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EDITORIAL

Estratégia e tática para derrotar Bolsonaro

Editorial especial 04 de fevereiro de 2020

A correlação de forças entre as classes sociais no Brasil mantém-se bastante desfavorável aos explorados e oprimidos. Seguimos numa situação política reacionária marcada pela (a) ofensiva da classe dominante em todos os terrenos; (b) existência de uma extrema-direita neofascista que encabeça o governo federal e que tem bases de massas; e (c) pelo retrocesso ideológico, perda de confiança e divisão política da classe trabalhadora.

No início desse ano, novos ataques estão sendo preparados. Enquanto mais de um milhão de brasileiros amargam na fila do INSS, sem conseguir aposentadoria e auxílio-doença, e centenas de milhares de jovens são prejudicados pelos erros grotescos na correção do ENEM, o governo prepara a reforma administrativa, a qual prevê destruição sem precedentes dos direitos do funcionalismo público, e uma longa lista de privatizações, para liquidar de vez o patrimônio público nacional.

Por outro lado, nesse momento, como parte da resistência dos debaixo, temos a greve dos funcionários da Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social), que obrigou o governo a suspender as demissões anunciadas, a greve nacional de petroleiros, umas das categorias mais estratégicas do país, e a greve dos servidores da Casa da Moeda.

Como demonstram essas lutas, apesar do difícil cenário, a batalha não está perdida. A classe trabalhadora e oprimida, embora esteja numa situação marcadamente defensiva, pode construir o caminho para virar o jogo. Para tanto, é preciso ter uma leitura realista do cenário político, social e econômico, bem como é necessário adotar táticas e estratégia corretas para vencermos. Este editorial especial do Esquerda Online pretende contribuir para essa tarefa.

A economia vai sair da estagnação? 

A economia brasileira segue em um quadro de estagnação. O PIB de 2019 cresceu em torno de 1%, o que em termos de PIB per capita significa crescimento zero. Os dados econômicos do último semestre, com indicadores mais positivos, sugerem a possibilidade de haver um pequeno crescimento em 2020, algo em torno de 2%. Ao mesmo tempo, a economia mundial segue desacelerando (e sofre, agora, um abalo com a disseminação do Conavirus na China), o que coloca a possibilidade da eclosão de uma nova crise econômica internacional.

Este quadro sugere dois cenários principais para 2020: (a) o mais provável é a economia  nacional ficar entre a estagnação (0 a 1%) e um pequeno crescimento do PIB (de 1 a  2%), sem reversão da crise social instalada, uma vez que o modelo econômico se fundamenta justamente na maior exploração e precarização do trabalho, além dos brutais cortes nos serviços públicos e nos programas sociais; (b) novo mergulho recessivo no Brasil, no caso de explosão de uma nova crise econômica internacional, o que levaria ao aprofundamento da crise social.

Escalada autoritária segue sua marcha

As transformações autoritárias no regime político seguem em desenvolvimento. A resposta de Bolsonaro à matéria do Jornal Nacional veiculada em outubro do ano passado, que expôs uma possível ligação de sua família à execução de Marielle, foi uma manifestação categórica desse processo: existiu uma rápida e eficaz ação coordenada entre o Ministério da Justiça (Sérgio Moro), a Procuradoria da República (Augusto Aras) e o Ministério Público do Rio para blindar Bolsonaro.

A outra face desse processo é o aumento da letalidade policial nas periferias e favelas, matando ainda mais do que antes a juventude e trabalhadores negros e pobres. Há uma radicalização do genocídio do povo negro e pobre no país. Verifica-se também o aumento dos assassinatos e prisões políticas de lideranças indígenas, sem-terras e ambientalistas. Os recentes episódios de censura no cinema nacional e em outras áreas também revelam o curso de transformação autoritária no campo cultural.

As repetidas declarações de Bolsonaro e de seus filhos sobre a necessidade de fechamento do regime (com um novo AI-5), caso exista um cenário de mobilizações sociais radicalizadas no país (como no Chile), expõe de modo categórico o projeto estratégico do bolsonarismo, que se prepara para uma possibilidade, no médio prazo, de uma ruptura autoritária mais drástica, caso o contexto da luta de classes a coloque na ordem do dia. A declaração de Paulo Guedes sobre o AI-5, no final do ano passado, reforça esse objetivo e revela o jogo duplo dos setores burgueses “democráticos” (Maia, Globo, Folha, Centrão, PSDB etc.), que se dizem contrários ao projeto e atos autoritários de Bolsonaro, mas que, ao apoiar enfaticamente o programa econômico chefiado por Guedes, ajudam a dar sustentação a esse governo.

O governo e as classes

Há uma ampla unidade entre a burguesia nacional, a maioria de direita do Congresso, o capital financeiro internacional, o imperialismo norte-americano e o governo Bolsonaro na aplicação de um duríssimo projeto de econômico de destruição dos direitos e das conquistas classe trabalhadora brasileira. Para a execução desse projeto, seu governo vem sendo muito útil ao grande capital nacional e estrangeiro.

