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BRASIL

As disputas orçamentárias em tempos de COVID-19: a nova escalada de ataques ao funcionalismo público

Gênesis de Oliveira*, do Rio de Janeiro (RJ)
Cleia Viana/Câmara dos Deputados

Em novembro de 2019, publicava aqui neste site uma reflexão intitulada Fundo Público e desmonte do Regime Jurídico Único (RJU) dos servidores: 30 anos de ataques, em que apresentava a relação entre a expropriação dos direitos trabalhistas consolidados no interior do RJU e a punção da parcela do orçamento destinada ao pagamento dos servidores públicos. Este movimento vem promovendo profundas alterações do trabalho na esfera pública e não pode ser separado do permanente ajuste fiscal do Estado brasileiro, que, em minha compreensão, passa pela expropriação não só dos direitos sociais, como também pelos direitos trabalhistas no interior do Estado. Nesta direção, minhas pesquisas atuais (1) têm contribuído para o debate acerca das transformações do mundo do trabalho na esfera pública, algo que vem sendo relegado no âmbito dos grandes debates presentes na sociologia do trabalho de inspiração marxista.

Não é de hoje que estamos vivendo (e resistindo) a uma intensa onda de ataque aos servidores públicos. Mais recentemente, no ano de 2018, ainda no governo Temer, foi apresentada uma proposta que previa a redução do salário inicial dos servidores federais para 5 mil reais, sob o discurso do endividamento do Estado e da necessidade de reduzir os gastos com servidores públicos. O projeto não teve força política para avançar, dado o desgaste do governo Temer, contudo, abria-se ali uma nova escalada para desmonte do funcionalismo público, orientadas por ataques que visavam incidir no valor do trabalho dos servidores. Estou seguro de que os ataques abertos em 2018 são continuidade e aprofundam um desmonte que vem desde a instituição do RJU por meio da lei 8.112/1990. 

Antes mesmo de estourar a pandemia do COVID-19 no Brasil, a Contrarreforma Administrativa, a ser encaminhada por Guedes,  já era esperada no Congresso e visava, basicamente, realizar um profundo ataque aos direitos dos servidores públicos através das anunciadas medidas de revisão de salários iniciais, número de carreiras, prazo para alcançar a estabilidade e redução da mesma pra algumas carreiras. Paralelo a Contrarreforma Administrativa, a PEC 186/2019  tramita no Senado e prevê a redução dos salários e jornada de trabalho dos servidores em 25%, impedimento de reajuste salariais, congelamento de concursos e contratações por dois anos. Estas medidas podem ser acionadas caso o governo federal descumpra a regra de ouro. Estados e municípios poderão acioná-las quando as dívidas chegarem a 95% das despesas obrigatórias. As duas medidas visam atacar, por um lado, os servidores que venham a ingressar no funcionalismo público e, por outro, os que nele já se encontram. O fio condutor de ambos os ataques situa-se na punção da parcela orçamentária destinada ao pagamento de pessoal.

A legitimidade destas medidas vem sendo angariadas de modo que a sociedade acredite que os gastos com pessoal são excessivos, atribuem a este segmento a paralisia no âmbito do orçamento primário. O governo pretende, com estas medidas, e às custas dos servidores, assegurar o insustentável Teto dos Gastos públicos consagrados na EC 95. Já no ano do 2020, entre o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) temos uma redução de 18,8 bilhões de reais com pessoal, segundo o George Soares, secretário de Orçamento Fiscal, esta “economia” foi oriunda de uma “superestimativa” no âmbito do Ministério da Educação em 2018, “reparada” esse ano. 

Se na esfera privada, os ataques aos trabalhadores têm buscado salvar os empresários em tempos de redução da taxa de mais-valia, impondo a socialização das perdas do capital, na esfera pública esses ataques têm se movido para ampliar a parcela do fundo público apropriada pelo capital em tempos de crise mundial. Esta punção da parcela do orçamento é promovida por profundas mudanças na legislação que expressam expropriação de direitos sociais e trabalhistas na esfera pública. A punção orçamentária vem sendo operada a partir da ampliação das terceirizações e da restrição dos concursos públicos, levando um número cada vez mais reduzido de servidores a operarem uma constante crescente demanda de trabalho. Trama-se nos corredores de Brasília uma nova PEC para expropriar direitos trabalhistas dos servidores públicos. Parece que Guedes e sua equipe estão partindo do pressuposto que os gatilhos previstos na PEC Emergencial já estão acionados a partir da chegada do COVID-19. 

