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CULTURA

O suposto ‘homem macho’ e a clitóris

Travesti Socialista, colunista do Esquerda Online
Reprodução

Rambo, um dos símbolos do ideal de masculinidade, ou o ‘homem macho’

É impossível ser você mesma para outras pessoas se você não consegue ser você para você mesma.

Quando alguém me indaga sobre minha vida sexual passada, a resposta causa choque. Ah, para, não deveria ser vergonha para eu dizer que não tive nenhum relacionamento amoroso, sexual, afetivo, nem sequer um simples beijo na boca antes de eu ter adquirido consciência de que eu sou uma mulher. Traduzindo, até os 27 anos. Sim, você está chocada, eu sei.

Perdi a vergonha de dizer isso por uma e apenas uma razão: não sou eu que deveria ter vergonha disso. Enfiaram tanto rolê errado na minha cabeça que eu me tornei totalmente enclausurada, amarrada, amordaçada, sem sentir a luz do sol nem o vento a vibrar os pelos do meu corpo. Não, essa vergonha não é minha.

Minha explicação, se é que preciso de uma, é justamente essa: era impossível ser eu mesma para as outras pessoas sem conseguir ser eu para mim mesma.

Seres humanos ‘nerds’ versus ‘socialmente sucedidos

Filmes e séries que retratam nerds costumam contrapor dois tipos de garotos/homens. De um lado, os nerds, inteligentes e socialmente fracassados. Do outro, os ‘machos’ musculosos, esportistas e frequentadores assíduos de academias, um sucesso entre as mulheres, já que elas, nessa concepção, são tão superficiais quanto eles.

Existe, lógico, as mulheres nerds, mas elas raramente aparecem e, neste caso, seu papel é geralmente o de fazer ‘par’ com um nerd, ou pior, o de ser ainda mais ridicularizada.

Creio que não há melhor exemplo disso do que a série ‘The Big Bang Theory’. Entendo que esse estereótipo é retratado na série de forma sarcástica. Entretanto, essa imagem é bem real e me assombrou durante décadas. Não em relação às mulheres, lógico, a imagem delas é tão grotesca que nunca me soou real. Mas a dos homens, bem… A maioria deles é assim mesmo, não?

O pior de tudo é que se retrata como biológica a característica de que as mulheres não seriam seres humanos, mas manequins ocos que se atraem por bombadões, os quais, na maioria também cascas vazias, se atrairiam por esses manequins.

Gosto de filmes românticos bobos, confesso, como ‘Sierra Burgess é uma Loser’. Este retrata criticamente a separação dos seres humanos entre ‘nerds’ e os ‘socialmente sucedidos’, ainda mais, numa perspectiva feminina. Aliás, que bobo que nada! O filme contesta não só a ideologia da ‘nerd fracassada’ como também a da ‘mulher manequim oco’.

O mito do ‘macho humano’

Sim, a Teoria de Darwin é poderosa e nos ajuda a explicar muitas coisas nos seres humanos. Do ponto de vista individual, um ser humano não é muito diferente de outros bichos, particularmente primatas. No entanto, esse fato aplicado de maneira simples e reta já foi usado para justificar inúmeras catástrofes humanas de proporções mundiais. Não estou exagerando: colonização, escravidão, genocídio, nazismo.

“Mas isso é pseudociência”, alguém vai gritar. Sim! Exatamente, assim como a ideia do ‘macho humano’.

Sério, vamos pensar um pouco. Sim, pensar, somos muito boas nisso. Olha só, somos boas em pensar, mas por quê? Porque, no curso evolucionário que deu origem à nossa espécie, essa característica foi fundamental para a sobrevivência. Se a seleção natural nos tornou a espécie mais inteligente do planeta, como pode a atração sexual indicar o sentido absolutamente oposto disso?

A pergunta que não quer calar: onde está a clitóris?

Ah, não, isso é um problema sério, muito sério! Como podem ser biológico que os supostos ‘machos’ da nossa espécie tenham tanta dificuldade em encontrar a clitóris?

Biologia uma ova! Se você sente atração pela outra pessoa, não importa as genitálias envolvidas. Seja vagina, pênis ou uma genitália intersexo, não importa: seu instinto mais biológico e animal lhe dirá o que fazer. Tá, tudo bem, às vezes não rola, tem mal jeito, falta de experiência, etc. Mas tem tanto marmanjo que não consegue achar o clitóris! É lógico que eles não desejam o prazer da outra pessoa.

Pensa num rolê nada natural: alguém que faz sexo com outra pessoa e não tem desejo pelo prazer dela. Isso é antinatural e doentio. Quem faz sexo, usa o corpo todo. Quem só usa a genitália está se masturbando.

