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BRASIL

Fundo Público e desmonte do Regime Jurídico Único dos servidores: 30 anos de ataques

Gênesis de Oliveira*, do Rio de Janeiro (RJ)
Agência Brasil

Esplanada dos Ministérios

Desde a década de 1990 está em curso no Brasil um ataque permanente ao funcionalismo público, que se acirra nos momentos de crise e se abranda nos períodos de crescimento da economia. Podemos dizer que desde o momento da instituição do Regime Jurídico Único (RJU) pela União, por meio da Lei nº 8.112/1990, temos um permanente processo de alterações nas legislações que vem gradativamente enfraquecendo e consolidando seu desmonte. Neste processo, identificamos o crescimento da terceirização no Estado através da Lei nº 8.666/93 e os Decretos nº 2.271/1997 que regulamentam as terceirizações de atividades-meio no Estado. As terceirizações vem se consolidando como um violento ataque ao RJU dos servidores públicos, na medida em parcela crescente do trabalho no Estado passa a ser operacionalizado por empresas terceirizadas, que prestam serviços que antes eram realizados por servidores públicos. A EC nº 19/1998, conhecida como viabilizadora da contrarreforma administrativa do Estado, altera a compreensão sobre o RJU, modificando o art. 39 da Constituição Federal. Assim, retira-se a necessidade do RJU para os servidores, tornando possível a existência de vários tipos de vínculos de trabalho dentro de um mesmo setor da Administração Pública. A essa medida atrela-se a Lei de Responsabilidade Fiscal (n° 101/2000) que constitui-se como um importante instrumento de ajuste fiscal do Estado brasileiro e, dentre as medidas de austeridade, determina que a União não pode ter mais de 50% de suas despesas líquidas com pessoal, processo esse que irá ampliar as contratações altamente precárias e expropriada dos direitos trabalhistas do RJU.

Essas contrarreformas deformaram o trabalho na esfera pública e a ampliam progressivamente a punção, pelo capital, da parcela do orçamento destinado ao pagamento de pessoal. O golpe de 2016 amplia sem precedente o desmonte até aqui apresentado, no âmbito do ataque ao funcionalismo público ele visa consolidar o projeto de contrarreforma administrativa prevista por Bresser Pereira (1997), isto é, a restrição do funcionalismo público à formulação, ao controle e à avaliação das políticas públicas (retirando sua implementação), à fiscalização da execução das leis, ao poder de polícia e à defesa, à procuradoria e aos advogados da União, à assessoria direta a parlamentares, à regulação e controle do mercado e à direção de órgão do poder judiciário. Portanto, as contrarreformas ultra neoliberais visam exterminar o funcionalismo público tal como conhecemos hoje, após três décadas de continuo desmonte neoliberal.

A aprovação da EC 95/2017 instituiu o Novo Regime Fiscal e define um congelamento dos gastos orçamentários, isto é, a partir de 2018 as despesas primárias só poderão ser ajustadas com base no limite máximo estabelecido. Este limite é definido com base na variação da inflação no ano anterior, medida a partir do dados do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA), pelos próximos 20 anos, a contar de 2017. A EC congela não só o Orçamento das Políticas Sociais, mas, também, o gasto com a folha de pagamento da União, impossibilitado o crescimento do funcionalismo público, impulsionando a terceirização e a intensificação da exploração dos trabalhadores já concursados. Se o decreto de 1997 previa cerca de treze atividades preferencialmente terceirizáveis, o Decreto 9507/2018 permite que o Ministro do Planejamento e Desenvolvimento determine as atividades terceirizáveis. Nesta direção, a portaria 443/2018 aumenta para, aproximadamente, trinte e uma atividades terceirizáveis na esfera pública. Fato esse que expressa a tendência de reduzir o funcionalismo público, conformando um Estado de terceiros e operacionalizado por terceiros.