Dentre as medidas anunciadas pelo jornal O Globo, a proposta contempla a redução de 25% dos salários e da carga horária de servidores federais do executivo, legislativo e judiciário até 2024 (2), impedimento de progressões funcionais e ajustes salariais até dezembro de 2022. Se o Estado de emergência previa um corte temporário por até dois anos, o Orçamento de Guerra (como vem sendo apelidado por Brasília) prevê quatro profundos anos de intensa precarização do trabalho na esfera pública. Para além destas medidas, o governo pretende ampliar a Desvinculação de Receitas da União (DRU) de 30% para 60%, reafirmando nossa compreensão de que o desmonte das políticas sociais é profundamente articulado ao desmonte do trabalho na esfera pública. O governo tem sinalizado que o enfrentamento do COVID-19 passará, centralmente, pela saúde dos mercados. A saúde do mercado está expressa em 1,603 trilhões de reais previstos no orçamento público de 2020 para pagamento de juros e amortização da dívida, parcela esta intocada nas propostas do governo e que corresponde a mais de 45% do orçamento total da União, estimado em 3,36 trilhões de reais. No mesmo ano, o governo irá gastar 337,9 bilhões com servidores públicos, parcela essa que representa 9,4% do total do Orçamento da União. Quando observamos o gasto com os servidores, frente aos gastos com juros e amortização da dívida, percebemos que os gastos com funcionalismo representam apenas 21,1% dos gastos com a dívida e seus encargos, ou seja, o gasto com a dívida pública é cerca de 400% maior que o gasto com o funcionalismo público. Parece-me nítido que o problema orçamentário da União não tem sua origem no gasto excessivo com servidores, da mesma forma, a resolutividade da crise econômica não tem relação com este segmento, que recentemente foi violentamente atacado com as novas alíquotas da previdência. 

Os dados acima permitem identificar que o capital requer a parte do butim destinado ao pagamento de pessoal. Aparentemente, a real emergencial hoje no Brasil é enfraquecer os direitos trabalhistas do RJU e o COVID-19 tem aproximado o governo do tão desejado corte de gastos com pessoal pela via da redução direta dos salários, processo esse na pauta nacional desde 2018. A utilização da pandemia como argumento da emergencial fiscal revela o mais perverso oportunismo do governo para atacar o funcionalismo público e implementar sua agenda ultraneoliberal, reavivando de forma mais cruel, a PEC Emergencial que já havia sido enfraquecida no debate político. Num cenário de pandemia, de aumento vertiginoso dos números de contaminação a emergência fiscal passa, necessariamente, pela destituição da parcela orçamentária destinada a remunerar a parasitária classe de investidores da dívida pública, pelo fim das renúncias ficais e da EC 95. Estou igualmente convicto de que o combate ao COVID-19 passa, indispensavelmente, pelo fortalecimento das políticas sociais e dos trabalhadores que a operacionalizam, pela devida recomposição dos quadros, de forma a ampliar o atendimento de uma população em crescente adoecimento. As medidas tramadas no âmbito da PEC a serem apresentadas pelo Executivo visam mover parte do orçamento para manter inabalável os ganhos do capital financeiro e os incentivos a empresários que não têm, nem sequer, o compromisso de manter os postos de trabalhos.

O debate orçamentário aqui travado não pode encerrar-se num conjunto de porcentagens. Em meus estudos recentes,  mostro que os cortes e a dificuldade de ampliar o orçamento de pessoal impactam, diretamente, no cotidiano de milhões de trabalhadores da esfera federal e impulsionam profundas alterações nos processos de trabalho no âmbito da esfera pública. Assim, tenho apontado que um profícuo caminho para debater as particularidades das alterações do trabalho na esfera pública passa, inevitavelmente, pelo debate em torno da disputa do fundo público em tempos de crise do capital, onde as restrições orçamentárias provocam profundas alterações no trabalho. O exemplo recente de redução massiva de trabalhadores no INSS, aliado a uma perversa política de não realização de concursos públicos desde o ano de 2015, tem provocado uma intensificação do trabalho, filas nas instituições e uma massa de trabalhadores sem acesso aos benefícios previdenciários. A redução do contingente de trabalhadores traz à tona mecanismos de teletrabalho, estabelecimento de metas de atendimento, digitalização do processo de trabalho levando a uma consequente aceleração dos atendimentos. Estamos diante de um processo de redução da jornada formal de trabalho e intensificação do trabalho na esfera pública, cujo objetivo não consiste na ampliação da taxa de lucro, mas sim numa maior punção da parcela do fundo público pelo capital. Como pode-se observar, estas medidas não afetam apenas aos servidores públicos, mas ao conjunto de trabalhadores que dependem ou virão a depender das políticas sociais do Estado.

