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BRASIL

As reformas do Estado brasileiro durante a República: uma análise em perspectiva histórica

Cacau Pereira (*)

Durante a República, instalada a partir de 1889, é possível identificar cinco ciclos de reformas estruturais do Estado brasileiro, que se relacionam à ascensão de um determinado setor das classes dominantes ao controle do aparelho do Estado ou na imposição de determinada hegemonia burguesa frente aos demais segmentos desta classe.

Neste artigo vamos começar a analisar esses ciclos, procurando identificar os elementos que dão unidade às reformas empreendidas em cada um dos momentos históricos, mas não temos a pretensão de verificar todas as dimensões dos fatos políticos e sociais.

Vamos nos concentrar em quatro elementos que se articulam em cada momento histórico e que estiveram presentes na ação dos governos de cada período: i. as reformas do aparelho do Estado, envolvendo os serviços públicos, os servidores e empresas públicas; ii. as modificações na legislação trabalhista; iii. as transformações na previdência pública e nas políticas de seguridade social e, por fim, iv. as políticas educacionais adotadas em cada período.

Os cinco períodos indicados são: os governos Vargas de 1930 a 1945; a ditadura militar de 1964 a 1985; a Constituição Federal de 1988, resultante do período anterior de luta pela redemocratização e derrubada da ditadura; os governos neoliberais de FHC, estendendo até o início do governo Lula, de 1995 a 2003 e o período mais recente, a partir do impeachment de Dilma Rousseff, abarcando os governos Temer e Bolsonaro, de 2016 em diante. Neste texto trataremos do primeiro ciclo de reformas, ocorrido durante o governo Vargas, de 1930 a 1945.

Antecedentes

O período da chamada República Velha ou Primeira República (1889 a 1930) foi marcado pelo domínio das oligarquias, pelo clientelismo e coronelismo. As unidades da Federação gozavam de autonomia política e econômica mais ampla e o peso político dos governadores era bastante grande. Os primeiros governos republicanos foram encabeçados por militares, mas a maior parte desse período ficou marcada pela política do café com leite, que alternava representantes das principais oligarquias (São Paulo e Minas Gerais) no controle do aparato estatal.

Esse momento também foi marcado pela incipiente industrialização do país e o surgimento de uma pequena classe operária industrial, principalmente na cidade de São Paulo, que começa a se mobilizar já em meados da primeira década do século XX. Inúmeras revoltas populares ocorreram no período, destacando-se as Revoltas da Armada, da Vacina, do Contestado, da Chibata, Canudos, dentre outras. Em 1917 ocorreu uma greve geral dos trabalhadores da indústria e do comércio de São Paulo, que se estendeu ao Rio de Janeiro e ao Rio Grande do Sul.

O arranjo político das oligarquias dominantes entra em crise nas eleições de 1930, resultando na chegada ao poder de Getúlio Vargas, líder político no Rio Grande do Sul, em aliança com outras elites regionais.

Primeiro ciclo: A Era Vargas (1930 a 1945)

O primeiro governo Vargas deixou como legado um salto na urbanização do país e na industrialização, além de mudanças profundas na administração pública, com uma importante reforma do Estado, resultando no fortalecimento do empresariado industrial e na formação de um corpo tecnocrático nas empresas e na administração públicas.

Num contexto internacional turbulento, marcado por duas guerras mundiais e a grande depressão econômica dos 1920/1930, foi um período de fortalecimento das ideias socialistas e de desarticulação da economia capitalista, momento propício para o desenvolvimento de ideários nacionalistas burgueses em vários países.

A reforma do Estado de Vargas teve na criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em 1937, um elemento de grande importância. As funções do DASP já estavam previstas na Constituição aprovada naquele mesmo ano, dentre elas: a organização dos serviços públicos, das dotações orçamentárias e processos de trabalho; a organização da lei orçamentária anual e a fiscalização da sua execução.

