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MUNDO

Stalin Pérez Borges: “a maioria dos venezuelanos não queremos ser jamais uma colônia dos Estados Unidos”

O Portal Esquerda Online apresenta entrevista com Stalin Pérez Borges, importante dirigente sindical da Venezuela, aproveitando sua presença no Brasil para participar do Congresso da Resistência – corrente interna do PSOL. Pérez Borges é membro do Conselho da Central Socialista Bolivariana de Trabalhadores e um dos dirigentes da organização política socialista venezuelana LUCHAS (Liga Unitária Chavista)

Editoria Internacional do EOL

Agora em abril vai se completar mais um aniversário da derrota do golpe de 2002, sempre um momento histórico importante. Por favor, fale um pouco sobre o chamado processo revolucionário bolivariano, suas fases e perspectivas.

Estes 18 anos de lutas gloriosas se dão no momento mais difícil dos 21 anos dos governos bolivarianos. Não tanto pela emergência que vivemos atualmente, com o surgimento desse “Cisne Negro” chamado coronavírus, ou o COVID 19. Mas o é pela perspectiva de um aprofundamento da crise econômica mundial. Esta, nos últimos dois anos, já estava levantando sua cabeça, mas poderá ser muito difícil porque o que está por vir, como resposta ao aprofundamento da crise da parte de Trump, como o grande representante do imperialismo, será um ataque demencial, com maiores agressões aos povos e setores de massas que ousam levantar-se para resistir às consequências da situação econômica e social que o próprio imperialismo nos faz padecer.

O que eu quero dizer é que a comemoração, em 2020, do abril de 2002 se dará em uma situação atravessada por todos os danos dessa pandemia e com maiores ataques brutais de parte do imperialismo.

Além do mais, é necessário saber que o mais contraproducente e lamentável é que o bolo de comemoração de abril terá, para muitos bolivarianos, um sabor amargo. Depois de Maduro resistir aos ataques mais duros jamais recebidos por qualquer governante na história moderna, de parte do governo dos Estados Unidos e de seus cúmplices em todo o mundo, o próprio presidente vem tomando medidas contrárias às que Chávez desenvolveu: empresas estão voltando a ser privatizadas, na forma de comodato, e títulos de propriedade de terras são devolvidos a alguns fazendeiros, e até se está financiando novos setores privados; já foram entregues hotéis e explorações de mineração para grandes corporações. O governo também aplica medidas de caráter neoliberal, acompanhando esses retrocessos com criminalização aos protagonistas de protestos, com frequentes atuações policiais desmedidas e repressivas, tendo como colofão um aprofundamento da impunidade, sobretudo para os militares implicados em corrupção e administrações desastrosas em muitas empresas e instituições públicas.

Apesar de tudo o que disse acima, não podemos nos confundir, como setores da direita fazem permanentemente. Tenho que reconhecer que o processo bolivariano ainda tem grande apoio popular. O governo se aproveita dessa realidade. Somente no dia 10 de março presenciei uma mobilização multitudinária do povo, da qual participaram as representações de três estados do centro do país. Nessa mobilização se destacava a presença enorme de jovens e mulheres.

Isso acontece porque ainda há esperança de que o processo bolivariano pode retomar seu rumo e conseguir as conquistas que nos levem a um país melhor para todos, com democracia socialista e em liberdade. O que Chávez chamou de “socialismo do século XXI”. No entanto, o viés principal dessa massiva presença é que, ainda, a maioria dos venezuelanos não queremos ser jamais uma colônia dos Estados Unidos.

Por favor, explique a visão da Luchas sobre a intensificação dos ataques à soberania da Venezuela pelo imperialismo estadunidense, especialmente com a posse de Trump?

