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CULTURA

No caminho do curtume

José Pereira de Sousa Sobrinho, de Cariri, CE

O Café, de Portinari

Inspirado em “Inferno Provisório” e Arábia.

 

Parece que tá todo mundo cansado, tudim com os corpos grudados, ninguém parece se ver, ninguém parece ver aquilo, alguns nem olham, a vista só no celular. Fico olhando pros rostos, ninguém me enxerga de verdade, não me reconhecem, não se reconhecem, parece que não tão ali comigo, como se fosse melhor não enxergar aquilo tudo. Talvez nós somo mesmo estranhos, somente rostos anônimos que se esbarra de vez em quando no ônibus, no mesmo caminho diário.

Pode até ser que não vamos pro mesmo lugar, talvez seja só o ônibus o que a gente tem em comum, essa lata gigante que recolhe a gente próximo de casa, pra deixar a gente em qualquer lugar onde a gente fica preso por umas oito ou dez horas. Isso deve ser só minha forma de ver as coisas, essa mania de encontrar uma lógica nisso tudo. Os olhos se cruzam, mas logo se separam. Devo ser o único que me enxergo nesse percurso como um prisioneiro que vai pra prisão. Afinal, não posso chamar de liberdade isso de todo dia ser obrigado a ir ao mesmo lugar pra entregar minhas forças, meu tempo, minha vida. Nunca me perguntaram se era isso que queria pra vida, na verdade, sempre disseram que era isso que devia fazer. “Labutar, trabalhar, ser um homem digno, direito, ganhar o dinheiro honesto, suado, essas coisas todas”. Foi assim que me ensinaram que tinha que ser, não foi uma escolha, não, isso não é liberdade.

Não me sinto mais livre que os escravos de antigamente. Olho pra minha mão, pra minha pele, até que parece escura. Dever ser isso… É a continuidade da escravidão? Somos escravos de um novo jeito? Um tipo de escravo que não sabe que é escravo? Será isso possível?! Mas… não deve ser a cor da pele. Tantos no trabalho de pele branquinha, tão igualzinho a mim, o corpo todo esfolado. A vida é igualzinha, sem tirar nem por, logo cedo o castigo do ônibus lotado, a luta pra subir, luta pra descer, o trabalho duro, nova luta pra subir, descer de novo, caminhar, escapar dos maus elementos do bairro, cumer, um futebol talvez, desmaiar na cama pra de amanhã começar tudo de novo. É, somos iguaizinho, olho pra esses rostos e essa ideia não me sai da cabeça. Mas nenhum olhar parece me reconhecer, não dessa forma, desse jeito que olho pra eles como se olhassem pra mim, como se tivesse um espelho em suas caras, ao contrário, eles parecem estranhar, parece que, quando me olham, ao invés de enxergar um espelho, é como se enxergasse um muro branco, uma parede que não diz nada.

Será que era assim com os escravos também? Não sei, nunca estudei, mal aprendi a ler, leio um pouco emendando letra com letra, ajuntando os sons das palavras pra no final tentar montar tudo. Não deu pra estudar, tive que começar cedo essa labuta. Carregando tijolo, ajudando em obra pra botar o de comer em casa. Tudo que sei aprendi assim na vida.

Mas essas ideias não começaram assim do nada. A vida ensina, mas nem sempre é sozinho. Lá na obra sempre iam uns estudantes, acho que são estudantes, todos muito jovens. Ficavam falando lá fora no carro de som do sindicato, num entendia quase nada, unas palavras difícil, ficava ouvindo atento. Mas, disfarçando, porque o capataz ficava de olho. Uma vez entendi um negócio que ele disse. Essa ideia não me saiu mais da cabeça, desde então fico matutando ela, todo dia. Não sei falar com as palavras bonitas do estudante, mas era mais ou menos assim… que na vida não somos todos iguais, que uns trabalham e sofrem, e outros não trabalham e ficam com a maior parte do trabalho, e não sofrem. Aquilo fez um pouco sentido, na mesma hora vinha chegando um dos donos da construtora. Tava num carrão, acho que era importado, ele tava bem vestido, vi de longe, poucas vezes aparecia lá.

Foi aí que entendi um pouco de tudo, desde esse dia, sempre no ônibus fico olhando pra todos, fico me perguntando, será que eles sabem disso? Que somos iguais? Que estamos todos nesse ônibus, tudo na mesma. Dá vontade de gritar, falar pra todo mundo que tamo do meu jeito, e que parecemos os escravos de antes. Mas num sei falar que nem o estudante. Devia de trazer ele aqui, colocar ele no meio do ônibus pra ele gritar pra todo mundo isso que ele me disse, que nem esses crentes que entram no ônibus falando de Deus e tudo mais. Só que Deus todo mundo já conhece, o que eles não sabem é que somos iguais, nós do ônibus, naquele outro também, na parada, no canteiro, nas lojas, tudo igual. Aí entendi que tamo indo todos fazer de um jeito diferente a mesma coisa, entregar nossas vidas, nossa juventude, nossa saúde pra terminar todos do mesmo jeito, enquanto os outros vão andar bem vestidos, em carrões, a gente nem vê eles. Desde esse dia, comecei a pensar nessas coisas, penso mais dentro do ônibus, apertado, mesmo no calor, no trabalho não dá não, tenho que fazer tanta força que não nem pra pensar. Mas, ali, olhando pra todo mundo, fico me perguntando será que eles não percebem que tamo todo mundo aqui na mesma situação, como se fosse um boi que tá indo pro curtume, e lá vão tirar nosso couro. Só que nesse curtume é diferente, se tira da gente uma tira de couro de cada vez, vai nos deixando sem pele de pouquim em pouquim, um dia de cada vez, como se soubesse a conta certa de coro que é para tirar a cada dia, para poder viver o dia seguinte e dar mais uma tira de coro. Assim, nos matam um pouco cada dia. É isso que eu vejo no rosto de todo mundo, vejo meu rosto, e esse rosto se parece com um boi, que por própria vontade entra na fila pra entregar sua tira de couro, um dia por vez, sem saber o que tá entregando a vida. Pronto. Cheguei na obra… vou entrando no curtume … pra deixar mais uma tira de coro da minha pele. Pra entregar mais um tira de vida. 

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literatura