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BRASIL

MP 914/2019: O cerco à autonomia universitária está se fechando

Roberto Leher, do Rio de Janeiro (RJ)
EBC

A adoção da MP 914, de 24/12/2019, estabelece retrocessos democráticos e corrói a autonomia universitária ao instituir ainda maior ingerência governamental no processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, dos institutos federais e do colégio Pedro II. É parte de uma ofensiva na qual se irmanam os fundamentalistas anti-intelectualistas que concebem a ciência como uma ficção verbal e os fundamentalistas ultraneoliberais comandados pelo bloco no poder, ambos empenhados na desconstrução das heranças do Iluminismo e da Revolução Francesa, especialmente do nexo entre liberdade e igualdade, medida necessária para a instauração de um padrão de acumulação do capital sem os obstáculos dos direitos humanos e dos direitos sociais.

Uma vez mais, os limites estão sendo testados. A defesa de um novo AI-5 pela área econômica, por setores militares sem compromisso com a democracia e pelo núcleo político-ideológico do governo, é indissociável desta medida a qual se somam muitas outras de complexidade e gravidade variáveis. Como ocorreu em outros contextos, como os atentados contra a OAB e do Riocentro, o atentado contra o Porta dos Fundos, é um sinal que não pode ser negligenciado. Se não houver rápida e intensa reação democrática, o que resta de Estado de Direito Democrático pode ser rapidamente varrido pelo intento da autocracia.

As recentes iniciativas do governo Bolsonaro contra a cultura e a ciência, a exemplo das nomeações francamente hostis às finalidades da fundação Palmares, da Funarte etc., a destituição de cientistas renomados de suas funções por motivos políticos, a exemplo da exoneração do professor Ricardo Galvão do INPE, assim como a extinção e descaracterização dos principais conselhos que contam com as generosas contribuições da comunidade científica são, todas, partes de um mesmo movimento: a implantação de um novo momento da autocracia burguesa no Brasil. E, a exemplo da ditadura empresarial-militar, esse objetivo requer o silenciamento das universidades públicas e das instituições educacionais e de ciência e tecnologia. Vale lembrar que a Lei 5.540/1968 foi coetânea do AI-5 e do Decreto 477/69. Somente assim é possível agredir os fatos científicos na COP 25, propugnar mineração e expansão das fronteiras dos rebanhos em territórios indígenas e criar o paraíso, na terra brasilis, para as instituições financeiras.

A MP 914/2019

Inconstitucional de todos os lados. A matéria não configura os requisitos para o uso de medida provisória, afronta diretamente a autonomia universitária e o preceito da gestão democrática, mas, ainda assim, foi editada. O importante é o gesto.

O tema da forma de escolha de dirigentes, lastimavelmente, não foi definido nos termos da constituição. Pelo Artigo 207, atendidos os requisitos legais, hauridos da doutrina, a escolha dos dirigentes deveria ter sido instituída nos estatutos das instituições: “o processo de escolha de dirigentes dar-se-á nos termos dos estatutos da instituição, obedecendo o princípio da gestão democrática, e será homologada pela presidência da república”. A prerrogativa da autonomia envolve duas grandes dimensões: o autogoverno e a autonormação. Seria acaciano lembrar que em conformidade com a Constituição.

Com efeito, Fernando Henrique Cardoso encaminhou a aprovação da Lei 9.192/1995 que estabeleceu a lista tríplice, a votação uninominal e o peso de 70% para os docentes no colégio eleitoral, constituído pelos colegiados superiores. O pressuposto desta lei é o direito de escolha, em última instância, do presidente da República, inclusive de um candidato sem apoio de sua comunidade, em virtude da votação uninominal. Tem sido recorrente a escolha do menos votado no colégio eleitoral. O problema, obviamente, é a lista tríplice. Contudo, minoraria o problema se os representantes dos colegiados superiores pudessem indicar três nomes. O busílis da questão é que tal norma está em desacordo com o Artigo 207 da Constituição que, por meio do Estatuto da instituição, alicerça a democracia dos conselhos superiores das instituições. Os governos provenientes da esquerda, ainda é preciso entender o motivo, não alteraram a referida Lei 9.192/95, deixando as universidades vulneráveis, como é possível depreender de diversas nomeações de reitorias pelo governo Bolsonaro.