A essa medida se atrela o Decreto nº 9.739/19 publicado no governo Bolsonaro, que revoga o Decreto nº 6.944/09 e institui um conjunto de regras que dificulta a realização de concurso público. O governo Federal pretende economizar, com essa medida, 195 milhões de reais ao ano. Após o STF formar maioria sobre a inconstitucionalidade de redução da carga horária e salário dos servidores, o governo apresenta uma Emenda à Constituição visando operacionalizar seu perverso projeto, prometendo economizar 12 bilhões de reais em 2020 através da redução de 25% da carga horária e dos salários dos servidores. Para além disso, decretado a Emergência Fiscal, a União não poderá dar reajuste, criar cargo, reestruturar carreira, promover servidor, realizar concurso, criar verbas indenizatórias. Busca-se, também, acabar com a estabilidade do servidor que possua vinculação partidária. A essas medidas de ataque aos servidores públicos, anuncia-se a contrarreforma administrativa ultra neoliberal, que pretende avançar sobre as medidas criadas ao longo da década de 1990 e desmantelar completamente o RJU, anunciando o fim da estabilidade para os novos servidores públicos, a contratação via CLT, a redução dos salários iniciais do funcionalismo público aos praticados na iniciativa privada.

Em meus estudos recentes expressos em minha tese de doutorado (1) venho apontando a articulação indissociável entre a destituição da parcela orçamentária destinada as políticas sociais e a parcela destinada ao pagamento do funcionalismo público. Uma compreensão que propõe apreender o permanente ajuste fiscal do Estado brasileiro não só pela destituição das políticas sociais, mas, sobretudo, pela expropriação dos direitos trabalhistas construídos no âmbito do RJU.

Com base na análise das contrarreformas que incidem sobre o trabalho na esfera pública, apresento duas tendências que vem paulatinamente desconfigurando o RJU, são elas: a) terceirizações; b) a restrição de concursos públicos que acarreta a intensificação do trabalho dos servidores. Na primeira tendência temos um constante crescimento dos gastos com empresas terceirizadas, o que significa um aumento da parcela do orçamento destinada ao capital para operacionalizar um contingente de trabalhadores altamente precarizados e expropriado dos direitos trabalhistas do RJU. Segundo dados do Ministério do Planejamento, os gastos com terceirizações passaram de 857 milhões em 2002 para 1,6 bilhões em 2006, atingindo a marca de 4,3 bilhões de reais em 2012. Esses valores expressam uma punção permanente e crescente sobre a parcela do orçamento destinada a folha de pagamento dos servidores públicos. A segunda tendência está atrelada a primeira, temos um intenso processo de restrição dos concursos público no governo FHC com perdas significativas para o trabalhador estatutário. No governos de Lula e Dilma é possível verificar uma recomposição e crescimento dos servidores estatutários, sem que isso implicasse o decréscimo da terceirização. É possível identificar que a partir dos anos de 2015, momento de agravamento da crise do governo Dilma, termos um cenário de redução de concursos públicos que vem se acirrando desde o golpe de 2016 (2). Aprofunda-se, desde então, as pressões produtivistas sobre os servidores, tensionados a atenderem maiores demandas dentro do mesmo espaço de tempo, com a mesma remuneração e estruturas precárias de trabalho. A digitalização do trabalho tem sido um pilar central para aumentar a produtividade e frear a recomposição dos quadros por meio de concurso público. Podemos observar a implementação do teletrabalho no INSS (Portaria 681/2019), onde 30% do servidores passarão a trabalhar de casa, terão que prover a estrutura de trabalho e deverão aumentar em 30% sua produtividade. Expropria-se aqui a jornada de trabalho dos servidores, ampliando sem precedentes sua intensificação. Esse processo acirra a superexploração da força de trabalho na esfera pública, cujo objetivo não se destina a criação de superlucros (MARINI, 2013), mas à ampliação dos valores transferidos ao capital.

Após a contrarreforma da Previdência, a contrarreforma que ataca os servidores públicos visando a destituição da parcela orçamentária destinada a folha de pagamento é a grande pauta do governo. Atribui-se um gasto excessivo com funcionalismo público, retomando a retórica da década de 1990, o que requer de nós força para desmontar essa cortina de fumaça que passa centralmente pela depreciação do servidor público. Dados da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revelam que, em 2015, o emprego público representa 12% do total de ocupações, média menor que nos países Europeus e apenas 1% acima do Chile, país com ampla tradição liberal. O Orçamento da União no ano de 2017 destinou a folha de pagamento dos servidores a marca de 284,5 bilhões de reais. No mesmo ano, segundo relatório do TCU, a União deixou de arrecadar 354,7 bilhões em isenções de impostos, dados esses que revelam as prioridades do governo e refirmam a compreensão de que o problema orçamentário não advém nem das políticas sociais, nem do funcionalismo público, mas sim de uma punção que exige, cada vez mais, transferência de valor para o capital. Após as despesas com os benefícios da seguridade social, o gasto com o funcionalismo é o segundo maior na lista das despesas primárias, segundo dados da Lei Orçamentária Anual de 2019, representando 325,9 bilhões de reais. Esse valor vem sendo propagado ora de forma isolada ao total do orçamento, ora comparado apenas com os gastos primários, fazendo com que a sociedade pense que se trata de uma fatia exorbitante. Quando trazemos essa fatia para o interior do Orçamento da União no ano analisado, estimado em 3,38 trilhões de reais, observamos que eles representam cerca de 10% do Orçamento, metade do valor despendido com pagamento de juros da dívida pública no mesmo período.

