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BRASIL

A produção tecnológica no Brasil em tempos de coronavírus: o complexo econômico industrial da saúde em questão

Jorge Henrique*, de Brasília, DF
Divulgação / Unicesumar

Dos países que estão na iminência de um crescimento da curva de contágio do coronavírus, o Brasil é um dos que mais preocupa, seja pelo tamanho da sua população, pelas vulnerabilidades socioeconômicas, pelo perfil de morbimortalidade da população ou pela falta de testes e equipamentos de proteção individual (EPIs) para a população e profissionais.

Pela falta de vacinas e de medicamentos comprovadamente seguros para combater o coronavírus, o isolamento social ainda está sendo defendido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde (MS) como a principal medida para conter o crescimento de sua transmissão. Contudo, para que seja efetiva, outras duas medidas são essenciais para esse controle: a testagem em massa e a proteção da população e dos profissionais de saúde com EPIs.

Entre os países que estão sendo mais atingidos pela COVID-19, o Brasil é o que menos realiza testes por milhão de habitantes. São apenas 296 testes por milhão, enquanto os EUA e a Alemanha realizam 7 mil e 15 mil testes por milhão, respectivamente (1). Além dessa falta de testes, o País passa por uma crise de abastecimento de EPIs, com a preocupante falta de máscaras N95 para profissionais e de ventiladores mecânicos para pacientes que evoluem com Síndrome Respiratória Aguda Grave.

Os Estados do Nordeste brasileiro denunciaram, recentemente, o desvio, pelos EUA, de uma carga de 600 respiradores artificiais encomendada à China. Outros países também relataram o roubo de contratos pelos norte americanos. A suspeita é de que os EUA tenham oferecido um valor mais alto pelos produtos. Além da pirataria moderna, a empresa americana 3M, que produz máscaras N95, foi proibida, pelo governo, de exportar seus produtos para outros países, acirrando a disputa internacional por equipamentos.

A pandemia revelou a vulnerabilidade do Brasil e do Sistema Único de Saúde (SUS) frente ao mercado internacional de materiais estratégicos para a saúde

A pandemia de coronavírus revelou a vulnerabilidade do Brasil e do Sistema Único de Saúde (SUS) frente ao mercado internacional de materiais estratégicos para a saúde. Demonstrou, também, a dependência do Brasil dos produtos fabricados pelos países centrais, principalmente dos insumos farmacêuticos, dos componentes tecnológicos e dos produtos acabados. O País, agora, corre contra o tempo para abastecer hospitais e laboratórios para combater o vírus.

Para se compreender tal fragilidade e o peso do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) na base produtiva brasileira, faz-se necessário analisar o papel do País no sistema internacional de Estados, que ora se comporta como semicolônia, exportando riquezas para os países desenvolvidos, ora se comporta como submetrópole, funcionando como plataforma industrial das multinacionais para o comércio da América Latina.

O anuário da revista Exame, Melhores & Maiores, publicada em 2019, que fala sobre as maiores empresas brasileiras, revelou que, das 200 principais empresas que atuam no Brasil, o destaque foi para os bancos e multinacionais – de 7 países: EUA, Alemanha, França, Inglaterra, Japão, Espanha e Itália -, sendo que 90% destas empresas são produtoras de commodities: café, soja, celulose, petróleo, ferro, etc. Juntas elas lucraram mais de R$ 700 bilhões (2). Em contrapartida, o peso da indústria de transformação no PIB que já foi de 33%, hoje é de 16%, e nos últimos cinco ano o setor saiu do superávit para o déficit de 65 bilhões de dólares.

A partir desses dados, pode-se concluir que o domínio das multinacionais sobre o agronegócio e a mineração é corolário do processo de desindustrialização do País, que quebra a indústria nacional de alta tecnologia para justificar a importação de produtos dos países desenvolvido, deixando o País mais dependente e vulnerável no mercado internacional de produtos.