Por isso, apesar das diferenças no tocante aos chamados “excessos” de Bolsonaro, prevalece o apoio político do grande capital ao governo. Em outras palavras, setores burgueses podem até criticar algumas medidas autoritárias de Bolsonaro, mas as tolera — e muitas delas são aceitas de bom grado) em nome das reformas e dos ataques à classe trabalhadora. Há também setores patronais abertamente bolsonaristas (como Luciano Hang, o “véio” da Havan) ou que se aproximam rapidamente de Bolsonaro, como Paulo Skaf, presidente da FIESP, e a diretoria da CNI (Confederação Nacional da Indústria).

A ampla unidade da classe dominante no programa econômico-social não diminui a importância das divisões políticas e institucionais entre os setores tradicionais da direita burguesa e o bolsonarismo. Os enfrentamentos existentes produzem choques e colocam obstáculos à estratégia de Bolsonaro, como a imposição de derrotas ao governo em votações na Câmara e no Senado, especialmente em temas fora da pauta econômica.

O governo segue com um patamar de apoio relevante na população: 30% de ótimo ou bom, 32% de regular e 36% de ruim/péssimo, segundo a última pesquisa Datafolha. A popularidade de Bolsonaro caiu em relação ao início do ano passado, mas desde junho os índices se estabilizaram, com uma oscilação positiva para ele nos últimos meses. O apoio ao governo é maior entre os que ganham mais, brancos, moradores das regiões Sul e Sudeste e entre os homens. A rejeição é maior entre os mais pobres, negros, moradores do Nordeste e entre as mulheres.

Neofascismo se organiza

A fundação do partido bolsonarista “puro sangue” (Aliança pelo Brasil), após o racha no PSL em razão da disputa de poder e dinheiro, indica a formação de um partido abertamente neofascista no país com influencia de massas. O projeto de programa do partido não deixa margem à dúvida sobre seu caráter. Esse partido nascerá baseado nas centenas de milhares de seguidores mais radicais de Bolsonaro (pequena burguesia decadente e setores exasperados do proletariado), no fundamentalismo religioso (apoio de várias igrejas evangélicas), nas milícias, em parte do corpo policial e das Forças Armadas e também nos setores patronais, muitos pertencentes à lumpen-burguesia, que aderiram ao neofascismo.

Após quase um ano de governo, fica nítido que o neofascismo bolsonarista segue  dirigindo um expressivo, ainda que minoritário, setor de massas (com capacidade de mobilização de rua e nas redes), e conta para isso com um aparato considerável provido por igrejas e setores da grande mídia, do empresariado, da polícia, das Forças Armadas, entre outros. Bolsonaro governa fundamentalmente para manter coesa e organizada a sua base mais radical. Assim, o neofascismo se prepara para a ocasião de acirramento da luta de classes no país, momento em que poderá tentar acelerar o processo de fechamento do regime.

A resistência social e democrática

O melhor momento para a classe trabalhadora em 2019 foi a enorme mobilização em defesa da educação pública — o “tsunami” da educação. No entanto, esse movimento perdeu força depois de junho. Existiram outras lutas localizadas de categorias e setores, que, apesar de sua importância, não conseguiram adquirir um patamar superior.

A rigor, verificou-se, no ano passado, um quadro de refluxo das lutas e greves, que decorre tanto do cenário econômico (medo do desemprego) como do político (medo de repressão e demissão e falta de confiança nas direções e em suas próprias forças). O peso das derrotas dos últimos anos pesam na subjetividade da classe, resultando em retrocesso na consciência e menor confiança para a luta coletiva.

Contribuiu para essa panorama de dificuldade o papel regressivo das direções sindicais (mais interessadas nas negociações para manter a burocracia sindical) e políticas majoritárias (a maioria voltada para as eleições somente, buscando alianças com partidos do centro e da direita).

No terreno das lutas, nesse momento, destacamos a importância da greve nacional de petroleiros e de setores do funcionalismo, a construção do 8 de Março — dia internacional de luta da mulheres —, da luta da juventude em defesa da educação pública (#ForaWeintraub), da agenda de mobilização do funcionalismo público e dos professores, que planejam um dia de greve em 18 de março.

Como um primeiro passo no sentido da construção da unidade das lutas para fortalecer a resistência, é preciso cercar de solidariedade os movimentos que estão ocorrendo. A greve dos petroleiros, dos trabalhadores da DATAPREV e dos servidores da Casa da Moeda, assim como a mobilização dos previdenciários contra o desmonte do INSS, necessitam do apoio ativo de todas organizações sindicais e dos movimentos sociais.

