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BRASIL

A Batalha da juventude periférica no neoliberalismo

Dissertação de mestrado expõe as origens culturais e socioeconômicas da Batalha da Matrix

Elber Almeida (Cientista), do ABC Paulista

Divulgação da batalha nas redes sociais. 8/3/2016

Felipe Oliveira Campos, também conhecido como Choco, realizou sua pesquisa de mestrado pela Universidade de São Paulo. Com essa pesquisa, o pesquisador e MC, um dos criadores do Álbum “Para Além do Capital” ao lado de Sarksmo, investigou um fenômeno cultural relativamente recente, porém com raízes profundas que ocorre no Grande ABC Paulista.

Uma das maiores batalhas de Mc’s do estado de São Paulo, senão a maior em público, a Batalha da Matrix ocorre todas as terças-feiras, às 19h30, no centro de São Bernardo do Campo, reunindo ao menos 600 pessoas numa das praças públicas mais icônicas da região: a praça da Igreja Matriz da cidade. O evento é objeto de forte discriminação por parte de moradores e comerciantes do centro da cidade, além de já ter sofrido intensa repressão policial.

Um caso famoso chegou a passar na TV aberta. No início de 2016, 26 de janeiro, a polícia militar do Estado de São Paulo agiu com enorme violência e dispersou a batalha com bombas de gás de balas de borracha. O episódio gerou ampla repercussão não só entre movimentos culturais e de luta pelo Direito a Cidade, como de costume, mas também na mídia de massas, com reportagem no programa SPTV em que o apresentador Carlos Tramontina chegou a afirmar: “O que fica claro é que, a política da bomba não é eficiente, e nem impõe respeito”.

Mesmo assim, a Batalha da Matrix cresceu mais ainda nos últimos tempos, e no seu sétimo ano pode dizer que transformou o centro de uma cidade desprovida de equipamentos culturais, num ponto de encontro de uma população ativa e excluída das políticas públicas.

O plano de fundo

Quem frequenta o evento pode perceber que seu público é de uma maioria jovem, negra e periférica. Isso é confirmado pela pesquisa, que realizou entrevistas em campo.

[…]o público da Batalha da Matrix é em sua maioria negro, masculino (apesar de uma notável presença feminina), pertencente a uma classe trabalhadora fortemente marcada pelo desemprego e informalidade, posicionada no setor de serviços, na faixa que recebe até 2 salários mínimos, com alto percentual de escolarização média, porém, baixa formação acadêmica, e de forte acento periférico. (CAMPOS, 2019, p. 179)

A História do ABC Paulista é conhecida por muitos. Epicentro das lutas operárias que abalaram a ditadura civil-militar no final dos anos 70, era na mesma Praça da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo em que o movimento dos metalúrgicos realizou assembleias emblemáticas. Naquele período, a indústria automobilística estava em seu auge e a industrialização proporcionou um grande crescimento do operariado industrial, originado em grande parte das migrações de outras regiões do país, que estabeleceu-se no sudeste, em grande parte no ABC Paulista.

Muitos anos se passaram e a classe trabalhadora brasileira se transformou. Hoje, os trabalhadores da metalurgia possuem um peso relativo menor do que naquele período, embora ainda sejam em enorme número. A classe trabalhadora agora é concentrada em grande parte no que muitos chamam de “setor de serviços”. Essa denominação pode ser problemática por muitas vezes incluir setores antes contabilizados na indústria, porém terceirizados, ou ainda serviços que hoje adotam um método de funcionamento altamente industrial, como os CallCenters. Em São Bernardo do Campo, temos um peso importante desse tipo de indústria, por exemplo, com a planta da empresa Atento no centro, com muitos empregados frequentadores da Batalha da Matrix e outros eventos culturais do gênero.