As agressões por parte do governo Trump são criminosas e merecem ser levadas a julgamento e qualificadas de crimes de lesa humanidade, e a história não julgará apenas o Trump, mas todos aqueles governos, os demais poderes constituídos e meios de comunicação que o apoiaram, assim como seus ataques contra a Venezuela. O bloqueio tem significado fome e morte: impede a entrada de remédios, equipamentos médicos, alimentos e matérias-primas. As medidas do governo dos EUA saquearam as propriedades dos venezuelanos, dinheiro e reservas de ouro que tínhamos em outros países. Expropriaram empresas do Estado, como a CITGO nos Estados Unidos, que é a maior fornecedora de combustível e proprietária do maior número de postos de serviços naquele país. Na Colômbia, apoderaram-se da empresa que tinha a maior expectativa para a produção de fertilizantes, chamada Manómeros, propriedade da Pequiven, filial da PDVSA, e na Costa Rica tomaram a Alucasa, empresa da CVG, produtora de laminado de alumínio.

Não conformes com tudo isso, com esses roubos flagrantes, pressionam diferentes corporações mundiais produtoras de equipamentos e ferramentas, de serviços aéreos e marítimos, impondo-lhes, sob ameaça de sanções, que não comercializem nada com a Venezuela.

Também chantageiam qualquer cidadão, civil ou militar, que ocupe um alto cargo nas instituições do Estado, entre eles, do alto comando militar, despojando-os de vistos, contas e propriedades que tenham no exterior.

Por favor, fale um pouco sobre a situação do movimento sindical venezuelano e suas relações com o governo Maduro?

O movimento operário vive o pior momento de sua história. Há uma crise estrutural. Os trabalhadores industriais ficaram reduzidos a uma mínima expressão. Muitas das empresas privadas fecharam, ou há uns dois anos não produzem nada, como é o caso das principais montadoras de veículos. Muitos ramos de produção funcionam com 30% de sua capacidade produtiva. Agora as categorias de trabalhadores são classificadas como trabalhadores convocados e não convocados. Estes últimos estão em piores condições salariais, e os convocados, para conseguirem melhores condições salariais, trocam direitos fundamentais, como o ter refeitórios e transporte, por um determinado bônus salarial. Os salários estão entre os mais baixos do mundo. Os profissionais, entre eles médicos e professores universitários, recebem salários de 12 dólares mensais.

Tudo isso faz com que haja um grande mal-estar e as organizações sindicais vivem situações difíceis contra os patrões e as instituições do governo. Os sindicatos, na maioria dos casos, são atendidos nas instituições do Ministério do Processo Social do Trabalho, mas são cada vez maiores os casos em que não chegam a um acordo com a patronal ou, quando chegam, estes não são respeitados pelas empresas ou instituições do Estado.

E isso tudo acontece mesmo não se tendo modificado a Lei Orgânica do Trabalho (LOTT), que é uma das mais progressivas do mundo. Mas, na realidade, no momento em que se necessita dos direitos que nos outorga, ela já não vale nada. Tudo pela situação de crise econômica e porque as instituições do Estado são passivas, e até mesmo cúmplices muitas vezes, diante das arbitrariedades patronais.

Diante dessa realidade contraditória, na qual a classe trabalhadora é a grande prejudicada, o mais triste é o papel da Central majoritária dos trabalhadores, a Central Bolivariana Socialista dos Trabalhadores (CSBT), que não é capaz de mover um dedo, quanto mais encabeçar um protesto contra as decisões das instituições do governo. Seu presidente, há uns 6 meses, fez uma solicitação ao presidente Maduro de um aumento de salário de 6 petros, e tudo ficou somente em uma coletiva de imprensa. As relações da CSBT com o presidente são ótimas, mas isso não quer dizer que as relações do governo com o trabalhadores sejam ótimas. Nos discursos e intervenções, e em qualquer lugar onde se encontre o presidente, ele reivindica a classe operária, mas as reivindicações respondidas pelo governo são apenas para sobrevivência.

