cada cidade, dirigiram-se aos portões dos quartéis do exército clamando por uma intervenção militar, fechamento do Congresso e um novo AI-5. Em resumo, pediram a volta da Ditadura. No ato de Brasília o principal orador foi ninguém mais, ninguém menos, que o próprio presidente da República. Diante da horda, o capitão fez um discurso implacavelmente direto e ameaçador: “Não negociaremos nada!”. Foi uma declaração de guerra às garantias democráticas e ao que ainda resta da combalida democracia brasileira.
Assim como em Roma, a sorte foi lançada. Ao discursar num ato que pedia o fechamento do Congresso e volta da Ditadura, Bolsonaro violou a Constituição Federal e cometeu crime de responsabilidade, imputável com o impeachment. Porém, a deposição de um presidente não é um confronto de teses numa arena jurídica, e sim uma luta travada num campo de batalha superior, o da política. Sabemos que o desenlace de tal processo não se dará por meio do melhor argumento para refutar interpretações de artigos, incisos e alíneas. Mas pela imposição de uma correlação política e social de forças tal, que não exista outro caminho ao sistema senão pedir a cabeça do presidente numa bandeja de prata. É isso mesmo que você pensou, não tem jeito, é a luta de classes quem, em última instância, define.
De um domingo a outro, Brasília viveu uma semana de tensão, e a crise política teve seu auge na última sexta-feira, com o pedido de demissão do outrora “Super Ministro” Sérgio Moro. Ao abandonar o barco, Moro denunciou as pretensões do presidente Bolsonaro por amordaçar a Polícia Federal. Em ato contínuo, após um malfadado pronunciamento presidencial, o agora “ex-ministro” tornou públicas provas consistentes de que sim, Bolsonaro queria intervir na Polícia Federal para cometer obstrução de justiça.
O fato é que passo a passo, o inquérito sobre as Fake News que vem desde 2019, e um novo inquérito aberto essa semana para investigar quem financiou os atos pró-Ditadura do último domingo, se aproximam do círculo mais íntimo do presidente. Carlos, o filho 02, já é apontado pelas investigações conduzidas pela PF como o articulador central do chamado “gabinete do ódio”, uma rede criminosa instrumentalizada para coagir e disseminar noticias falsas contra inimigos do bolsonarismo. Outra nuvem pesada que paira sobre a cabeça do presidente são as investigações do assassinato de Marielle Franco. O próprio Bolsonaro deixou nítido, em rede nacional, o seu incômodo com o inquérito que, camada por camada, vai revelando uma teia de relações entre o clã bolsonaro e os membros do escritório do crime, miíicia que executou Marielle e o seu motorista, Anderson Gomes.
A gravidade dos fatos demonstram que, para Bolsonaro, trata-se incontornavelmente de uma luta pela sua própria sobrevivência. Justo por isso, ao sentir-se fortalecido com a vitória no embate que resultou na demissão do ministro da Saúde, dobrou a aposta e foi ao ato de domingo último com a intenção de colocar seus adversários em xeque, como se diz no Xadrez. Todavia, o que parece é que o capitão menosprezou o fato de que, recorrendo novamente à imagem de um xadrez, Moro é uma peça muito mais valiosa que Mandetta. O afastamento do ex-juiz da Lava-jato, a operação jurídico-política que pavimentou o caminho do golpe de 2016, parece ter provocado deslocamentos no chamado “andar de cima”. Moro e o “lavajatismo” têm intrínsecas conexões com setores da burguesia brasileira que agora podem evoluir mais aceleradamente para uma linha de oposição ao governo.
A imagem do pronunciamento de sexta é simbólica, pois mais próximos ao presidente estavam ministros como Ernesto Araújo e Damares, que conformam o chamado núcleo ideológico. Mais importantes que estes primeiros, posicionaram-se nas extremidades os ministros militares, dentre eles os generais Braga Neto e Augusto Heleno. Parece ser exatamente essa a fotografia que resume o momento atual do governo Bolsonaro. Um governo cada vez mais imagem e semelhança de seu capitão, e afiançado pelos generais militares. Até mesmo o ministro da economia, o ultra neoliberal Paulo Guedes, parece agora estar numa localização escanteada.
O complexo quadro da atual crise política torna-se ainda mais dramático por dois fatores. O primeiro deles, objetivo, é a gravíssima pandemia do coronavírus que, no Brasil, já se aproxima dos 60 mil infectados e rompeu a barreira dos 4 mil mortos. Já não são poucos os Estados que alertam para o iminente colapso do sistema de saúde, fato que sinaliza um horizonte próximo de agravamento da crise e maior sofrimento, em especial da população pobre trabalhadora. O segundo fator, esse subjetivo, é que por uma série de elementos a classe trabalhadora não tem sido um fator preponderante nessa crise política. A fatura da derrota de 2016, da desmoralização da estratégia petista que hegemonizou a esquerda ao longo de décadas, parece ainda estar sendo cobrado a todos e todas nós, petistas ou não.
Portanto, os movimentos fundamentais, no tabuleiro de xadrez da crise brasileira na presente conjuntura, estão lamentavelmente circunscritas as frações burguesas em disputa. Todavia, a disputa é real, voraz, e não um jogo de cena. Cenários serão colocados à mesa: Impeachment, renúncia, repactuação com a manutenção instável do governo, e porque não, uma investida de Bolsonaro para dobrar seus adversários e fechar total ou parcialmente o regime. A esquerda e os trabalhadores, nós que somos os 99% da população, corremos em desvantagem e contra o relógio. Seguimos derrapando em tentativas insuficientes para construção da unidade e de uma verdadeira frente única de classe. Nos apressemos! Ou tudo que nos restará será o papel de testemunhas da História. Os próximos dias serão decisivos, valerão por semanas, meses, quem sabe até anos.
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