A redução da participação da atividade industrial no PIB foi acompanhada também pela retração dos investimentos em Ciência e Tecnologia, principalmente após a aprovação da Emenda Constitucional 95, conhecida como EC do Teto de Gastos, que congela o financiamento público em saúde e educação por 20 anos, com impactos negativos para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, consequentemente para pesquisa e desenvolvimento.

Conforme estudo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), os investimentos efetuados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 2018, foram equivalentes aos praticados 20 anos atrás e à metade do que foi investido em 2014. Já o investimento de 2019 foi 65% do ano anterior. Ou seja, os investimentos diminuíram ano após ano (3).

A narrativa negacionista e anticientífica de Bolsonaro que elegeu as universidades públicas como alvo de ataques ideológicos e colocou no centro da disputa política o questionamento à ciência e ao conhecimento, teve reflexos negativos sobre o investimento nas áreas de educação, ciência, tecnologia e saúde, considerando que o CNPq investe na produção de tecnologia nessa área.

A consolidação do CEIS está fortemente relacionada aos investimentos em inovação tecnológica e aos avanços científicos, pois à medida em que se constrói um sistema universal de saúde com as dimensões do SUS para atender a demanda sanitária de toda a população do País, pressupõe-se a imprescindível expansão da base produtiva da saúde (4).

Nesse sentido, a indústria de base química e biotecnológica, que produz medicamentos, vacinas e reagentes para diagnóstico, e a indústria de base mecânica e eletrônica, que produz equipamentos que impactam nas práticas assistenciais, devem fomentar o setor de serviços, constituído por hospitais, ambulatórios e serviços de diagnose e terapia, os quais organizam o consumo de todos esses produtos.

Devido à falta de estímulo para o desenvolvimento dessa base produtiva nacional – apesar de toda sua relevância -, o Brasil se torna altamente dependente de produtos fabricados em outros países, principalmente dos desenvolvidos. Isso se expressa no déficit da balança comercial da saúde decorrente do volume de importações de produtos da saúde, ultrapassando a casa dos US$ 10 bilhões.

Como a dinâmica produtiva e inovativa do Complexo Econômico-Industrial da Saúde depende do papel que o País cumpre no sistema internacional de estados e, em menor ou maio grau, na dependência das economias centrais, existe um descompasso nos esforços relacionados às atividades de pesquisa e desenvolvimento, com o risco de ampliação do hiato tecnológico entre os países desenvolvidos e os de baixa renda.

A diferença no investimento global em ciência e tecnologia, onde 97% concentra-se nos países de alta renda e 3% nos países de média e baixa renda, tem a ver com o percentual do gasto público dos países em saúde. A participação média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) nos gastos públicos em saúde, por exemplo, é de 73% do total, podendo chegar, nos sistemas mais universais, como no Reino Unido, a 87% dos gastos. Já a participação média em países em desenvolvimento, como nos países do Mercosul, é de 40% apenas (5).

A proteção de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem é uma das principais medidas de controle do coronavírus

Nos últimos dias, as denúncias de falta de EPIs têm preocupado os profissionais da saúde, pois a proteção de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem é uma das principais medidas de controle do coronavírus. Muitos destes profissionais relatam a falta de máscaras N95, máscaras cirúrgicas, aventais e óculos de proteção, além da falta de leitos de UTI e de respiradores mecânicos.

Desde quando se registrou o primeiro caso de COVID-19 no Brasil, o Ministério da Saúde tem prometido o abastecimento de EPIs nos hospitais, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e Unidades Básicas de Saúde (UBS), mas, até o momento, os profissionais não registraram o fornecimento, o que tem gerado um clima de aflição entre os profissionais, já que em alguns países, enfermeiros e médicos chegaram a ser 14% do total de contaminados.

O que se viu até o momento foi a aquisição de seis milhões de unidades de máscaras faciais, o equivalente a 40 toneladas, trazida pelo segundo maior avião cargueiro do mundo, o Antonov 124-100. Mas a compra não foi realizada pelo Governo Federal, mas pela empresa goiana Nurtriex – atuante na importação, produção e distribuição de produtos hospitalares, além de cosmecêuticos e nutracêuticos -, que investiu R$ 160 milhões na compra.

