Esse artigo está sendo preparado durante as primárias do Partido Democrata dos EUA, na véspera da votação em seis estados (Idaho, Michigan, Mississipi, Missouri, North Dakota e Washington). Estas votações darão continuidade à chamada Super Terça, ocorrida no dia 03 de março e que contou com a votação em 16 estados, incluindo alguns que elegem as maiores quantidades de delegados como Califórnia e Texas.
Até a Super Terça da semana passada, a candidatura de Bernie Sanders vinha em um embalo que, combinado à divisão no establishment do Partido Democrata, parecia ter um caminho aberto para a nomeação como candidato do Partido Democrata para enfrentar Trump nas eleições de novembro deste ano. O candidato Joe Biden, que foi vice-presidente do país na gestão Obama, é um representante clássico do Partido Democrata: liberal, diretamente ligado à fina flor da burguesia imperialista e ao capital financeiro de Wall Street. Biden vinha apresentando resultados muito abaixo do esperado nas primárias iniciais, fazendo com que nomes como Pete Buttigieg – um ex-prefeito de uma pequena cidade no estado de Indiana, LGBT assumido e filho de um renomado intelectual marxista maltês – passassem de azarão a aposta de nome do establishment Democrata contra Sanders. Até mesmo o bilionário Michael Bloomberg viu o espaço aberto e despejou alguns bilhões de dólares para arrastar apoiadores de Biden (como o magnata dono do Amazon, Jeff Bezos) e disputar a nomeação.
Porém, o establishment Democrata conseguiu se recompor a tempo de disputar a Super Terça, e voltar com tudo para o jogo. Repentinamente, vários candidatos – incluindo Buttigieg, que disputava a liderança a corrida com Sanders, retiraram a candidatura e passaram a chamar o voto em Biden. A máquina do Partido Democrata e boa parte da grande imprensa voltaram a jogar peso nos ataques a Bernie Sanders e na apresentação de Biden como “melhor nome” para derrotar Trump em novembro – o que não é corroborado pela maioria das pesquisas eleitorais no país. Com isso, apoiado no voto mais conservador, mais rural e com forte propaganda sobre alguns setores da sociedade (ex: sobre o eleitorado negro, apontando que Biden era vice de Obama e que Sanders não teria ligações com a comunidade afro-americana), Biden obteve importantes votações que o colocaram novamente na disputa. Mais que isso, o colocaram na liderança e – devido às regras antidemocráticas e burocráticas do Partido Democrata – com maior probabilidade de indicação, mesmo que Sanders tenha mais votos ou delegados que ele na Convenção.
A campanha de Bernie, por sua vez, está longe de estar derrotada (política e eleitoralmente). Primeiramente, pela força de seu programa e como está incidindo sobre amplos setores da classe trabalhadora e da juventude norte americana. Sanders aborda questões que dialogam com o sentimento de revolta causado pelas políticas de austeridade e empobrecimento dos trabalhadores do país. A principal delas é a adoção de um serviço público de saúde universal nos EUA – acredite se quiser, a principal economia do Mundo não oferece saúde pública para seus cidadãos! – o que ganha contornos ainda mais dramáticos com a explosão do surto de Coronavirus que parece estar apenas começando no país. Além disso, aponta as grandes corporações e os milionários – enfim, os ricos (os 1%, contra os demais 99%) – e não os pobres ou os imigrantes como responsáveis pela crise e pela queda do padrão de vida da população. Responde à questão ambiental, negada por Trump, com a proposta de um Green New Deal – um conjunto de medidas para encarar de forma mais séria o desastre ambiental que o planeta está submetido. Coloca vários pontos sociais em seu programa, como acesso a educação, benefícios, tirando de gastos militares e “desprivatizando” o sistema prisional. Por isso, sua agenda é chamada de “Revolução Política”, nome de um livro de sua autoria lançado em 2017.
Por que é importante que a esquerda socialista, de todo o mundo, apoie a campanha de Bernie
Enfim, apesar de não ser um programa socialista e com várias limitações, é uma diferença de qualidade do que costuma aparecer na agenda política do principal polo imperialista mundial. E não é pouca diferença. Bernie e sua “revolução política” apontam medidas que para implementação, apesar de suas limitações, obrigariam a um redesenho – uma inversão de vetor – na dinâmica do capitalismo dos dias atuais. Ainda mais agora, com a nova crise econômica mundial que parece ter sido inaugurada de vez. Voltou a colocar o termo “socialismo” na lista dos mais populares nos EUA (onde costuma ser, mesmo que de conteúdo signifique uma social democracia pouco mais à esquerda. Seu programa e slogan Not me, us (Não Eu, Nós) são a antítese da agenda apresentada pelas variantes nacionalistas e de extrema-direita (incluindo o próprio Trump): a resposta para a crise é anti-austeridade, taxando os ricos e as grandes corporações e garantindo acesso universal a direitos, com proteção do meio ambiente e combatendo opressões.
