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BRASIL

O presidente, a jornalista e o bobo

Gabriel Santos, de Maceió (AL)
Reprodução

“Agora a corte tá toda feliz, o Rei, o Príncipe e o bobo”

Romário, o melhor dentro da pequena área.

 

“Filho, você viu o que o Bolsonaro fez?” perguntou-me a minha mãe. Respiro, pego um copo de café e me preparo para procurar nos jornais qual havia sido a nova ação do ex-capitão. Abro um vídeo em um portal de notícia e me deparo com uma cena que até agora praticamente todos se perguntam como foi ocorrer. Um humorista, que há muito tempo não tem mais graça, vestido como se fosse o presidente da República, diante dos jornalistas, buscando responder questionamentos que seriam muitos se fossem destinados ao verdadeiro Bolsonaro.

Os jornalistas, coitados, assistiam ao vivo e presencialmente aquele espetáculo ridículo. O absurdo e cômico se misturam em uma tragédia tropical que tem a atuação de 11 milhões de desempregados, o risco do coronavírus, um PIB com o menor crescimento em anos, e uma disputa pelo papel de melhor coadjuvante entre o Parlamento e setores autoritários do governo.

Gabriel Garcia Marquez, talvez, e só talvez, tenha imaginado para um de seus livros de realismo fantástico um personagem como Bolsonaro. Um personagem sem nenhum mistério. De fácil entendimento. Ele é hoje, na cadeira do Palácio do Planalto justamente o que era quando passou 30 anos no baixo clero da Câmara.

O mesmo Bolsonaro que durante décadas, ainda deputado, comemorava o aniversário do Golpe Militar, vejam só, hoje chama manifestações contra o Congresso. A diferença é que agora ele não está sozinho. O mesmo Bolsonaro que diante de todo o Brasil, em plenário, homenageou um torturador, hoje profere ataques verbais e acusações contra opositores e as liberdades democráticas. Porém, há oito anos a maioria de nós achava Bolsonaro um louco que não podia ser levado a sério, pois afinal, era absurdo demais. Hoje o absurdo se tornou uma normalidade.

Só quem ainda não leva Bolsonaro a sério parece ser a burguesia brasileira. Foi a nossa ilustre e não tão iletrada burguesia que deu luz ao neofascismo. Um filho que não estava nos planos. Mas foi em uma noite de núpcias com o Golpe que retirou Dilma, que ela pariu a extrema-direita nacional, depois o viu crescer e tornar-se aquilo que hoje é neofascismo tupiniquim.

A burguesia brasileira em seu desejo insaciável por mais lucro fez um pacto com seu Santo Deus do Livre Mercado. Sacrificando no altar os direitos trabalhistas e sociais de toda uma população. Do alto dos prédios das bolsas de valores e da FIESP, a burguesia brasileira reza desejando sempre mais e mais, o Deus Livre Mercado, com sua Mão Invisível acaricia os bolsos de nossos fúteis burgueses, e em troca pede corpos de negros, mulheres, lgbts e indígenas. O acordo é firmado, e a burguesia entrega seu filho neofascismo como responsável pela missão.

Bolsonaro esperneia diante dos pais, dá tapas neles, cospe na imprensa, ameaça tomar a casa, mas tudo isso para a burguesia não passa de jogo de um menino mimado. “Não leva a sério, com o tempo ele aprende”, fala.

Nesta grande obra de não-ficção que se tornou o Brasil em 2020, o teatro burguês continua, o ator principal, porém, é o ex-capitão, que cada vez mais convencido de seu papel de estrela no espetáculo familiar tenta tomar toda a companhia para ele.

A burguesia brasileira parece não se incomodar com as amizades de seu mais recente filho. O neofascismo é visto com aqueles que advém das profundezas de uma democracia frágil: são os pastores que negociam a fé, milicianos orgulhosos, deputados sem habilidades, militares raivosos, juízes com devaneios napoleônicos, que fazem parceria ao neofascismo em sua tarefa de conseguir lucros fáceis e destruir direitos.

O amor pela Casa Grande, o desejo pelo topete desajeitado de Trump, o tesão na violência e no sangue jorrando. Nossa burguesia e seu filho tem muito mais em comum do que assume os pais da criança que veio de forma indesejada. Isto diz muito mais sobre a burguesia do que sobre o neofascismo.

Em certos momentos, a burguesia brasileira até se envergonha dos absurdos cometidos por seu menino. Ela tenta mostrar para seus chefes da burguesia internacional que são apenas ações inconsequentes, mas que tudo está sobe controle.

A imprensa, outra filha de nossa burguesia, não se deu bem com o irmão mais novo. Desde o nascimento deste, ela buscou ser carinhosa, fazer vista grossa quando ele passava dos limites, não contava aos pais os chutes e puxões de cabelo que levava, mas com o passar do tempo a relação entre os irmãos tem se tornado insustentável. O irmão, de forma sádica, ri da dor que causa a sua semelhante, os pais fingem que nada acontece, ou talvez, já não saibam como lidar com a “espontaneidade” do filho.

O Deus Livre Mercado assiste tudo, enquanto Jesus tem suas feridas amostra e sangra no alto do morro. Jesus verdadeiro, não o criado pela mitologia cristã-ocidental, também faz parte do sacrifício que deve ser feito em nome do desejo pelo lucro. Sem o teatro da crucificação está será somente mais uma morte, entre tantas outras, de corpos negros que tombam diariamente. Mais um número cru e frio para a estatística.

– “O PIB não cresceu presidente…”
– “Senhor presidente, 1,1% foi um resultado abaixo do esperado…”
– “Presidente e o PIB?”

Perguntavam os jornalistas na capital federal quando o filho recente de nossa burguesia apareceu, ou melhor… quando o palhaço fantasiado de presidente surgiu. No grande show sem graça que virou a tragédia nacional, o ator principal desta peça trocou de lugar momentaneamente com um palhaço, e ninguém percebeu a diferença. Ou melhor, percebemos a diferença, sendo que no fundo ela não faz diferença nenhuma. O real, o grotesco e o absurdo se misturam, e tudo não passa de um longo filme com piadas de mal gosto.

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Governo Bolsonaro