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BRASIL

Quatro motivos para defender o Fora Bolsonaro

Fábio José de Queiroz, de Fortaleza, CE
Walter Campanato / Ag Brasil

Escrevo este artigo, de certo modo, até em respeito aos que, “em nome da democracia”, julgam ser um erro defender a antecipação do fim do mandato do governo Bolsonaro. Pois é, mesmo no plano da democracia representativa, mandato é o que recebe todo governante, o que não significa um cheque em branco no qual ele pode escrever qualquer coisa, no nosso caso, durante quatro anos. No momento sequer enfatizo o caráter questionável do processo que conduziu Jair Bolsonaro-Mourão ao Palácio do Planalto. Fundamentalmente, disponho-me a apresentar quatro motivos que justificam levantar a bandeira do Fora Bolsonaro. Ei-los. 

 

1 – O povo, diante de abuso do poder por parte do governante, tem o direito de destituí-lo

Essa ideia que está contida na frase acima não é de nenhum marxista. Ela expressa o ponto de vista de um pensador burguês muito conhecido no meio intelectual: John Locke. Para ele, os súditos usufruíam do direito ao levante diante de soberanos que adotassem à tirania como caminho.

Aqui, cabe uma pergunta: pode-se ou não concluir que o governo Bolsonaro-Mourão pratica o abuso de poder como regra? Essa prática, absurda em condições normais de pressão e temperatura, se torna absolutamente insuportável em meio a uma pandemia na qual as pessoas morrem simplesmente sem o direito sequer a uma despedida. Todo ritual da morte é sepultado junto com a vítima da Covid-19. São tempos de guerra!

Nesse cenário sofrido, o governo, com efeito, viola princípios e regras elementares de proteção à população. A rigor, ele viola o célebre Estatuto de Roma (1998) e comete (1) crime de genocídio e (2) crime contra a humanidade. Por que, então, preservar um condomínio governamental que atenta contra a vida das pessoas? Seria esse governo algo superior à vida? 

 

2 – Bolsonaro se diverte com os crimes de responsabilidade

Antes mesmo de explodir a crise sanitária, o país já discutia como o presidente da república era pródigo no cometimento de crimes de responsabilidade. Quem nunca se deparou com a denúncia de que Jair Messias Bolsonaro procedia (e procede) de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo? 

Não cabe aqui elencar os múltiplos episódios em que essa questão esteve posta. O fundamental é entender que existe uma crise sanitária em curso e mesmo com os limites fartamente conhecidos, as instituições, no Brasil, discutem e aprovam medidas com vistas a enfrentá-la. Acontece que Bolsonaro se diverte com a aflição do povo e boicota conscientemente às medidas recomendadas por essas instituições, que, em geral, correspondem às indicações de institutos científicos e da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Em suma, o ocupante da presidência confronta cotidianamente medidas de combate a Covid-19, a ponto dos partidos de oposição lançarem mão de um manifesto no qual defendem que “Jair Bolsonaro é o maior obstáculo à tomada de decisões urgentes para reduzir a evolução do contágio, salvar vidas e garantir a renda das famílias, o emprego e as empresas.” O mencionado manifesto exige a sua renúncia. Nessa toada, a direção do PSOL ressalta que o presidente “cometeu reiterados crimes de responsabilidade”. Dentro do próprio partido pelo qual Jair Bolsonaro chegou à presidência cresce o descontentamento. Ainda que em suas fases preliminares, o cerco contra o capitão se fecha. Nem a mídia, que pavimentou o caminho do militar ao centro do poder político, o poupa. Ao contrário, revistas, jornais, sites e a maioria das redes de televisão aumentam o tom contra as barbaridades do admirador do algoz Brilhante Ustra. 

Não se trata, portanto, de se pôr em dúvida às propostas de destituição do governo, mas de se questionar o que justificaria a sua continuidade.

3 – A esquerda não pode hesitar ante a possibilidade de destituir um governo neofascista

Na tradição da esquerda revolucionária, a oportunidade de destituir um governo fascista não é desprezada. Nos parece que houve um breve momento em que o parlamento alemão teve oportunidade de destituir Hitler do poder, e não o fez, e pouco tempo depois os nazistas destruíram da primeira à última das liberdades democráticas. O PC alemão, a socialdemocracia e os sindicatos foram simplesmente aniquilados. A experiência histórica não existe para enfeitar os livros. De certa maneira, é uma orientação importante para não se agir às cegas.