A regulamentação, por decreto-lei, desses dispositivos constitucionais agregaria, ainda, como funções do DASP, a seleção de candidatos aos cargos públicos federais – excetuando-se as secretarias da Câmara dos Deputados, magistério e magistratura – e a inspeção dos serviços públicos – inclusive a readaptação e aperfeiçoamento dos funcionários civis da União.

A adoção dessa legislação teve caráter divisório na organização do serviço público no Brasil, constituindo-se, a partir daí, uma burocracia estatal profissionalizada e introduzindo-se conceitos de meritocracia na seleção de servidores para a administração pública. São a tradução, no terreno da reforma empreendida, dos princípios da teoria administrativa norte-americana, hoje conhecida como “teoria clássica ou tradicional” que preconizava, dentre outros princípios, a separação entre a política e a administração pública. O primeiro governo Vargas tem, portanto, no estabelecimento da base da estrutura administrativa que marcaria o país pelas décadas seguintes, um elemento distintivo.

Também durante esse período foram criadas inúmeras agências, órgãos de assessoramento e autarquias voltadas à formulação de políticas econômicas e sociais, fiscalização e pesquisa. O Estado foi parte da edificação de empresas públicas e sociedades de economia mista, com destaque para a Cia. Vale do Rio Doce, a Cia. Siderúrgica Nacional, a Cia. Nacional de Álcalis, a Fábrica Nacional de Motores e a Cia. Hidrelétrica do Vale do São Francisco, dentre outras. O modelo buscava o fortalecimento da indústria nacional associada ao capital estrangeiro.

Legislação trabalhista

Mas o Estado buscou também intervir e disciplinar a força de trabalho e suas formas de organização autônoma. Foi criada uma estrutura sindical de caráter corporativo, cujo escopo era a colaboração entre capital e trabalho, voltada essencialmente aos trabalhadores do setor privado. A sindicalização e o direito de greve para os empregados do Estado eram proibidos.

Símbolo desse processo foi a criação, em 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, instrumento chave para a implantação da política sindical do novo governo. Em 1932 foi editada a lei dos Sindicatos, sepultando a legislação de 1907, que previa a autonomia dos trabalhadores na organização de suas representações sindicais. A nova legislação estabelecia os sindicatos como órgãos de colaboração de classes e de cooperação técnica com o governo. Os sindicatos não podiam fazer propaganda política e era proibido manter relações com organizações internacionais.

Em 1935 foi editada a Lei de Segurança Nacional (LSN), que colocava na ilegalidade todo movimento dirigido para mudar a ordem constituída e que facilitava a repressão ao movimento operário. Somente em 1943 é que aparece a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), reunindo de forma organizada e sistemática um conjunto de leis trabalhistas, que passam a valer como um código nacional. A CLT foi precedida de inúmeras mudanças na legislação material trabalhista cujo escopo era dar a segurança jurídica necessária aos capitalistas – nacionais e estrangeiros – nessa nova fase de expansão industrial no Brasil.

Previdência pública

No terreno da legislação previdenciária, as mudanças ocorridas no período também são substantivas. A intervenção do Estado na organização previdenciária brasileira tem no Decreto Legislativo nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923 – conhecido como Lei Eloy Chaves – a primeira norma a instituir no Brasil a previdência social, e determinava a criação de caixas de aposentadoria e pensões para os empregados ferroviários. As CAPs, juridicamente, eram sociedades civis.

O sistema das CAPs era livre de qualquer intervenção estatal e tinha o financiamento originado de três fontes: empregados, empresas e a “quota da previdência” dos impostos originados dessas empresas. Em 1937 já eram 183 CAPs instaladas pelo país, ligadas a uma categoria profissional ou aos trabalhadores de uma empresa.