Mas o fato é que houve uma reestruturação produtiva nas últimas décadas, descrita por Felipe Choco. Esse fato é observado na substituição do fordismo para o toyotismo, com o processo produtivo empurrando para fora das grandes plantas industriais muitos de seus trabalhadores. Centros logísticos e algumas partes da produção vão para fora das grandes montadoras, como Volkswagen, Scania, Mercedes-Benz. Porém, o autor aponta para outro aspecto tão crucial quanto, que altera substancialmente a geografia da cidade ao dar origem à chamada “privatópolis”. A hegemonia do capital financeiro e seu profundo papel nas transformações do espaço urbano.

Quem caminha pelas ruas de São Bernardo do Campo ou das outras cidades da região pode notar que são pouco atrativas para a vida social, além de voltadas para a produção e consumo. As vias expressas dão vazão para as cargas dos centros de logística das grandes indústrias, o tecido urbano é rasgado por grandes empreendimentos imobiliários como o Marco Zero, Mondial Home Stay, e Domo Corporate que unem trabalho e moradia do colarinho branco empresarial (CAMPOS, 2019 p. 107). A política de controle avança, com praças e parques sendo cercados e fechados cada vez mais cedo, além da presença cada vez mais ostensiva e numerosa das guardas-civis municipais, que agora se integram com as polícias militar e civil. O trabalhador e morador da periferia tem dificuldade para acessar os poucos equipamentos públicos de cultura e lazer da cidade, fator agravado por uma das passagens de ônibus mais caras do país, R$4,75. A região se configura em meio ao maior centro financeiro do país, a capital São Paulo, e o porto de Santos em que o movimento de mercadoria é intenso, portanto é profundamente afetada pelas transformações transnacionais.

Esse cenário é ainda composto pela segregação racial. Um município que possui um índio ao lado de um bandeirante em seu escudo, também traz a marca de um país em que a população não-branca está afastada dos centros e dos bairros mais estruturados. Seria até massante repetir alguns dados, por isso, vamos direto ao ponto: a urbanização do ABC paulista foi desenvolvida de forma a favorecer os fluxos de capital, agravando a segregação social e espacial dos trabalhadores. Mais pobres estão longe do centro e nos morros, em que a maioria da população é negra, de acordo com os dados do IBGE.

Em meio a todo esse plano de fundo, emerge um dos mais poderosos e dinâmicos movimentos de reivindicação pelo direito à cidade do país: as batalhas de MC’s. Originárias de outros locais do país e do mundo, encontraram no ABC paulista terreno fértil para desenvolverem-se. O objeto do estudo, a Batalha da Matrix, ocupa um dos poucos espaços ainda livremente acessíveis aos trabalhadores que frequentam o centro da cidade.

Raízes históricas de culturais

Em 2013, ano de nascimento da Batalha da Matrix, ocorreu também um dos maiores processos de manifestações de rua que o país já presenciou. Junho fica na memória de muitos ativistas, apesar de análises controversas, como um marco na luta pela ocupação do espaço público, como finalidade e como método.

Multidões foram às ruas. Poucos meses antes, no mesmo Grande ABC Paulista foi fundado o Comitê Regional Unificado Contra os Aumentos das Passagens de Ônibus do ABC, reunindo diversos movimentos e partidos de esquerda, mais distantes da base histórica petista. E em 7 de maio de 2013, um mês antes da grande movimentação, foi a primeira edição da Matrix.

É importante notar essa relação, como diz Choco:

Embora não se possa afirmar que a Batalha da Matrix seja fruto das mobilizações iniciadas em junho de 2013, pois tem como referência uma efervescência própria do movimento cultural Hip Hop a partir da proliferação de batalhas de MCs pelo estado de São Paulo e em âmbito nacional, com a ocupação de praças e espaços públicos e impulsionados pela difusão de vídeos na internet, não é incorrer em erro afirmar que essa experiência social deixou marcas na trajetória do evento e nas consciências individuais de seus organizadores. Uma das marcas que pode ser destacada é a noção de democracia, entendida dentro de uma parcela do campo progressista “em um sentido ampliado, não como sinônimo de instituições, representação ou eleições, mas como uma criação sociopolítica e uma experiência subjetiva”. (CAMPOS, 2019, p. 142)

