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TEORIA

Para onde vai o neoliberalismo? 

Daniel Severo Schiites, de Porto Alegre, RS

Trump, no muro que ergue na fronteira com o México

Com a eclosão da crise sanitária gerada pela pandemia do Covid-19 e o lançamento de pacotes de socorro estatais de diversos países geridos por governos neoliberais, não foram raras as manifestações dentro do campo da esquerda no sentido de vaticinar a morte do neoliberalismo. Também não foram raras as afirmações de que sairíamos dessa crise mais solidários, menos individualistas e valorizando mais o pertencimento coletivo. Mas nos cabe questionar: é possível falar que essa perspectiva, que logrou consolidar uma hegemonia, tanto no modelo econômico quanto no campo ideológico e cultural, poderá morrer de causas naturais?

Para empreender a presente reflexão, entendo como válidas as elaborações que propuseram que o neoliberalismo para além dos pacotes econômicos mobilizados por meio do que ficou conhecido como Consenso de Washington também conseguiu se consolidar como uma ideia dominante. Aqui ressalta-se que não se está afirmando que o neoliberalismo nasce com o Consenso de Washington, uma vez que sua gênese remete aos idos de 1938, no Colóquio Walter Lippmann. Todavia, aqui o Consenso de Washington é utilizado como recurso ilustrativo, constituindo um esforço de sistematização de medidas governamentais voltadas a impor as políticas neoliberais em larga escala em economias da periferia do capitalismo.

Como bem destacou José Luiz Fiori, o Consenso de Washington traduziu-se em um conjunto de medidas elaboradas na década de 1990, de forma conjunta, por uma série de órgãos multilaterais, como FMI e Banco Mundial, e podem ser resumidas em três pilares: (a) austeridade fiscal e disciplina monetária; (b) o aumento da competitividade, a partir da desoneração do capital, jogando as empresas na competição global aberta, eliminando-se os subsídios do Estado, e; (c) o desmonte o dos modelos de industrialização seguidos por países da periferia global após a 2ª Grande Guerra com desmonte de direitos sociais. (1) Essa foi a lógica que permeou as reformas que marcaram a década de 90 e posteriormente as medidas de desmonte de direitos promovidas após o golpe que retirou Dilma Rousseff da Presidência.

Além destas medidas econômicas, o neoliberalismo também buscou consolidar uma nova racionalidade, tornando-se dominante também nos campos ideológico e cultural. Vejamos.

O economista austríaco Friedrich Hayek, em O caminho da servidão, publicado em 1944, conhecida como uma das obras seminais do neoliberalismo, defendia que a concorrência livre entre os indivíduos constitui o mais elementar princípio de organização da sociedade. Assim, Hayek defendia que todas as armas necessárias para se impor uma sociedade edificada sobre a concorrência deveriam ser utilizadas, sendo que à intervenção do Estado, especialmente por meio do Direito, caberia um papel destacado. Vejamos as palavras do próprio autor:

A doutrina liberal é a favor do emprego mais efetivo das forças da concorrência como um meio de coordenar os esforços humanos, e não de deixar as coisas como estão. Baseia-se na convicção de que, onde exista a concorrência efetiva, ela sempre se revelará a melhor maneira de orientar os esforços individuais. Essa doutrina não nega, mas até enfatiza que, para a concorrência funcionar de forma benéfica, será necessária a criação de uma estrutura legal cuidadosamente elaborada, e que nem as normas legais existentes, nem as do passado, estão isentas de graves falhas. Tampouco deixa de reconhecer que, sendo impossível criar as condições necessárias para tornar efetiva a concorrência, seja preciso recorrer a outros métodos capazes de orientar a atividade econômica.

[…]

O bom uso da concorrência como princípio de organização social exclui certos tipos de intervenção coercitiva na vida econômica, mas admite outros que às vezes podem auxiliar consideravelmente seu funcionamento, e mesmo exige determinadas formas de ação governamental(2)

Como observaram Christian Laval e Pierre Dardot, a atenção dada por Hayek ao direito se baseia na construção de uma “sociedade de direito privado”, onde as regras do direito privado, que são regras gerais de conduta, devem reger também o direito público, tradicionalmente regidos por regras de organização. Nessa perspectiva, as regras do direito privado devem ser universalizadas, aplicando-se também ao Estado e às organizações por ele conduzidas. (3) Desse modo, os autores concluem que, na perspectiva de Hayek, o Estado só pode intervir na esfera privada do indivíduo para puni-lo pela infração contra uma regra.

Em que pese o presente texto não pretenda reivindicar a totalidade do pensamento de Laval e Dardot, reconhece-se que ao estudar o neoliberalismo os franceses trouxeram alguns apontamentos bastante importantes, que podem contribuir na análise da esquerda socialista acerca do fenômeno.