A MP 914/2019 exacerba a possibilidade de ingerência do chefe do poder Executivo na nomeação dos reitores, inclusive dos Institutos, e pode inviabilizar a eleição dos diretores das unidades acadêmicas. De fato, a MP avança na corrosão da autonomia universitária ao estabelecer que, em caso de mais de uma candidatura, a lista seja constituída por todos os candidatos, possibilitando a escolha de um candidato que claramente foi rejeitado pela grande maioria da comunidade e, não menos importante, que este dirigente não legítimo, nomeie os diretores das unidades, gerando gravíssima crise de legitimidade nas instituições. Para explicitar, ainda mais, os propósitos políticos da MP, o Art. 7 estabelece que o governo pode nomear reitor pro tempore “na impossibilidade de homologação do resultado da votação em razão de irregularidades verificadas no processo da consulta” – a redação imprecisa propicia enorme margem de atos arbitrários por parte do governo. A MP dispõe sobre outros aspectos, como a definição do peso do voto dos estudantes e dos técnicos e administrativos, assim como da metodologia de apuração de votos que reduz, ainda mais, a relevância da participação destes membros da comunidade universitária. Ademais, a leitura da MP, apesar do texto truncado, permite concluir que a reeleição foi proibida. Mas é preciso não perder o foco: o objetivo axial é ampliar a ingerência governamental – mirando ampliar a esfera de influência dos fundamentalistas – nas universidades, institutos e CP II.

A MP 941/2019 como parte da ingerência governamental nas instituições

Ao descaracterizar a CAPES, o CNPq, a FINEP e prever a desconstituição do FNDCT o governo pretende incidir sobre o que é dado a pensar nas universidades, atingindo o fulcro da autonomia universitária como preceito constitucional que protege a liberdade de cátedra e a liberdade de pensamento. As exóticas diatribes do ministro – com base nos “ensinamentos” de um não menos peculiar guru – em sua cruzada verbal, econômica e política contra as universidades têm como propósito afetar a legitimidade acadêmica das instituições. Com o FUTURE-SE pretende não apenas se imiscuir nos fins didático-científicos, como, especialmente, afetar “a autonomia de gestão financeira e patrimonial”, por meio do desmembramento do patrimônio imobiliário das instituições que seria transferido para o MEC que, por sua vez, estabeleceria a exigência de contratos de gestão por meio de organizações sociais (OS) nos quais os fins estariam dependentes das decisões do MEC e das OS. A peça orçamentária para 2020 corrobora esses propósitos.

Recentes medidas como a extinção de cargos da carreira dos técnicos e administrativos, a ampliação de cursos semipresenciais, a aprovação de diretrizes curriculares que rebaixam o rigor acadêmico da formação docente e a liberalização de cursos a distância, são ações que buscam ressignificar as universidades e institutos como ‘organizações’ de ensino terciárias, afastadas da ciência e da pesquisa. Co

m a nova MP o governo avança ainda mais sobre as instituições, comprometendo a autonomia administrativa e a prerrogativa do autogoverno das instituições universitárias.

Resistência e criação de alternativas

As leituras que apenas atribuem teor folclórico às ações do governo sobre as universidades e institutos ignoram a correlação de forças, as evidências de que os limites da tolerância com a autocracia estão sendo testados, e secundarizam as ações centrais do governo na vida social (manejo da EC 95, contrarreforma trabalhista, da previdência….). Por isso, ainda não está suficientemente explícito para toda comunidade universitária e para os setores democráticos que o futuro das universidades (e institutos) está sendo paulatinamente inviabilizado. Esta proposição não é um argumento retórico.

A Emenda Constitucional N. 95 já está reconfigurando o conjunto do Estado, impondo vasta contrarreforma em todos os domínios do chamado Estado Social. É necessário lembrar que a radicalização da referida Emenda não pode ocorrer na vigência de fundamentos democráticos. Embora o Congresso esteja modalizando medidas que ameaçam o Estado de Direito, como o excludente de ilicitude, o fato é que a agenda autocrática conta com a adesão dos setores dominantes (o que foi expresso em recente Editorial do Financial Times) e já se transformou em ferramenta de manejo do medo na sociedade.

Para impedir esses intentos é preciso escala – grande escala – de lutas sociais unitárias e, simultaneamente, espaços de convergência de movimentos para que as ações possam incidir sobre a dinâmica do tempo. Duas dimensões de tempo são imprescindíveis: no curto prazo, frentes democráticas e espaços de diálogos e aprendizagem; no tempo mais dilatado, o amadurecimento de estratégias antissistêmicas que possibilitem a negação do sistema de acumulação neoliberal e, o que é muito importante, o fortalecimento de ações políticas e pedagógicas capazes de transformar o senso comum reacionário e desprovido de imaginação transformadora. Assim, novos horizontes de construção de nova vontade nacional-popular podem ser possíveis.

No plano imediato, urge uma frente capaz de congregar todas as principais iniciativas em defesa do público não mercantil, como o Encontro Nacional de Educação, o Fórum Nacional Popular de Educação e o Encontro Nacional de Educação para a Reforma Agrária, em conjunto com entidades acadêmicas, partidos e com outras frações das classes trabalhadoras restabelecendo e ampliando o Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública. É preciso reforçar: será necessário construir coalizões com maior abrangência social para que a escala das lutas antimercantis possa abalar a correlação de forças em prol dos direitos humanos e sociais. Esta é uma pequena sugestão para a agenda dos primeiros dias de 2020!

Rio de Janeiro, 26/12/19