Não, eles não desejam o prazer delas, senão fariam uma simples busca na Internet para achar a clitórias. Bizarro: o ego masculino é tão grande que nem isso eles conseguem fazer. Não, não, seria humilhante demais, não é mesmo?

Só dou uma dica: ela não fica dentro do seu umbigo.

No século XIX, muitos médicos já sabiam que a dificuldade em achar a clitóris era um problema generalizado. Sim, eu sei, eles falaram muita merda, mas acredito que muitos dos problemas psicológicos e sociais das mulheres era e é ‘falta de sexo’. Resolveram tentar tratar isso nos consultórios – tipo uma combinação de medicina com prostituição.

Suas mãos estavam ficando muito cansadas. George Taylor teve uma ideia. Foi um grande sucesso. As filas eram enormes. Simples: ele colocava um pequeno aparelho movido a vapor gentilmente sobre a clitóris enquanto levava a outra mão sobre a boca para cobrir um bocejo. Que tédio, fácil demais!

Engraçado e trágico: um aparelhinho conseguia dar a essas mulheres o que seus parceiros não conseguiam ou não queriam. Ora, vamos! O cara era machista, mas vamos dar a ele esse crédito: ele inventou o vibrador!

Não, seus idiotas, a clitóris não fica a 10, 20 nem 30 cm de profundidade, fica na superfície, implorando, gritando para ser encontrado! A clitóris é a mais rejeitada das ‘nerds’.

Vamos falar dela!

A clitóris é um dispositivo natural muito simples. É o único órgão humano com uma única função. A seleção natural colocou-a em um local de muito fácil acesso para ser encontrada e acionada sem a necessidade de penetração.

Compare com o pênis: é muito mais complexo. Primeiro, tem outras funções além de causar prazer. Segundo, para isso, é mais difícil provocá-lo do que à clitóris. Já experimentei um vibrador, não faz nem cócegas. Eita órgão cheio de frescura! Ainda bem que não dependemos dele para dar e nem para sentir prazer. Fosse esse o caso, confesso, eu estaria em apuros, ou, melhor ainda, compraria um numa Sex Shop.

Não, não é. Sexo é muito mais que genitália. Sexo é pele, ouvidos, boca, cordas vocais, unhas, carne, coxas, mãos, dedos, tronco, braços, costas… Sexo também são os olhos. Olhos que encaram profundamente os seus e penetram fundo, muito mais fundo que 20 ou 30 cm, ah, muito, muito mais!

Sério, pensem um pouco, seus bando de cérebros de ervilha: por que a clitóris está justo ali onde o pênis nem sequer toca? Justamente porque é uma vantagem evolutiva que ela possa ser acionada sem penetração! E se a natureza a selecionou para ser encontrada, temos um problema sério para a nossa sobrevivência quando não se consegue achá-la!

Junto aos gorilas, chimpanzés e orangotangos, somos a família dos hominídeos ou ‘macacos sem rabo’. Como as bonobos ou chimpanzés-pigmeus, que são umas ‘macaquinhas sem rabo’ muito safadas. Elas têm uma característica peculiar: formar bando grandes, cerca de cem indivíduos. Qual é o segredo?

É que elas sabem o caminho até a clitóris, viu, seus bando de amadores!

Ao constituir grandes grupos, elas precisam resolver os conflitos sociais. Em vez de confrontos fatais ou guerras, elas resolvem seus rolês de uma forma bem simples: sexo. Melhor ainda: suruba! Mas veja, a grande maioria das bonobos tem cromossomos XX. Seria um desastre se elas tivessem que brigar entre si para atrair atenção das XY para fazer sexo. Quer dizer, em vez de resolver as disputas, isso as ampliaria!

Uma espécie de hominídeo conseguiu a proeza de constituir grupos muito maiores que as bonobos. Sim, estou falando de você, de nós. Para isso, foi fundamental que nossa espécie desenvolvesse fortes habilidades sociais e sexuais. Ora, ora! Mesmo milhões de anos atrás, nossas ancestrais constituíam grupos de várias centenas de indivíduos. São muitos, mas muitos problemas pra resolver!

Outra coisa que precisa ser encontrada

Sim, eu sei que estou focando demais na clitóris. É meu instinto animal. A dificuldade de achar a clitóris é um problema evidente, gritante, mas há outro muito mais profundo. Então, em vez de olhar para baixo, é melhor olhar para frente. Nossas habilidades sexuais e até sociais estão seriamente ameaçadas se não conseguirmos achar aquilo que mais precisa ser encontrado. Nossa sobrevivência está ameaçada.

Então, pessoas, principalmente os homens cis, prestem atenção nisso: antes de tentar achar a clitóris, procurem o ser humano.