A monopolização do capital, para León Trotsky, esteve diretamente associada a um processo de internacionalização e integração cada vez maior do sistema capitalista, o que fez como que as industrializações realizadas a partir de fins do século XIX tivessem no capital estrangeiro um ingrediente fundamental. Por uma questão de temporalidade histórica, não foi possível às nações hipertardias empreenderem o desenvolvimento de suas forças produtivas sem que encontrassem no capital imperialista, proveniente das nações preteritamente industrializadas, um impulsionador econômico de suas industrializações e, ao mesmo tempo, um obstáculo incontornável para o alcance de suas autonomias política e econômica. O atraso, mais uma vez, cobrava seu preço; todavia, diferentemente do caso das nações tardias, ele agora o cobrava em dobro: não só as burguesias hipertardias não poderiam ser revolucionárias ou mesmo “democráticas”, como também lhes estava vetada, historicamente, a possibilidade de virem a dirigir grandes potências imperialistas que ocupassem os papéis principais na novela mundial. Em outras palavras: a existência de nações imperialistas de primeiro time no sistema mundial de Estados foi, sem dúvida, um fator impeditivo para que outras nações também viessem a sê-lo.
Evidentemente, o exemplo da Rússia vem ao caso. Para Trotsky, a forte presença do capital estrangeiro (especialmente o inglês, o francês, o belga e o alemão) na economia russa, e em particular no ramo industrial, foi determinante no que diz respeito à carência de força política da burguesia do país. O alto índice de investimento de capitais estrangeiros no território russo fazia com que a burguesia local se visse desinteressada de travar uma luta “democrático-burguesa” contra o regime autocrático, já que as potências imperialistas tinham no czarismo uma instituição política que garantia seus lucros. Além disso, essa penetração externa de capital na Rússia debilitava significativamente sua burguesia, impossibilitando-a de adquirir uma consistência e organicidade típicas de uma verdadeira classe “nacional” capaz de dirigir os diversos segmentos sociais no enfrentamento ao czarismo. Tal aspecto só fazia aumentar seu temor de que viesse a ser o proletariado, e não ela própria, o sujeito social a protagonizar uma luta política de caráter anti-absolutista – o que, de certo modo, acabou ocorrendo em fevereiro de 1917.
No plano internacional, uma das consequências dessa maciça inserção dos investimentos estrangeiros na Rússia foi o fato de que o país não logrou ocupar mais do que uma posição rebaixada enquanto nação imperialista. A fragorosa derrota militar para o império japonês na primeira metade da década de 1900 foi um indício claro de que a primeira e segunda fileiras do teatro imperialista já tinham seus assentos devidamente ocupados, respectivamente, pelas nações capitalistas originárias e tardias. Coube à Rússia, resignada, conformar-se com a terceira fileira. O papel extremamente subalterno ocupado pela Rússia, cerca de dez anos depois do fim da guerra russo-nipônica, no bloco imperialista da Entente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), não deixou dúvidas quanto a isso. A subserviência econômica, política e militar da burguesia russa face às demais burguesias imperialistas da Entente a impediu, e a seus aliados mencheviques e socialistas-revolucionários, de retirar da guerra uma nação já completamente exaurida e quase derrotada, o que, consequentemente, tornou perceptível aos operários, soldados e camponeses russos o fato de que somente os bolcheviques eram seus sinceros e legítimos intérpretes. A dependência econômica da burguesia russa diante dos banqueiros e industriais estrangeiros a fez incapaz de tomar uma única atitude, digamos, “nacional”; no caso, uma atitude que poupasse “sua” população, em especial “seus” camponeses e operários que serviam no front, de uma carnificina inaudita gerada, essencialmente, pela cobiça de outrem. Tal impotência custou à burguesia russa nada mais nada menos do que sua própria existência social.