Está em curso no Brasil um intenso processo de desmonte do trabalho na esfera pública que está profundamente articulada a punção operada sobre a folha de pagamento da União. Na esfera produtiva as constantes expropriações de direitos trabalhistas expressas em alterações nas legislações que regulamentam o trabalho tem por objetivo ampliar a taxa de mais-valia apropriada pelos distintos capitalistas que participam do movimento de rotação do capital. Na esfera pública, que não produz lucro, essas expropriações visam ampliar a parcela do fundo público apropriada de diversas formas pelo capital, tais como: pagamento e amortização da dívida pública; superávit primário; remuneração de empresas capitalistas que prestam serviços ao Estado (terceirização). Temos um perverso ataque ao fundo público e ao trabalho remuneração renda, produzindo amplas esferas de trabalhadores lançados ao mercado destituídos de estabilidade, planos de carreiras e em condições aviltantes de reprodução.

Mandel (1985), já sinalizava que a crise do capital e a sua onda longa de estagnação abria um processo de supercapitalização, isto é, a permeabilidade do capital por todas as áreas da vida social, expandindo a lógica da mercadoria e transformando direitos em serviços, ofertados pela esfera privada. O processo de supercapitalização vem se intensificando com a emersão do neoliberalismo e se aprofundando no âmbito do ultra neoliberalismo, sua viabilidade é operacionalizada por um intenso processo de expropriação de direitos, que alteram profundamente as legislações sociais de modo a desregulamentá-las e abrir caminho para sua mercantilização. Em nossa compreensão, a supercapitalização implica a transformação de trabalho produtivo em improdutivo, isto é, na medida em que os direitos sociais passam a ser assegurados pela esfera privada, o trabalho passa a ser operacionalizado sobre a lógica do valor. Na medida em que se privatiza e terceiriza a saúde, a previdência, a educação, temos, consequentemente, a ampliação do trabalho produtivo e a redução do trabalho improdutivo.

Não há dúvida que teremos uma ampla luta pelos próximos anos, se temos uma história recente de derrotas sucessivas, temos um legado que vem da destituição de Collor da Presidência, o famoso “caçador de Marajás”. É nessa história que temos que beber, de modo que a defesa do trabalho pago com renda, que a parcela do fundo público gasta com pessoal não seja ainda mais depreciada a ponto de se tornar insignificante no âmbito do Orçamento. É uma luta contra a supercapitalização dos direitos que transforma trabalho improdutivo em trabalho produtivo, contra a incessante marcha do capital em busca de novos espaços de valorização e do espraiamento da lógica do valor por todos os processos de trabalho. Essa defesa não é por um segmento da classe trabalhadora, é pelo conjunto dos trabalhadores que dependem dos serviços sociais operados pelo Estado para sua reprodução e desfrutam, cada dia mais, de piores serviços prestados. A qualidade dos serviços passa centralmente pelos mecanismos de contratação do trabalho, da mesma forma a reprodução do capital passa cada vez mais pelo fundo público, portanto, não é luta de categoria ou de segmento da classe, é luta de classes. Estamos seguros que um caminho fecundo para compreender a crescente precarização e alteração do trabalho na esfera pública passa centralmente pela expropriação dos direitos trabalhistas construídos no RJU que viabilizam a punção da parcelas do orçamento destinado ao pagamento de servidores públicos.

 

*Gênesis de Oliveira é Doutor em Serviço Social e Professor da UFRJ.

 

NOTAS

1 Fundo Público e crise do capital: expropriação e flexibilização dos direitos dos servidores públicos.

2 A quantidade de egressos por meio de concurso público, segundo dados do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão passa de 33.477 em 2014 para 21.663 em 2015, 20. 663 em 2016 e chega a marca de 18.438 em 2017.