Alguns setores argumentam que o Partido Democrata não é um partido reformista, socialdemocrata ou de centro-esquerda – mas um dos principais (se não o principal) partido da burguesia imperialista do planeta. O que é verdade. Porém, é preciso entender que essa campanha movimenta algo muito maior que o próprio Bernie Sanders, e outros nomes do DSA ou da ala esquerda do Partido Democrata. É um fenômeno pela base que canaliza todos os processos de mobilização que vem surgindo desde os movimentos Occupy, do início da década. Reflete as mobilizações estudantis contra a indústria armamentista, as lutas pela moradia, dos imigrantes contra as deportações, das Mulheres contra Trump – e das greves em vários setores, principalmente de trabalhadores da Educação, nos últimos anos. Seu potencial de mobilização e avanço, contra as estruturas do Partido Democrata (apesar de, contraditoriamente, passar por dentro do mesmo) e principalmente de propagação para outras partes do planeta pode alterar a correlação de forças entre as classes a nível internacional. Sem exagero, podemos dizer que Sanders pode ser um Trump com sinal invertido, e levar ventos – na verdade, na conjuntura atual, furacões – de primavera para os quatro cantos do mundo.
O que deve acontecer nas próximas semanas
A campanha de Bernie vem mobilizando amplos setores da classe trabalhadora, com particular destaque à juventude, mulheres, latinos e imigrantes. Em uma das primárias, no estado de Iowa, houve um comício na porta de uma fábrica e os trabalhadores, em sua maioria de origem imigrante, saíram em passeata para votar em Bernie.
Ativistas de todos os setores e perfis estão em campanha, de porta em porta, nos estados onde as prévias ainda estão por ocorrer. Apoios importantes continuam a aparecer, apesar de toda a guerra imposta pela mídia e o establishment Democrata – como o do Rev. Jesse Jackson, no dia 08 de março. O movimento pela base segue a todo vapor, com embalo e potencial, e pode ainda garantir essa vitória.
Mas pode ser que, dada a ausência de uma onda de greves e lutas ainda maior que a dos últimos anos – capaz de barrar a ofensiva da máquina do establishment Democrata nos EUA – não consiga mobilizar a quantidade necessária de jovens e trabalhadores para votar nas primárias. As primárias dessa semana tendem a repetir o quadro da Super Terça, com um empate acirrado dentre os delegados eleitos para Biden e Bernie, mas com ligeira vantagem para o ex-vice de Obama. Ou que Sanders ganhe a maioria dos delegados, mas que as regras burocráticas da Convenção e seus “super-delegados” acabe “virando a mesa” e entregando a nominação a Biden. Para as grandes corporações, o mercado financeiro e o establishment Democrata não há a menor dúvida: preferem entregar mais um mandato a Trump do que um governo ou uma nominação de Bernie Sanders e sua “revolução política”.
As lições da Grã-Bretanha
O intuito desse artigo não é abordar as eleições britânicas, mas vale destacar algumas semelhanças (e diferenças) entre o processo do Corbynismo e o que vemos hoje com Bernie nos EUA. Aprender com os acertos e, principalmente com os erros cometidos é de fundamental importância
Desde o início do processo que levou Jeremy Corbyn à liderança do Partido Trabalhista britânico, o Labour, o establishment do Partido tem declarado guerra aberta. Sabotaram todas as campanhas eleitorais e as iniciativas políticas cotidianas, além de desenvolverem políticas de ataques e perseguições dentro do Partido com calúnias sobre um suposto “antissemitismo” (que era apontado contra quem levantasse qualquer crítica à política exercida pelo Estado de Israel contra os palestinos). O Labour, nas última décadas, tem aplicado a agenda de austeridade e, especialmente durante o governo do Primeiro Ministro Tony Blair (1997 – 2007), cumpriu um papel importante enquanto representante do imperialismo britânico e internacional. Porém, ainda é um partido que possui ligação orgânica com a classe trabalhadora, além de origens históricas bastante vinculadas aos movimentos operário e sociais. Isso faz com que seja qualitativamente distinto do Partido Democrata americano, que tem no seu DNA a ligação com setores centrais do imperialismo e do capital financeiro internacional.