Muito se fala das atuais medidas econômicas do governo Maduro, que estariam indo em direção contrária a uma transição socialista. Qual a sua opinião sobre a dinâmica atual do seu país e do governo Maduro?

Mais do que as medidas econômicas, as medidas políticas são as que vão no sentido contrário às de transição socialista. As medidas econômicas do governo não são suficientes e dão apenas para sobreviver em uma sociedade capitalista, que é na qual estamos. Isso é assim porque com o nível de hiperinflação existente, não há salário que seja suficiente. Mas caminha-se no sentido contrário ao da transição socialista, em que as empresas do Estado, em sua maioria, no período do governo Maduro, são gerenciadas pelos militares, muito mais do que no período de Chávez, e, em alguns casos, por burocratas antioperários, em vez de serem entregues aos coletivos de trabalhadores. Terminou o controle e a participação dos trabalhadores na administração e planejamento da produção nas empresas do Estado. Nesta última etapa, foram criados os Comitês de Produção de Trabalhadores (CPT), mas esses organismos, apesar da vontade dos que os integram, terminam sendo uns autênticos vasos chineses, cujas propostas raramente são levadas em conta. Enquanto as empresas do Estado estejam nas mãos de burocratas militares e/ou civis, os CPT e os sindicatos são instrumentos secundários, apenas de propaganda para os atos públicos, porque, uma vez terminado o espetáculo, essas gerências não dão bola nem para as decisões do ministério do trabalho e muito menos para as dos CPT.

O fato principal é que, nesta etapa, o presidente Maduro, talvez em seu papel de bonaparte entre as pressões e/ou posições das quatro correntes do poder central que existem em seu governo, termina distanciando-se muito mais da possibilidade da transição ao socialismo, e o que se está fazendo já entra no terreno do aplicado pelos governos liberais. Hoje, prevalece a entrega de empresas ou o apoio dado a novos atores para desenvolver uma nova camada de empresários que lhes sejam afins. Até alguns dos ministros estão falando de uma suposta nova burguesia “revolucionária”. Reafirmo: essas decisões vão na contramão e são de via contrária ao propósito de transcender o capitalismo e criar o Estado Comunal, que foi a exigência final que Chávez fez a Maduro.

Governos de direita e extrema direita da região, como Bolsonaro (Brasil) e Duque (Colômbia), são pontos de apoio para Trump e sua guerra contra a Venezuela. Qual o papel da esquerda latino-americana na luta contra a ofensiva imperialista dos EUA e a defesa da soberania venezuelana?

Existem tantos setores de esquerda na Venezuela e no planeta, que não sei a quais de tantos grupos de esquerda você se refere. Porque não há jeito de dar respostas a cada um deles. Mas, diante desse fato transcendental dos ataques do imperialismo e dos grandes grupos econômicos existentes no mundo contra a Venezuela, a posição que os diferentes grupos e personalidades de esquerda tomem aqui marca uma fronteira, a qual não devemos ultrapassar. Quem as ultrapasse serão pró imperialistas.

Então, vamos concretizando e concluindo. Não merece discussões o fato de que há um ataque virulento e criminoso do imperialismo, de seus governos satélites em todos os continentes e das grandes corporações financeiras e industriais do mundo, com saldos de mortes no caminho, contra a Venezuela e seu governo, ataque ao qual, independentemente do tipo de governo que seja o de Maduro, deve-se opor e rejeitar.

E seria de uma desproporção enorme e imperdoável colocar que Maduro e Trump são a mesma coisa. Ou que Maduro e um hipotético e negado governo de Guaidó deem no mesmo.

Nós fazemos todas as críticas ao governo de Maduro. Questionamos tudo o que consideramos erros. É de princípio para nós o direito de opinião, de organização e de luta, e defendemos todos os direitos humanos, mas nessa dura tarefa, porque ela é dura e tem seus custos e consequências, nunca nos verão, em nada e para nada, ao lado de Guaidó, Trump e da direita. Estamos advertindo dos perigos de muitas das políticas atuais do governo Maduro, mas até agora, e também não o vemos como perspectiva, que este seja um governo fascista, ou que Maduro é o Bolsonaro, ou Duque, ou Lenin Moreno.