A dinâmica de junho trouxe marcas incontestáveis para o país. Muitos, como o ex-presidente Lula, colocam as manifestações como culpadas pelo golpe ocorrido contra a presidenta Dilma Roussef em 2016. Porém, esse tipo de afirmação simplifica todo um processo de desenvolvimento político de uma juventude trabalhadora dos serviços precários, tal como a frequentadora das batalhas de MC’s, muito presente nos protestos. É evidente que o processo aberto em 2013 foi disputado pela direita e extrema-direita que em 2015 iniciou um movimento de massas para concretizar o golpe que culminou, em 2018, com a eleição de um presidente fascista. Porém, isso não deveu-se ao movimento em si, mas à incapacidade das direções de disputarem seus rumos, afinal, este tinha possibilidades progressivas que se refletiram no fortalecimento de movimentos como o MTST, além das heroicas ocupações de escolas de 2015 e 2016 realizadas pela juventude secundarista.

Essas raízes próximas não se mostram apenas na ocupação de espaços como caraterística, mas também no fato de mais de uma vez estes movimentos de direito à cidade, como o próprio Comitê citado anteriormente, já estiveram em manifestações de apoio à Batalha, como foi o caso no início 2016 após o mais repercutido caso de repressão, quando saiu uma passeata do centro para questionar o prefeito Luiz Marinho (PT) que estava num evento em uma escola, e em 2018 quando um ato foi até próximo à casa do secretário de cultura da prefeitura de Orlando Morando (PSDB) para exigir o direito ao uso de um parque público do centro para a comemoração do aniversário da batalha, que já tinha ocorrido naquele lugar em anos anteriores. Tais manifestações adotaram o repertório dos movimentos sociais (CAMPOS, 2019, p.185) com ocupação de vias públicas, faixas, cartazes e palavras de ordem.

Mas, como diz o trabalho em questão, é claro que as raízes das batalhas de MC’s são muito mais profundas. O Hip Hop é um movimento nascido na primeira metade da década de 70, no Bronx, bairro periférico de Nova Iorque, EUA, no contexto da diáspora africana. As batalhas de MC’s fazem parte de sua tradição. Originadas para transformar a violência em arte, assim como as batalhas de breakdance, hoje são um fenômeno mundial.

Os rumos da batalha 

Porém, existe uma disputa sobre o que é este movimento, começando pela controvérsia sobre qual sua data de origem, 11 de agosto de 1973 ou 12 de novembro de 1974 (CAMPOS, 2019, p. 59), chegando até os dias atuais quanto ao seu caráter de resistência ou apenas comercial.

Quando falamos de Batalha da Matrix, o estudo nos apresenta a questão citando os seguintes fatos:

Ao passo que a S.A.C. está articulada com outros movimentos sociais e sindicatos, como é o caso da aproximação com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, a partir das atividades do “Engrenagem Poética”, […] Em paralelo, a Batalha da Matrix é percebida também por marcas e empresas que investem em algumas batalhas de MCs, como é o caso da Red Bull e da Nike. Pequenas lojas (de roupas de skate, Rap, etc), e a própria Laboratório Fantasma, sempre contribuem com premiações para a Matrix. A grande questão desses novos rumos é pensar se a Batalha da Matrix corre o risco de perder o seu caráter contestador, se isso enfraqueceria a sua condição de um espaço de conscientização para novas formas de vida não somente alternativas às cartilhas do capital. (CAMPOS, 2019, p. 202)

As notícias acima são extremamente relevantes para pensar a questão, mas, não esgotam ela. Outras informações apresentadas na pesquisa e em outros trabalhos são essenciais para entender isso. Por exemplo, podemos falar em cortes geracionais no Hip Hop brasileiro, com a atual geração tendo um de seus principais expoentes em Emicida, famoso por ter sido um grande campeão de batalhas de rimas, além de possuir músicas que fizeram sucesso e ser o executivo da Laboratório Fantasma, produtora musical. Em análise de letra do MC,  Felipe Choco deixa evidente sua ideologia de self-made man (CAMPOS, 2019, p.82), um conceito clássico do pensamento burguês estadunidense e que moldou ideologicamente a nação do “destino manifesto”, sendo um dos pilares da ideia contemporânea de meritocracia.