A esquerda e Lula

Em suas primeiras declarações, depois de sair da prisão, Lula apresentou um perfil de contundente oposição ao governo Bolsonaro. No entanto, suas últimas falas apresentam um perfil político bem mais moderado. Em sua última entrevista ao portal UOL, o petista chegou a afirmar que torce pro governo “dar certo” e não fez nenhuma menção à necessidade de mobilização social contra Bolsonaro.

Lula e a direção majoritária do PT, mais uma vez, apostam num discurso conciliatório voltado para setores burgueses e da direita tradicional, visando possíveis acordos para as disputas eleitorais. Desse modo, ao não jogarem sua influência política no sentido da mobilização social, enfraquecem a capacidade de resistência dos trabalhadores, dos setores oprimidos e da juventude. Para piorar, os governadores do PT estão aplicando duríssimos ataques, seguindo a cartilha neoliberal de desmonte de direitos sociais. Na Bahia, Rui Costa acaba de aprovar, com muita truculência, uma reforma da previdência semelhante àquela do governo Bolsonaro.

O retorno de Lula aos palanques fortalece o PT na disputa política nacional, ao colocá-lo como principal oponente de Bolsonaro. Este cenário coloca um duplo desafio para o PSOL e à esquerda socialista de conjunto, na medida em que abre tanto o perigo do sectarismo como o do oportunismo. O erro sectário consiste em agitar denúncias de Lula e o PT, chamando-os de traidores, se negando a fazer exigências a essas direções com peso de massas. O perigo oportunista, por sua vez, caracteriza-se por esconder as diferenças e críticas políticas e programáticas com o PT e Lula em nome da unidade pra lutar contra Bolsonaro.

Estratégia e tática para vencer

É preciso, em nossa opinião, fazer o debate sobre a orientação estratégica para o período. Para nós, a estratégia a ser adotada se concretiza na seguinte forma: construir as condições para derrubar Bolsonaro nas ruas, inspirando-se no processo chileno. Não se trata, evidentemente, de uma palavra de ordem para agitação ou para ação imediata, uma vez que não estão dadas as condições para derrubar o governo hoje. Essa estratégia adquire relevância diante do avanço do bolsonarismo: sem construir a organização e a mobilização de um amplo setor de massas estaremos muito fragilizados para enfrentar o perigo neofascista.

Opomos essa estratégia às duas outras existentes na esquerda: (a) a estratégia reformista-eleitoral que aposta na derrota de Bolsonaro nas eleições via a formação de uma frente ampla   “progressista” (de aliança com partidos da direita e do centro, como o PDT, PSB e Rede); essa estratégia “quietista”, que aposta no desgaste lento e gradual em tendo em vista às eleições, é predominante no PT e no PCdoB. Nesse último, inclusive, a linha é ainda mais à direita, com Flávio Dino se reunindo com Luciano Huck e Fernando Henrique, com a esperança de construir um bloco com o “centrão”, o mesmo que foi decisivo para a aprovação da reforma da previdência, e antes para o golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff. Essa linha oportunista subestima, inclusive, o perigo de maior fechamento do regime antes das próximas eleições presidenciais. (b) A estratégia esquerdista — a da ofensiva permanente — que aposta, sem haver condições para tanto, na deflagração de um processo mais ou menos imediato de derrubada do governo, agitando para isso o “fora governo” e “greve geral já”.

As três tarefas que derivam da nossa aposta estratégica seguem sendo: (i) frente única dos explorados e oprimidos em defesa das conquistas sociais, trabalhistas e democráticas, o que exige a unidade das principais direções e organizações da esquerda e dos movimentos sindicais e sociais em torno de uma agenda comum e coordenada de luta e de um programa mínimo para ação; (ii) ampla unidade de ação (incluindo setores burgueses dispostos ao enfrentamento) contra os ataques às liberdades democráticas e à ameaça de golpe militar; (iii) construção de uma alternativa à esquerda do PT, sendo o PSOL a principal a referência desse processo.

A tática da Frente Única (FU) — que exige uma fronteira de classe — ganha importância na medida em que toda a burguesia e o imperialismo, mesmo seu setor que se opõe às pretensões bonapartistas (autoritárias) mais radicais de Bolsonaro, dão suporte e patrocinam o programa econômico-social do governo neofascista, sustentando dessa forma o governo como um todo.

Vale dizer que a batalha pelas massas não passa somente pelo chamado unificado de dias nacionais de luta ou de mobilizações de rua. É preciso construir a Frente Única também para disputa de consciência da maioria da classe, ou seja do povo pobre e trabalhador — agitação e propaganda sobre as massas e no trabalho de base cotidiano, para convencimento político e ideológico, para formar uma maioria social contra Bolsonaro e seu projeto.

Do mesmo modo, é necessário apresentar um programa radical de transformação social, anticapitalista e democrático, que dialogue com as demandas mais sentidas pelo povo trabalhador e oprimido do nosso país. Um programa que coloque a necessidade de um governo da esquerda, sem alianças com a direita e setores burgueses.