É muito comum relacionar o povo negro ao meio urbano e às periferias das grandes cidades. Contudo ao observarmos que o processo de urbanização brasileira tem início somente no século XX vem o questionamento: mas onde vivia a maior parte da população negra até então? A resposta todos/as nós já sabemos, o que não refletimos é a complexidade do campo brasileiro e a luta histórica travada pelo povo negro em defesa de seus territórios. É preciso entender inclusive que o processo de periferização da população também é consequência de grilagens, assassinatos, massacres, expulsões e desrespeito com aqueles e aquelas que tinham a terra como seu lugar de re-existência às mazelas históricas deixadas pela escravidão.
Diante dessa constatação iniciarei meu texto sobre comunidades quilombolas dizendo que, primeiramente, o termo “quilombolas” deve ser encarado como uma expressão jurídico-normativa. Isso porque os quilombos históricos, tendo como a expressão máxima desses o mais conhecido Quilombo dos Palmares, não refletem a realidade das comunidades negras rurais contemporâneas.
Explico por quê. Assassinatos, envenenamentos, abortos, suicídios, invasão de vilas, ataques aos engenhos e casa-grande e construção de mocambos e quilombos, todos estes eram mecanismos de defesa e luta contra a escravidão. Os quilombos históricos possuíam uma formação, organização social e estavam num período político-social pré-abolição e, portanto, uma realidade diferente da vivida atualmente.
Com a emergência da discussão, principalmente nas últimas décadas do século passado, algumas comunidades servirão como exemplo de estudo e pesquisa para a construção do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Com isso se padroniza e, consequentemente, perde em seu texto a pluralidade que são as comunidades negras rurais. Assim, hoje temos em nossa Constituição Federal que:
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Mais de um século após a Lei Áurea temos uma legislação que se refere aos territórios negros como lugares de direito. Contudo, esses territórios são diversos e complexos, os autodeclarados quilombolas são apenas uma parcela desse povo. As também chamadas Terras de Preto ou Comunidades Negras Rurais possuem identidades diversas: pescadores, marisqueiras, sertanejos, geraizeros, fundo e fecho de pasto, indígenas, dentre outros.
Ao tratar desse assunto gosto de dizer que a riqueza desses povos não cabe na legislação, contudo também não podemos rejeitar as normas legais que garantem o direito dessas populações sobre seus territórios e as políticas públicas que os assistem. A criação da legislação e seu cumprimento são fundamentais para a democratização das terras no Brasil, um país que não só rechaça a necessidade de uma Reforma Agrária Popular, como vem realizando medidas legais obstinadas a expulsar e criminalizar comunidades tradicionais, pequenos proprietários, posseiros e assentados.
Atualmente os principais órgãos responsáveis pela identificação e delimitação do território quilombola é a Fundação Cultural Palmares (FCP) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), onde a primeira realiza o procedimento de certificação quilombola e o segundo concede o título de posse do território. Hoje somente 124 comunidades quilombolas em todo Brasil possuem o título de suas terras. Foram abertos no total 1.747 processos de reconhecimento quilombola (INCRA, 2019) e 57% destes processos se concentram na região Nordeste.
Mesmo com os avanços visíveis aos olhos de quem conhece e acompanha a realidade das comunidades quilombolas, os números mostram: o que foi feito até agora não chega perto de ser suficiente sequer para arranhar o cenário de desigualdade espacial no campo brasileiro. O bem viver dessas comunidades esbarra no projeto econômico de país agroexportador e no capital financeiro mundial atuando fortemente sobre as terras brasileiras.
A questão negra rural não é um assunto novo, assim como não se encerra no âmbito legal. Os conflitos no campo são uma realidade cada dia mais cruel e está ameaçando territórios e corpos negros que lutam cotidianamente contra o capital nacional e estrangeiro. Neste novembro negro lembremos que, assim como a cidade, o campo também é palco de resistência negra.
*Natália Lidia Garcia é geógrafa.
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