Além disso, poderíamos escrever rios de palavras sobre os processos de apropriação da cultura pelo mercado com inúmeros exemplos. KRS-ONE resume da seguinte forma:

Hip Hop se foi, está perdido. Não é por causa da vanguarda da América, mas por causa da vanguarda cultural internacional, porque elas tem medo dele. Agora o que todo mundo quer é Rap. Rap e Hip Hop são duas coisas diferentes. Rap é.. bem você sabe… meu vídeo…meu… Tipo quando eu estou na capa da revista deste mês, quando estou no topo das paradas, marketing, promoções, imagem! Isso é Rap! Hip Hop é… política. Política de rua na rua. Na política da rua um estilo de vida, um estilo de pensar. Hip Hop… Rap é uma expressão do Hip Hop. Grafite é uma expressão do Hip Hop. Breakdance é uma expressão do Hip Hop. Mas nenhum deles é Hip Hop. Hip Hop é uma cultura! (KRS-ONE, em entrevista ao “Rap City” em 1993).

Essa disputa sobre o que é o Hip Hop e quais caminhos ele deve trilhar sempre esteve presente. Durante a existência desta cultura relativamente jovem existiram muitas disputas internas, tanto territoriais quanto geracionais, é um processo vivo e extremamente dinâmico, marcado pela constante pressão do mercado para domesticar o espírito contestador de seus artistas, o que já levou à destruição de grupos, mortes, brigas que mais parecem feitas para obter visibilidade midiática, declarações sobre seu fim etc. O fato é que os quatro elementos permanecem vivos e sempre se renovam, a fonte parece inesgotável apesar de tantos obstáculos.

Por outro lado, existe também a desvalorização dos artistas vinculados a esta cultura. Assim como a indústria cultural e a mídia tentam o tempo todo dividir os elementos do Hip Hop e transformá-lo apenas num estilo bom para vender, sem nenhuma associação com o mundo em que nasceu, ou seja, próximo aos problemas sociais de uma sociedade profundamente segregada racialmente e dividida em classes sociais, o fato é que a arte também é o ganha pão de muitos e trabalhadores da cultura costumam manifestarem-se pela valorização de seu trabalho. Por que não pensar o mesmo quando falamos em Rap, Grafite e Breakdance?

Isso não significa aceitar passivamente a imposição da indústria cultural que, com suas gravadoras, produtoras e propaganda impõe certos estilos, gostos, e ideologias, fáceis de engolir para a classe dominante. Mas pensar em possibilidades de profissionalização que possam garantir que aqueles produzem cultura e arte através do Hip Hop possam sobreviver sem abrir mão do caráter crítico de suas obras.

Mas isso só parece ser possível reconhecendo que existe sim o risco de esvaziamento do conteúdo crítico do movimento Hip Hop e de suas manifestações, a começar pela disputa de narrativa de sua origem, até as expressões dos dias atuais. Ao dizer que o Hip Hop tem seu ponto inicial numa festa, a ocorrida em 1973, ou com o estabelecimento de seu conceito pela Zulu Nation em 1974, duas visões sobre o que ele é estão colocadas (CAMPOS, 2019, p. 62).

Podemos entender que o Hip Hop é apenas o significado da expressão que o nomeia, ou seja, “chacoalhar o quadril”, ou que ele é aquilo que foi definido pela Zulu Nation em 1974, a união de seus quatro elementos. Ainda podemos acrescentar, como muitos, o quinto elemento, o conhecimento. Ou até mesmo 9 como propôs o próprio KRS-ONE. Podemos fazer o Rap num estilo ostentação, como muitos rappers fizeram e fazem – hoje no Brasil muito influenciados pelos sucessos do funk nacional ou de artistas estadunidenses – ou levar o conteúdo de crítica social nas letras como é característico do Rap nacional dos anos 90 e seus grupos consagrados, conhecidos até os dias atuais que tem suas letras como tema de vestibular. Ainda existem misturas entre as duas linhas.