A falta de testes para diagnóstico da COVID-19 tem gerado também uma preocupação nos profissionais da vigilância e epidemiologistas, pois o primeiro passo para entender a doença e seus efeitos na população é conhecer o número de pessoas infectadas e o perfil dessas pessoas. A subnotificação dos casos impede que os governos adotem medidas mais eficazes no combate ao coronavírus.

Apesar da existência do Instituto Adolfo Lutz, um laboratório público de pesquisa e vigilância epidemiológica de São Paulo, da Fiocruz e de Universidades que dispõem de laboratórios, equipamentos e pesquisadores capazes de realizar pesquisas que auxiliam no combate ao coronavírus, os equipamentos e os reagentes necessários são limitados, permitindo que apenas os pacientes mais graves sejam testados (6).

Com a crise de abastecimento de equipamentos, materiais e insumos, o Brasil tem dependido mais dos países europeus, da China, da Coréia do Sul e dos EUA para importar EPIs e testes para diagnóstico, aumentando as incertezas em relação ao abastecimento, já que a maioria dos países do mundo necessitam desses materiais e as cargas podem ser interceptados no meio do caminho.

No Brasil, a indústria ainda não dispôs sua linha de produção para a construção de máquinas e equipamentos

Na Europa e nos EUA, empresas como a Ford, Tesla, GM, Fiat, Ferrari, Jaguar, Land Rover e Rolls-Royce, direcionaram sua produção para a fabricação de ventiladores e outros equipamentos hospitalares. No Brasil, no entanto, a indústria ainda não dispôs sua linha de produção para a construção de máquinas e equipamentos, apesar da iniciativa de universidades como a UnB, UFRJ, UNIFESP e USP, para produção de respiradores (6).

O papel estratégico do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, nesse momento, seria o de potencializar a pesquisa, o desenvolvimento e a produção de equipamentos, materiais e medicamentos para a saúde, com o objetivo de diminuir a dependência tecnológica dos países desenvolvidos e reduzir a vulnerabilidade do SUS, garantindo a autossuficiência de produtos estratégicos para o País e a geração de empregos.

O desenvolvimento deste complexo só pode ser efetivado por meio de políticas públicas que fomentem a Ciência, Tecnologia e a Saúde, e que garantam a articulação da dimensão econômica e social para geração de empregos, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais, e para garantia da soberania nacional.

*Jorge Henrique é enfermeiro pela UFPI, Especialista em Saúde Coletiva e Mestrando de Políticas Públicas em Saúde pela FIOCRUZ Brasília.

 

 

NOTAS

1 – https://worlometers.info/coronavirus/

2 – EXAME. As 1000 maiores empresas do Brasil. Edição Melhores & Maiores 2019. Acesso em 12/04/2020. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/pais-esta-em-processo-de-desindustrializacao-diz-fiesp/.

3 – NEXO. Ciencia, Tecnologia e Inovacao: a operação desmonte e seus resistentes. Acesso em 11/02/2020. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2020/Ciência-Tecnologia-e-Inovação-a-‘operação-desmonte’-e-seus-resistentes

4 – GADELHA, CAG., and COSTA, LS. A saúde na política nacional de desenvolvimento: um novo olhar sobre os desafios da saúde. In FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. A saúde no Brasil em 2030 – prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: desenvolvimento, Estado e políticas de saúde [online]. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 2013. Vol. 1. pp. 103-132. ISBN 978-85-8110-015-9. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

5 – GADELHA, CAG., VARGAS, MA., MALDONADO, JMS., BARBOSA, PR. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil: dinâmica de inovação e implicações para o Sistema Nacional de Inovação em saúde. Revista Brasileira de Inovação, Campinas (SP), 12 (2), p. 251-282, julho/dezembro 2013.

6 – IPEA. Ciência e Tecnologia frente à pandemia. Acesso em 11/04/2020. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/182-corona