O governo Vargas decide então intervir nas instituições previdenciárias. A ação estatal se traduziu na criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), entidades que começam por coexistir com as CAPs para, em seguida, absorvê-las. O primeiro IAP foi o dos marítimos, que é considerada a primeira instituição de previdência social de caráter nacional. Entre 1933 e 1945 foram criados seis IAPs: industriários, marítimos e transporte de carga, bancários, comerciários, estiva e servidores do estado. Além da aposentadoria, os IAPs também assumiam a prestação de assistência médica aos filiados e seus dependentes.

Entre 1930 e 1945 vai ocorrer a capitalização do sistema previdenciário. A expansão dos IAPS, constituídos como autarquias, possibilita o maior controle do Estado. Pelo lado econômico-financeiro, o controle sobre as reservas previdenciárias, a partir de meados de 1930, transforma a previdência no principal “sócio” do Estado no financiamento do processo de industrialização do país.

Modifica-se a natureza da participação do Estado no sistema previdenciário, com a introdução do conceito de “contribuição tripartite”, pelo qual passam a ser equiparados os valores das contribuições das três fontes principais de receita (empregados, empresas e governo). A arrecadação é, então, centralizada pelo governo federal.Os saldos financeiros das instituições previdenciárias passam a ter outra destinação, a de funcionar como fundo excedente complementar, apropriado pelo Estado, no financiamento da acumulação de capital no Brasil.

Legislação educacional

No campo educacional, destaca-se a criação do Ministério da Educação e Saúde públicas, em 1930. Uma de suas primeiras providências do governo, ainda antes da Constituição de 1934, foi o restabelecimento do ensino confessional na rede pública de ensino. A Constituição de 1891 estabelecera o ensino leigo como orientação educacional nas instituições públicas.

No entanto, os anos seguintes à promulgação da Constituição republicana foram marcados por um intenso debate entre as duas vertentes educacionais preponderantes, os católicos e os liberais. Os dois grupos estiveram presentes na fundação da Associação Brasileira de Educação (ABE) em 1924. Havia dois temas principais de dissenso: a obrigatoriedade do ensino religioso e a concepção de escola do trabalho, em contraposição à escola voltada à formação das classes sociais abastadas.

O grupo católico, que teve como expoentes Francisco Campos e Alceu Amoroso Lima, deu origem à Confederação Católica Brasileira de Educação, defensora do ensino privado e confessional. O segundo grupo organizou o movimento que publicou em 1932 o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, em defesa da laicidade, gratuidade e obrigatoriedade da educação pública. Dentre os signatários do Manifesto figuravam Cecília Meirelles, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Júlio de Mesquita Filho, Mario Casassanta, dentre outros.

Coube ao Ministro Francisco Campos, a partir de 1931, dar passos fundamentais na edificação de plano nacional de educação, com a criação do Conselho Nacional de Educação e a edição do Estatuto das Universidades Brasileiras. Em seu ministério a educação passa a ter, efetivamente, uma estruturação orgânica e obrigatória em todo o país.

Já o Ministro Gustavo Capanema, que o sucede, dá continuidade às reformas, mas destaca-se pela implementação do ensino público profissionalizante nas áreas agrícola, comercial e industrial e pela criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e do Serviço Nacional de aprendizagem Comercial (SENAC).

Em apertada síntese, podemos afirmar que as reformas estruturais levadas a cabo foram fundamentais na transição do caráter do estado brasileiro, alterando a hegemonia da burguesia cafeeira e agrário-exportadora para o setor industrial, fortalecendo uma burguesia nacional que começava a associar-se ao mercado internacional. O controle sobre o movimento operário foi peça fundamental dessa arquitetura, daí a importância das reformas trabalhistas. O serviço público sofreu mudanças substantivas, interrompendo-se ou diminuindo-se o mandonismo característico do período anterior. O Estado passou a controlar o fundo previdenciário construído autonomamente pelos trabalhadores no período anterior, peça decisiva na acumulação de capital necessária para a transição política e econômica em curso.

 

(*) Cacau Pereira é militante da Resistência/PSOL. Coordena o Instituto Classe Consultoria e Formação Sindical e colabora com o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (IBEPS). Contatos: [email protected]