O fato é que o dilema está colocado. Algumas batalhas de MC’s estão se tornando empresas com a única finalidade do lucro, com modelos femininas desfilando entre a troca de rounds ao estilo campeonatos de vale tudo, permitindo MC’s reproduzirem espetáculos de misoginia em suas rimas, abandonando a identidade de contestação do movimento, tornando ela apenas uma mercadoria a venda em busca de mais holofotes de patrocinadores exigentes e pouco atraídos pela crítica social.

Já a Batalha da Matrix, apesar de atualmente pretender mirar num modelo de publicidade que atinja um público mais jovem e consumidor de vídeos na internet, tem a sua história marcada pela luta de todas e todos que estiveram naquela praça resistindo à ação policial higienista. Como cita o trabalho:

Em suma, verifica-se um público dotado de senso crítico e que em grande parte dá um suporte para os grupos que tenham alguma relação direta ou indireta com as batalhas de MC’s da região. O contexto no qual foi formado esse público nem sempre dispensou tensões e confrontos, revelados nas batalhas pela permanência do evento na Praça da Matriz semanalmente. E a Sociedade Alternativa de Campom, a partir de um trabalho de educação e organização do público, na reivindicação de direito à cidade, utilizando mecanismos e repertórios dos movimentos sociais, enfrentaram as batalhas por sua permanência semanal na Praça da Matriz.  (CAMPOS, 2019, p. 185)

Esse público, cuja imensa maioria encontra-se na faixa de renda abaixo de dois salários mínimos (89%), além de ser dotado de senso crítico é aquele que em 75% das vezes reivindica o evento como movimento cultural e, prefere as edições de conhecimento¹, 34,9%, às edições sangue¹, 25,4% (CAMPOS, 2019, p. 180).  É um público bem ativo e diferente da passividade característica da cultura atual, caracterizada pela radicalização da divisão entre artistas e espectadores.

Reduzir a questão à briga entre os “vendidos” e os “guardinhas do rap” pode parecer legal parar criar uma briga, mas não serve para entender a complexidade dessa cultura e de seu constante processo de transformação e tensões em meio a uma sociedade profundamente desumanizadora que tudo transforma em mercadoria. O trabalho de Felipe Choco nos ajuda a enxergar melhor o cenário, localizando-o historicamente. Mudanças geracionais no Hip Hop sempre existiram, a disputa sobre seus sentidos também. A questão é: até onde ele pode ir?

Num extremo alguns defendem que é mesmo necessário apagar seu conteúdo de protesto social para vender mais e melhor. Outros dizem que o Hip Hop real é aquele “puro”, que está nem um pouco preocupado com visualizações, curtidas, ou aparições na TV. Parecer haver uma confusão entre mercantilização e profissionalização.

Apesar do Hip Hop ser política no sentido mais geral, é também uma cultura que produz arte no seu sentido mais particular. Sim, arte também é política, porém, envolve trabalho. Em sua maioria, os frequentadores e organizadores de batalhas são trabalhadores, proletários, assalariados, e participam destes eventos nos tempos que restam. Muitos tentam reverter esse quadro e “viver da cultura”, mas isto é extremamente difícil e aqueles que desistem não são poucos. A profissionalização é um caminho necessário ao menos para alguns, e isso não deveria ser tratado como um pecado, afinal, não o é quando estamos falando de manifestações artísticas de outras origens.