Nesse sentido, usar balizas democráticas para forças políticas cuja estratégia é sepultar as liberdades democráticas e a derrota física da classe trabalhadora é admitir que o suicídio político é uma tática bem-vinda. Para explicitar mais satisfatoriamente esse raciocínio, observe-se a entrevista que Jair Bolsonaro deu ao Datena. O presidente, ao ser indagado, se estaria no seu horizonte dar um golpe de Estado, em lugar de dizer simplesmente não, ele responde: “Quem quer dar o golpe jamais vai falar que quer dar”. 

É necessário, inclusive, entender que a noção de golpe é ampla e, consequentemente, não se limita a uma operação militar ou alguma coisa do gênero. Nesse instante, no leste europeu, o Premiê da Hungria Viktor Orbán – governante que, por sua política e seus métodos, é comparado a Jair Bolsonaro – obteve poderes quase ilimitados para governar por decreto. Nem todas as estradas conduzem a uma situação golpista, mas não se cria esse tipo de situação apenas por um caminho.

Aliás, todo percurso que conduziu o bolsonarismo ao poder está permeado de referências antidemocráticas, do golpe contra a Dilma à prisão do Lula. Tenta se responsabilizar inteiramente o PT por tudo que ocorreu, mas querer culpar tão só os que perderam pela vitória ilegítima e ilegal do bolsonarismo é passar pano para golpista.

A questão-chave é: se a esquerda e os trabalhadores podem evitar a continuidade de um executivo neofascista, de quem se sabe que a estratégia é liquidá-los fisicamente, por que não o impedir de seguir governando?

4 – Fora Bolsonaro-Mourão para o trabalhador não morrer nem de fome nem do vírus

Essa bandeira não está aí por acaso. Ela responde a uma necessidade objetiva, imediata, pois se segue esse governo, e a sua política genocida, o número de mortos e famintos será de tal modo elevado que é muito custoso sequer imaginar ser razoável,  racional, e pior, democrática, a continuidade de um governo que de louco só tem a cara. Esse governo possui uma racionalidade e ela é categoricamente organizada para proteger o empresariado e fazer sucumbir a classe trabalhadora e o país, de fome e/ou de doença.  Em um quadro de crise econômica, social e sanitária a única loucura é argumentar a favor da continuidade desse governo.

As pessoas estão seriamente ameaçadas de morrer de fome ou da Covid-19.

A crise sanitária deve se combinar com o agravamento do quadro econômico, cuja resultante mais provável é a recessão global. É justo pedir ao povo que ele tenha paciência e atravesse esse doloroso período guiado por Bolsonaro-Mourão?

Guedes diz que “Fomos atingidos por um meteoro”, mas o governo do qual ele é ministro, age como se o país houvesse sido atingido por uma bolinha de papel. Há a necessidade de medidas imediatas de socorro às pessoas, notadamente àquelas em que as vulnerabilidades, em relação à pandemia e a fome, são mais visíveis. O governo, no entanto, mescla indisposição e incapacidade, morosidade e cinismo, e esse e outros fatos levam a que um setor das classes dirigentes rompa com o bolsonarismo e abra brechas para que a classe trabalhadora e o povo pobre possam afastá-lo do planalto. 

O tempo da política mudou e exige mudança de atitude e de tática. Se a esquerda não souber se mover nesse terreno movediço, o mais provável é que a burguesia adote como saída para crise uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro, isto é, um novo condomínio governamental em que o presidente seja afastado, mas o ´programa de ataque à nossa classe permaneça. Esse é o sonho de uma noite de verão de um contingente das classes possuidoras, passa por gente como Dória e se favorece de canais de expressão que vão da Globo à Folha de São Paulo. Essa não pode ser a alternativa dos socialistas. Se a alternativa da centro-direita triunfa, abre horizontes insuspeitos para que a nossa classe pague pela crise. 

Em resumo, ou se toma o Fora Bolsonaro, da perspectiva da classe trabalhadora, ainda que a esquerda faça acordos com outros setores nas questões táticas da luta contra o neofascismo (e é impossível, nas atuais circunstâncias, não fazê-lo), ou essa bandeira é monopolizada por aqueles que almejam preservar a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei do Teto dos Gastos, a Reforma da Previdência, e, ainda nessa direção, desejam efetuar o corte do salário do servidor público e o controle das lutas sociais, que podem vir na esteira da catástrofe em andamento. A supressão do governo Bolsonaro deve se realizar com a supressão dessas medidas cabalmente antioperárias e antipopulares. Sem isso, a crise será encaminhada na ótica da burguesia. Se não houvesse outros motivos, esse já seria suficiente para que as organizações socialistas e populares abraçassem as consignas em torno da deposição do governo de extrema direita.

 

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