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BRASIL

Professora diz que SEEDUC RJ vive realidade paralela: “A urgência hoje é nos mantermos vivos”

Em carta-desabafo que circulou pelas redes sociais, professora critica a tentativa do governo de impôr o Ensino a Distância em meio a pandemia, e alerta que é preciso “ler a realidade como ela se apresenta, não como nós gostaríamos que ela fosse”.

Marcela Almeida*, de Niterói (RJ)
Divulgação / SEEDUC

Secretário estadualde Educação, Pedro Fernandes Jr.

Sobre a EAD na educação estadual

Milhares de mortes no mundo causadas pelo novo coronavírus. No Brasil, o número de casos confirmados sobe a cada dia. O número de mortes, idem. A população não dispõe de testes. Hospitais de campanha sendo construídos “para ontem” na tentativa de correr contra o tempo para evitar a tragédia que se anuncia. Isolamento social sendo apontado hoje como a única possibilidade de impedir a contaminação em massa. O ministro da Saúde avisa que o SUS entrará em colapso ainda em abril em função do número de casos graves. Todas as previsões são assustadoras para o nosso país e para o nosso estado. E a SEEDUC-RJ nisso tudo? A Secretaria, através de seu secretário de Educação, tenta vender uma realidade paralela, uma realidade na qual todos os alunos têm moradia, água e esgoto, família com estabilidade financeira, além de smartphone, tablet, computador e Wi-Fi ilimitado. Todos têm condições estruturais, emocionais e cognitivas similares capazes de lhes proporcionar um aprendizado via EAD sem qualquer prejuízo em meio à calamidade. Na mesma realidade paralela, os professores são bem pagos, são valorizados, têm licenças para capacitação/formação e estão aptos a modificar seu planejamento de aulas em tempo recorde, alterando radicalmente as atividades pedagógicas da modalidade presencial para EAD. Ah, e não têm família também, ninguém para se preocupar, além de uma saúde de ferro. São imunes ao coronavírus. Seria perfeito, hein?

Uma pena que no mundo real existem alunos que não conseguirão acompanhar as aulas porque suas famílias mal têm o que comer. Em tempos de COVID-19, talvez a Seeduc desconheça que grande parte dos responsáveis de alunos vivem de atividades informais. Inúmeras famílias vivem na quase absoluta miséria, dependem de Bolsa Família pra ter feijão e arroz na mesa e não dispõem nem de celular, nem de um PC, mesmo antigo. Muitos dos nossos alunos, hoje, não têm sequer fornecimento de água, não têm sistema de esgoto na comunidade e estão com as condições de higiene seriamente comprometidas. Em relação aos profissionais de educação, talvez a Seeduc tenha se esquecido de que estamos há seis anos com o salário congelado, que sofremos com acúmulo de funções nas escolas porque não há funcionários suficientes para dar conta do trabalho. Talvez o secretário não saiba, afinal, não é professor, que o processo de ensino-aprendizagem difere de acordo com a modalidade. Que nós fizemos concurso para lecionar na modalidade presencial e que para adquirir conhecimentos a respeito da modalidade EaD nós precisaríamos de uma formação séria, de um período de adaptação, tanto para nós quanto para os nossos alunos. A julgar pela live de hoje (**), o secretário parece desconhecer que direção de escola e equipe técnico-pedagógica não fazem milagres, não recriam a realidade, nem os dados a respeito dela.

Nessa necessidade incompreensível de enxergar o mundo somente através da realidade paralela, a Secretaria parece esquecer-se de que nós não somos máquinas. Não é possível abstrair da angústia pelo isolamento, do medo da contaminação, do temor pelo aumento de casos, do terror pelo aumento dos mortes dia após dia. A gente olha pro lado e tem medo de perder quem amamos. A gente olha pra si e tem medo de deixar aqueles a quem amamos.

Então, é necessário que a Secretaria esqueça os ditames das políticas gerencialistas da educação que regem, há muitos anos, a atividade da pasta e aceite que o ano letivo 2020 não existe mais como nós o pensamos em seu início, que a normalidade que o secretário tenta passar para as pessoas também não existe, que não podemos jamais prejudicar os alunos com avaliações a partir de uma plataforma que eles não dominam. É preciso “ler” a realidade como ela se apresenta, não como nós gostaríamos que ela fosse. O coronavírus está devastando o mundo. A urgência hoje, portanto, não é cumprir 200 dias letivos. A urgência hoje é nos mantermos vivos. Pois lutemos pra isso. E depois, com o que restar de cada um de nós, vamos, professores, funcionários e alunos, tentar recomeçar, tentar, enfim, nos reconstruir.

 

*Marcela Almeida é professora e diretora do SEPE-Niterói.

** O secretário de Educação do Rio de Janeiro, Pedro Fernandes, fez a live no dia 30 de março, anunciando as aulas online, em parceria com o Google. No dia 04, o MInistério Público, provocado pelo mandato do deputado Flavio Serafini (PSOL) recomendou ao governo do Estado a suspensão das aulas a distância.

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