Quando conquistou a liderança, e quando teve de disputá-la novamente por um golpe do establishment do Partido, não abriu mão de seu perfil e seu programa – que possuem bastante similaridade ao de Bernie Sanders nos EUA. Isso fez com que se fortalecesse, mobilizasse ainda mais amplos setores de trabalhadores, jovens e ativistas de movimentos sociais. Chegou até a atrair setores da classe trabalhadora que, pelo desespero e falta de perspectivas gerados pelos anos de austeridade (inclusive aplicada por políticos do próprio Labour, os chamados Blairistas), acabaram abraçando alternativas de oposição à direita (ou extrema-direita), que no país se manifestou na eleição do Brexit sob bandeiras xenófobas e nacionalistas no referendo do 2016. Um fenômeno também análogo à ascensão de Trump nos EUA.
Porém, em um momento decisivo (as eleições antecipadas de 2019), Corbyn e a nova direção do Labour optaram por construir uma formulação que garantisse a unidade do partido (com o establishment, os Blairistas, seus sabotadores), não conseguindo apresentar uma alternativa confiante e sólida ao Brexit conservador proposto pelo então debilitado Primeiro Ministro Boris Johnson. O resultado foi que Corbyn acabou sendo confundido com os políticos tradicionais, e todo o material político acumulado nos avanços e vitórias do período anterior retrocederam, permitindo a Johnson reocupar vários espaços, e obter uma vitória categórica sobre Corbyn e toda a esquerda.
A lição desse processo que melhor se aplica às eleições americanas está nessa mesma questão. Bernie precisa manter e avançar em sua agenda e perfil, contra todos os ataques da mídia e do establishment Democrata. Não ter medo de “assustar” o mercado, as grandes corporações, Wall Street – e vem fazendo isso. Agora, todos precisamos ter claro que seus sabotadores, esse mesmo establishment Democrata, fará tudo que estiver a seu alcance para derrotar Bernie Sanders, mesmo que isso signifique pavimentar o caminho para a reeleição de Donald Trump. A luta por essa agenda e pela “Revolução Política”, que ganha terreno a cada dia nos EUA, não pode estar submetida à unidade ou aos limites do Partido Democrata dos EUA. Pelo contrário, de conteúdo, ela vai essencialmente também contra este.
GO BERNIE – Preparar a candidatura “independente” caso o establishment Democrata nomeie Biden! Por um Partido de Esquerda dos Trabalhadores nos Estados Unidos da América!
As prévias desta semana tendem a consolidar a vantagem, com maior ou menor margem, de Biden sobre Bernie na contagem de delegados. Esse é o resultado do gigantesco operativo que o establishment do Partido e a alta burguesia imperialista vem fazendo nas últimas semanas. Ainda dá pra ganhar, e todo o esforço de ativistas de esquerda e socialista, dentro e fora dos EUA, deve estar a esse serviço. Mas pode ser que não seja possível vencer a máquina e seus regimentos anti-democráticos.
Nesse caso, a esquerda socialista deve chamar Bernie a manter sua candidatura presidencial, por fora do Partido Democrata. A alternativa ao nacional-imperialismo de Trump não pode ser o imperialismo liberal de Biden e do Partido Democrata dos EUA. É preciso apresentar a Revolução Política, não apenas para disputar a eleição, mas para fortalecer o pólo de lutas contra o próximo governo, seja ele qual for. E que dessa campanha surja um novo instrumento político, independente e que reflita estas lutas que começam a surgir nas ruas, escolas e locais de trabalho dos EUA.
Como dizem nos EUA, não é concebível que nomes como Alexandra Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib e vários dos ativistas que protagonizaram as greves e manifestações nos últimos anos estejam no mesmo partido dos Clinton, Joe Biden, Obama – e que tem como principais apoiadores os grandes barões de Wall Street e do imperialismo multinacional. Existe espaço, e é possível a construção de um partido de esquerda, da classe trabalhadora e dos oprimidos, com influência de massas no coração do capitalismo mundial. E isso, por si só, já teria um impacto ultra positivo na reorganização da esquerda socialista e da classe trabalhadora em nível internacional – o que é ainda mais importante neste novo momento de crise mundial.
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