O contexto colocado mundialmente, de recessão da economia, ampliação do desemprego, aumento da pobreza explicita a necessidade de ampliação da esfera pública, das políticas sociais e dos trabalhadores improdutivos do Estado. Somente desta forma será possível proteger parcelas sociais altamente precarizadas e conter uma crise social sem precedentes.  A política econômica do governo Bolsonaro vem sinalizando uma direção oposta. O impedimento de novos concursos públicos irá ampliar a massa de trabalhadores expropriados do RJU, a proliferação de contratados por trabalho parcial, intermitente, temporário ou por grandes empresas especializadas na contratação de trabalhadores. Este processo já está em curso e circula pelos grupos de Whatsapp as chamadas de contratações emergenciais, altamente precarizadas, e, sobretudo, desvinculadas da parcela orçamentária destinada ao pagamento de pessoal, e além da  proliferação de vínculos de trabalho cada vez mais fragilizados. Este processo expressa a tendência prevista por Bresser Pereira, o RJU para uma casta seleta de trabalhadores e o COVID-19 tem aberto um caminho para um ataque sem precedentes no âmbito da punção orçamentária destinadas ao pagamento de pessoal. 

O caminho de análise aqui traçado permite-me incluir o ataque aos servidores públicos  ao massacre planejado por Bolsonaro, que passa por estimular a volta ao trabalho, colocando milhões de brasileiros em risco, ampliando a proliferação do COVID-19 afetando, mais duramente, as parcelas mais pobres da sociedade brasileira. A redução da carga horária dos servidores aliada ao aumento da DRU, em tempo de enfraquecimento da quarentena, irá acelerar o colapso nos serviços que compõem a seguridade social, levando ao aumento do contágio e a redução da capacidade de enfrentamento na esfera pública. Parece-me igualmente correto afirmar que o combate ao vírus passará por uma mão de obra cada vez mais precarizada, ampliando as formas de trabalho flexíveis, expropriadas dos direitos trabalhistas previstos no RJU e com salários cada vez mais reduzidos.

O combate ao COVID-19 passa pelo combate ao COVID-17 e pela extinção do vírus ultraneoliberal que tomou conta de nosso país. É preciso estar explícito de que a nossa defesa não está atrelada aos nossos ganhos salariais, mas, sim: a) à qualidade dos serviços prestados àqueles que necessitam do Estado para sua reprodução social; b) ao trabalho improdutivo, remunerado com renda, que não gera mais-valia; b) a parcela do orçamento destinada ao pagamento de pessoal.  A qualidade dos serviços ofertados para população passa pelas formas de contratação e remuneração do trabalho. A nós, servidores públicos, cabe a tarefa de nos mobilizarmos sem sair de casa, algo que não faz parte da tradição militante, precisamos, sobretudo, reinventar nossas formas de luta. Parece nítido que junto a nova MP – que permite corte de salários e carga horária de até 50% na iniciativa privada com complementação pela via do Seguro Desemprego – virá a nova EC para repartir a crise com os trabalhadores do Estado. Este contexto exige a conformação de uma frente ampla, de articulação aos demais setores da classe trabalhadores na defesa do trabalho, dos direitos sociais para derrotar o massacre costurado em várias frentes pelo governo Bolsonaro.

*Gênesis de Oliveira é professor adjunto na Escola de Serviço Social da UFRJ.


 

NOTAS

1 –  A síntese desses estudos está consolidada na tese de doutorado intitulada Fundo Público e crise do capital: expropriação e flexibilização dos direitos dos servidores públicos.

2 –  Ao que tudo indica, essa medida será desidratada, tirando o judiciário e possivelmente o legislativo, restando o ajuste fiscal para os trabalhadores do executivo.

3 – Em minha compreensão a ampliação das terceirizações por meio de grandes empresas tem sido uma peça fundamental para a transformação de trabalhadores improdutivos em trabalhadores produtivos, que valorizam o capital no âmbito dos serviços prestados pelo Estado. 

4 – Restrição do funcionalismo público à formulação, ao controle e à avaliação das políticas públicas (retirando sua implementação), à fiscalização da execução das leis, ao poder de polícia e à defesa, à procuradoria e aos advogados da União, à assessoria direta a parlamentares, à regulação e controle do mercado e à direção de órgão do poder judiciário.