Quanto aos países latino-americanos, asiáticos e africanos, pode-se dizer que há uma diferença de qualidade em relação à Rússia, no que diz respeito ao papel exercido pelo capital imperialista. Ainda mais industrialmente retardatários que a terra dos czares e, desde muito tempo, inseridos de modo subalterno em um sistema capitalista mundial ainda em formação, vieram esses países a assumir um caráter “semicolonial” ou propriamente “colonial” na ordem mundial imperialista configurada a partir de fins do século XIX. Suas burguesias, desde suas gêneses vinculadas ao capital estrangeiro e submetidas ao imperialismo, expunham uma “debilidade” política ainda mais agravada do que as de nações como a Rússia, que, afinal de contas, era uma nação imperialista, ainda que de terceira linha. Periféricas e dependentes até o âmago do capital externo, essas burguesias, segundo Trotsky, pouco ou quase nada podiam (e queriam) em termos de efetivação de medidas que, mesmo que de longe, lembrassem algo de “revolucionário” ou “democrático”:
Nem uma só das tarefas da revolução “burguesa” pode realizar-se nos países atrasados [aqui Trotsky refere-se especificamente aos países “coloniais” e “semicoloniais”] sob a direção da burguesia “nacional”, porque esta, desde seu nascimento, surge com apoio externo como classe distanciada e hostil ao povo. Cada etapa de seu desenvolvimento a liga mais estreitamente ao capital financeiro externo do qual é, em essência, agente. […]
Desde logo não se pode identificar a Rússia com a China. Com todos os traços importantes que compartilham, as diferenças são bastante óbvias. Mas não é difícil dar conta de que essas ditas diferenças não debilitam, e sim fortalecem as conclusões fundamentais do bolchevismo. Em certo sentido a Rússia czarista também era um país colonial, o que se expressava no papel predominante do capital externo. Mas a burguesia russa gozava dos benefícios de uma independência muito maior do imperialismo externo do que a China. A Rússia era um país imperialista.[1]
Polemizando, em 1938, com a direção estalinista da IC em função da postura “etapista” por ela adotada durante a revolução chinesa de 1925-1927, Trotsky expôs como as burguesias “coloniais” e “semicoloniais” eram ainda mais reacionárias do que havia sido, nas duas primeiras décadas do século XX, a burguesia russa: “As diferenças entre China e Rússia – a dependência incomparavelmente maior da burguesia chinesa em relação ao capital estrangeiro, a ausência de tradições revolucionárias independentes no seio da pequena-burguesia, a atração massiva de operários e camponeses para a bandeira do Komintern – exigiam [na China] uma política ainda mais intransigente, se isso fosse possível, que na Rússia.”[2]
Recorrendo a uma espécie de “ranking do atraso” que pode ser entrevisto na obra de Trotsky, podemos dizer que os países “coloniais” e “semicoloniais” seriam os mais atrasados dentre os atrasados, dada a imbricação presente nestes entre modernização industrial capitalista retardatária e subordinação ao imperialismo.[3] Assim, a luta pela revolução socialista nessas formações sociais hipertardias estaria intimamente associada à luta pela realização das tarefas “democráticas” e pela libertação do jugo imperialista. Em outro texto de 1938, este de natureza exclusivamente programática, Trotsky indicou a política a ser efetivada pelos revolucionários nas regiões mais atrasadas do globo:
Os países coloniais e semicoloniais são, por sua própria natureza, atrasados. Estes países vivem em condições de domínio mundial do imperialismo. Seu desenvolvimento, consequentemente, tem um caráter combinado: reúnem em si as formas econômicas mais primitivas e a última palavra da técnica e da civilização capitalista. É isto que determina a política do proletariado dos países atrasados: ele é obrigado a combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial. Nessa luta, as palavras de ordem democráticas, as reivindicações transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas em épocas históricas distintas, mas decorrem umas das outras. Apenas havia iniciado a organização de sindicatos, o proletariado chinês foi obrigado a pensar nos conselhos. É nesse sentido que o presente programa [o “Programa de Transição”] é plenamente aplicável aos países coloniais e semicoloniais; pelo menos onde o proletariado já é capaz de possuir uma política independente.
Os problemas centrais desses países coloniais e semicoloniais são: a revolução agrária, isto é, a liquidação da herança feudal, e a independência nacional, isto é, a derrubada do jugo imperialista. Essas duas tarefas estão estreitamente ligadas uma à outra.