A questão é que a profissionalização não deve servir para tornar a arte uma mera reprodutora da ideologia dominante, pronta para abraçar o que mandam as grandes produtoras e o mercado da música. O desafio é que a cultura é extremamente desvalorizada de modo geral, e os editais culturais, além de escassos, estão passando por uma censura cada vez mais seletiva pelos governos federal, estaduais e municipais.  Entender o problema de uma forma mais global pode evitar a queda n mito do empreendedorismo como ação transformadora de vida, pois este é mais uma ideologia do neoliberalismo, o mesmo que torna a cidade cada vez menos adequada para o convívio social.

Não existe resposta definitiva para este problema, mas podemos apontar que o Hip Hop só pode sobreviver se manter seu caráter contestatório. O mercado não absorve o sentido completo da cultura pois esta é em si mesma um questionamento à lógica de mercado. Ao reunir as populações mais marginalizadas para expressarem-se abertamente, criticarem, contestarem, musicalmente, visualmente e corporalmente, ocupando os espaços públicos e questionando os privados, cria-se um problema para o sistema que responde com bombas de gás, quando não com balas de verdade, prisões, inquéritos e censura. Ao tentar absorver seus elementos, os grandes empresários tentam sempre operar sua separação. O Mestre de Cerimônia vira rapper, pois a cerimônia esvaziou-se e deu lugar à “apresentação musical” desprovida de história.

Podemos pensar que o Hip Hop, além de abrir caminhos profissionais, também pode ser uma porta para pensar-se o direito à cultura no sentido mais amplo. A cultura como o encontro com o semelhante e o diferente, no espaço democrático, público, comunitário, aberto, acolhedor. A cultura para os trabalhadores de diversas profissões, que possam ter a dignidade de apreciar manifestações artísticas antes ou depois de um expediente de difícil trabalho e a partir dela pensar também seu lugar no mundo.

Sem dúvidas, a Batalha da Matrix e diversos outros eventos do tipo que ocorrem mundo afora já cumprem este último papel muito bem. A cultura humaniza e cria laços, além de ser o ganha pão para muitos. Não é a toa que os inimigos desta forma de ver o mundo continuam ordenando a repressão ao evento, seja de uma forma mais direta ou dificultando o direito de ir e vir na praça pública com cercos policiais.

A crítica artística não morreu. Falamos em um contexto de censura em que barram o filme biográfico sobre Carlos Mariguella, músicas de Chico Sciense são censuradas, mas surgem filmes, peças de teatro e músicas que colocam em cheque os valores dominantes. Os desfiles do carnaval carioca dos últimos anos mostraram que a discussão política bem trabalhada é bem recebida pelo público.

Além de tudo isso, talvez estejamos falando das obras de arte mais adequadas para pensarmos a era da reprodutibilidade técnica. O Hip Hop nasceu e vive com a tecnologia e indústria da produção e reprodução, mas sempre esteve em contradição com a sociedade que colocou estas na escala máxima. Em 2019 uma das produções do Rap nacional que mais repercutiram foi Primavera Fascista, em crítica frontal aos atuais governantes, chegou até mesmo a ser derrubada das redes por um tempo, as resistiu. Um belo exemplo de politização da arte, em meio a tanta estetização da política.

Referência:

CAMPOS, Felipe Oliveira. Cultura, Espaço e Política: um estudo da Batalha da Matrix de São Bernardo do Campo. Orientador, Carlos H.B. Gonçalves – 2019. Disponível em. Último acesso em 9/3/2020.

¹ A modalidade batalha de conhecimento visa focar num tema em que as rimas precisam se envolver, podendo ser ligado a alguma questão social ou cultural mais geral. Este tipo de batalha tem um diferencial da modalidade “sangue”, muito mais praticada, pois com ela quem rima é obrigado a ter algum domínio do tema, fazendo com que muitas vezes tenha que buscar estudá-lo. Na modalidade sangue, embora os rimadores possam rimar com base em temas específicos, em geral o que é mais comum é o ataque ao oponente, que pode ser inteligente ou simplesmente uma tentativa de desmoralização. Em algumas batalhas existem regras mais rígidas ao não serem aceitas rimas que reproduzam opressões sociais, em outras, basta não xingar a mãe que está valendo.

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juventude / periferia