 

Fale sobre as origens políticas e o processo de construção atual da LUCHAS?

A origem de LUCHAS é produto das posições da esquerda quanto ao governo de Maduro, como a do próprio processo bolivariano. LUCHAS vem de uma separação dentro de Marea Socialista, quando, no ano 2015, diante da disputa pela Assembleia Nacional, o governo recebeu uma tremenda derrota, já que se vivia o recrudescimento da sabotagem imperialista e patronal e começou-se a viver a hiperinflação, que cresceu como uma bola de neve, e que Maduro foi incapaz de controlar. Então, esses companheiros pensaram que havia chegado o momento de se separarem do processo e acreditaram que obteriam várias cadeiras para deputados. Nós consideramos que essa posição, naquele momento, era equivocada, o que foi comprovado pelos fatos. Quando não conseguiram nenhum deputado, então eles, os que rompiam com o processo bolivariano dizendo, entre outras coisas, que o governo era antidemocrático, decidiram por um caminho diferente e, enquanto não quiseram se reunir com os que tínhamos diferentes opiniões no mesmo grupo, foram correndo reunir-se e se retratar com Guaidó.

Marea Socialista foi uma reposta a outro equívoco pior, no ano de 2006, quando no grupo original onde estávamos houve quem dissesse que Chávez nos levava ao fascismo e que ele acabaria com os sindicatos.

LUCHAS agora passa por um momento difícil de construção. Existe muita desmoralização militante, depois de 21 anos, e nos é também muito difícil na questão financeira, por causa dos altos gastos para a locomoção, para nos reunirmos e expressarmos publicamente.

No entanto, ainda conservamos um grupo importante de companheiros e companheiras que não queremos deixar de lutar e construir um grande instrumento, que ajude a revolução socialista na Venezuela.

 

Como está a pandemia na Venezuela? Quais são as medidas e como está o contágio?

Temos que reconhecer que, diante da propagação dessa pandemia produzida pelo Covid19, o governo de Maduro tomou rapidamente muitas das medidas recomendadas para a prevenção contra ela. Isso foi reconhecido pela OMS, outros organismos e até por meios de comunicação de outros países, como fez o canal de televisão da Alemanha, o DW, que em repetidas informações disse que: “o único país da América Latina que tomou as precauções necessárias antecipadamente e que, por esse motivo, tem poucos casos, é a Venezuela. Está como país exemplo da América Latina”. É assim como, até o momento desta entrevista, surgiram apenas 70 casos de afetados pelo coronavírus, dos quais, até agora, 2 graves, mas sem mortes.

No entanto, o importante é a atitude da maioria dos venezuelanos, que expressa que estão conscientes dos perigos da situação e respeitaram a quarentena. A maioria da população, por meio das organizações barriais e organismos do governo (missões), membros do partido (NT: PSUV) e do movimento popular, como os CLAP, UBCH (Unidades de Batalha Chavistas) e das Comunas têm sido participativos e protagonistas de iniciativas que vão do controle de doentes, ajudas médicas e de remédios, entregas de cestas de comida e outros itens.

O governo também fez cumprir horários de trabalho necessários, fechar escolas e trabalho em empresas e instituições públicas e privadas. A crítica se fez ao fato de que o governo não tem combatido, como se deve, alguns policiais e militares que abusam de suas funções e que praticam corrupção, sobretudo no fornecimento de gasolina, quando exigem grandes quantidades de dólares para deixarem os carros serem abastecidos.

Mas, como balanço geral, o governo e o povo trabalhador estão dando a batalha contra a propagação do coronavírus, e é necessário reconhecer que os governos de Cuba e da China vêm prestando toda ajuda e resposta à pandemia.

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