Aqui, cabe observar a tese central do ensaio A nova razão do mundo, dos autores franceses: “O que está em jogo […] é a construção de uma nova subjetividade, o que chamamos de ‘subjetivação contábil financeira’, que nada mais é do que a forma mais bem-acabada da subjetivação capitalista”(4)

De acordo com os autores,

O neoliberalismo é um sistema de normas que hoje estão profundamente inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. Além disso, devemos deixar claro que esse sistema é tanto mais “resiliente” quanto excede e muito a esfera mercantil e financeira em que reina o capital. Ele estende a lógica do mercado muito além das fronteiras estritas do mercado, em especial produzindo uma subjetividade “contábil” pela criação de concorrência sistemática entre indivíduos(5)

É nesta lógica que José Luís Fiori define a hegemonia neoliberal como o triunfo do pensamento único. Explica o autor que, após a queda do Muro de Berlim, nenhuma ideia secular alcançou tanto sucesso quanto o neoliberalismo. As próprias ideias desenvolvimentistas em que pese tenham conquistado grande prestígio entre economistas e governantes, nunca se traduziram em utopia(6)

Apesar de ter fracassado tanto nos planos econômicos quanto sociais, uma vez que não gerou mais crescimento nos países onde foram implementados os pacotes do FMI e do Banco Mundial, resultando em um aprofundamento das desigualdades, o pensamento neoliberal triunfou no plano político ideológico. Como observou Perry Anderson, o neoliberalismo logrou consolidar-se como hegemonia, “disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas”(7)

As ideias que definem o pensamento neoliberal não são de todo novidade no marco do capitalismo, posto que representam uma fase do mesmo, assim como não é novidade que a burguesia historicamente apresentou grande capacidade de tornar as suas ideias dominantes. Entretanto, o neoliberalismo além de diversas reformas fiscais e retirada de direitos também consolidou uma profunda reestruturação produtiva, criando uma massa de trabalhadores precários, tendo como fenômeno mais marcante a chamada uberização.

Trata-se de um fenômeno de grande impacto no mundo do trabalho e com profundas consequências culturais e ideológicas ao passo que encontramos uma massa enorme de trabalhadores abandonados à própria sorte, em jornadas extenuantes e sem qualquer proteção social, acreditando honestamente que estão empreendendo. 

Outro fenômeno que, pelo menos aparentemente, é novo, é que tais ideias agora se fundem com o arcabouço ideológico do movimento neofascista que encontra grande audiência em todo o mundo. Aqui não se deixa de reconhecer toda uma série de medidas de livre mercado promovidas pelo fascismo italiano e alemão.

Notemos que não é um fenômeno aleatório que o fascismo dos nossos tempos, que aqui trataremos como neofascismo, também se alicerça sobre as principais ideias do pensamento neoliberal. Na verdade, no Brasil os pilares do pensamento neoliberal compõem o núcleo essencial da ideologia neofascista, expressando-se como uma forma bastante bem-acabada de ódio contra todos os explorados e oprimidos.

Se observarmos que o neofascismo se nutre do profundo desespero das massas e oferece a esse desespero uma solução reacionária, podemos inclusive temer que a brutal crise econômica que ainda se agravará em razão dos impactos da pandemia possa ampliar ainda mais a audiência do neofascismo e consequentemente das ideias neoliberais. Nada indica que a praga do neoliberalismo terá um fim por morte natural, como propagado por importantes lideranças da esquerda. 

O que se apresenta é que a pesada mão do Estado será ainda mais violenta contra os explorados e oprimidos, para que se sufoque as resistências às medidas genocidas de salvamento do capital ao passo que centenas de milhares de trabalhadores são jogados no desemprego. A brutal repressão estatal nunca foi um problema, nem sequer uma contradição, para os neoliberais, de Pinochet à Tatcher, de Reagan à Macri, de Piñera à Bolsonaro. Neste aspecto não há novidade nenhuma!

Só existe um conjunto de atores capaz de impor uma derrota real ao neoliberalismo e consequentemente ao neofascismo e encantar as massas com a perspectiva da emancipação e liberdade. Apenas uma frente única dos explorados e oprimidos, constituída pelo conjunto das organizações da classe trabalhadora, apresentando-se como alternativa capaz de conquistar o poder com um programa radical, é capaz de oferecer um novo horizonte para a massa de trabalhadores e trabalhadoras abandonados à própria sorte pelo genocídio neoliberal. 

 

 

NOTAS

1- FIORI, José Luís. 60 lições dos 90: uma década de neoliberalismo. Rio de janeiro: Record, 2001.

2 – HAYEK, Friedrich. O caminho da servidão. 5. ed. Rio de Janeiro: Institiuto Liberal, 1990. pp. 57-58.

3 – LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 172.

4 – LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 31.

5 –  LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 30.

6 –  FIORI, José Luís. 60 lições dos 90: uma década de neoliberalismo. Rio de janeiro: Record, 2001. p. 75.

7 –  ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo (Cap. 1). In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23. p. 23.

 

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