É impossível rejeitar pura e simplesmente o programa democrático; é necessário que as próprias massas o ultrapassem na luta […] É necessário armar os operários com esse programa democrático. Somente eles poderão sublevar e reunir os camponeses. Baseados no programa democrático e revolucionário é necessário opor os operários à burguesia “nacional” […] Somente eles são capazes de levar a revolução democrática até o fim e, assim, abrir a era da Revolução Socialista.[4]
Nota-se claramente acima a utilização da “teoria da revolução permanente”, esboçada desde 1906 com vistas à aplicação na Rússia czarista, para dar conta do caráter da revolução nos países “coloniais” e “semicoloniais”. Na análise de Trotsky, o peso do capital estrangeiro nesses países é decisivo (mais do que o foi na própria Rússia) no que diz respeito à determinação das possibilidades políticas de suas burguesias nativas. O imperialismo não é, na perspectiva trotskista, apenas um elemento “a mais”; ele é um fator estruturante das relações sociais na periferia do sistema capitalista. Contudo, diferentemente dos “etapistas” e “dualistas” de todo tipo, o imperialismo não é tratado por Trotsky como uma entidade “externa” às áreas submetidas a ele, nas quais teria como “cônsules” apenas o “latifúndio” e os setores mais reacionários e “arcaicos” da burguesia local (“burguesia agrária”, mercantil”, “compradora” etc.). Longe de operar com uma dicotomia “Nação x antinação” e depositar suas esperanças políticas em uma “burguesia nacional” de cunho “progressista”, Trotsky, invocando justamente a historicidade dos países periféricos, afirmava o comprometimento inquebrantável do conjunto das classes dominantes “coloniais” e “semicoloniais” com o imperialismo.
Organicamente vinculadas ao capital estrangeiro, as burguesias periféricas nada podiam (e queriam) em termos da realização de rupturas de fato com o imperialismo e, conseqüentemente, da efetivação de medidas “democráticas” que atendessem às amplas massas populares. Dada a “rapina” imperialista exercida nas áreas periféricas, ou seja, o encaminhamento para o exterior de grande parte do resultado da exploração do trabalho local, as burguesias “coloniais” e “semicoloniais” gozariam de pouquíssima margem de manobra econômica face às demandas do proletariado crescente. Desse modo, o regime “democrático-burguês”, pelo menos enquanto uma forma não meramente circunstancial e extremamente efêmera de dominação política, constituía-se em uma impossibilidade histórica para as regiões “coloniais” e “semicoloniais”. A nosso ver, as várias ocorrências de ditaduras militares e regimes bonapartistas (mais ou menos repressivos, mais ou menos militarizados) na Ásia, América Latina e África ao longo do século XX não deixam de constituir provas empírico-históricas da validade da assertiva trotskista.[5]
NOTAS
[1] TROTSKY, L. “La revolución china”. In: ______. La teoria de la revolución permanente: Compilación. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones [CEIP] León Trotsky, 2000., p. 528-533
[2] Idem, p. 533
[3] Vale dizer que Trotsky afirmou a existência de diferentes gradações de atraso no interior do conjunto de países “coloniais” e “semicoloniais”: “Os países coloniais e semicoloniais – atrasados, portanto –, que abarcam a maior parte da humanidade, diferem extraordinariamente entre si quanto ao grau de seu atraso. Ocupam uma escala histórica que vai do nomadismo e ainda do canibalismo até a cultura industrial mais moderna. Essa combinação de extremos caracteriza em maior ou menor grau a todos os países atrasados. Contudo, a hierarquia do atraso, se é possível empregar o seguinte termo, se vê determinada pelo peso específico dos elementos de barbárie e cultura na vida de cada país colonial. A África Equatorial está muito atrasada em relação à Argélia, o Paraguai em relação ao México, e a Abissínia em relação à Índia ou China. Detrás de sua dependência econômica comum da metrópole imperialista, a dependência política tem em alguns casos o caráter de escravidão colonial aberta (Índia, África Equatorial), enquanto que em outros se vê ocultada pela ficção da independência estatal.” TROTSKY, L. Idem, p. 527-528. Grifos nossos. Cabe apontar aqui que a existência de uma “via colonial” do desenvolvimento capitalista foi proposta para o caso brasileiro por José Chasin em seu trabalho sobre o líder integralista Plínio Salgado (CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. 2ª edição. Belo Horizonte/ São Paulo: Una Editora/ Estudos e Edições Ad hominem, 1999.
[4] TROTSKY, L. Programa de Transição. A agonia do capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional. (Cadernos Marxistas). São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2004, p. 41-43. Grifos do autor.
[5] Não custa lembrar que, em muitos casos, as ditaduras militares encerram um conteúdo bonapartista, e que o elemento militar ocupa sempre um papel importante (com maior ou menor peso) em todo regime bonapartista.
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