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OPRESSÕES

Em defesa do Feminismo – Por que Serena Joy não é nossa aliada?

Isabela Blanco*, do Rio de Janeiro (RJ)

No dia 26 de abril de 2017, foi ao ar, nos Estados Unidos, o primeiro episódio de The Handmaid’s Tale (em português O conto da Aia), série de televisão baseada no livro homônimo de Margaret Atwood, lançado em 1985, sobre a distópica Ditadura de Gilead. Muito comemorada, a série conta com três temporadas que superam cronologicamente a história original do livro, ganhou diversos prêmios internacionais, como oito Emmys, incluindo melhor série dramática em 2017. O sucesso instigou Margaret Atwood a, quinze anos depois, escrever uma continuação, o livro “Os testamentos”, que chegou ao Brasil no dia 9 de novembro (aviso de Spolier).

Na série, June Osborne, renomeada como Offred (“do Fred”), interpretada pela brilhante Elisabeht Moss, é a aia da casa do Coronel Fred Waterfor (Joseph Fiennes). No desenrolar da trama, descobrimos que a mulher de roupa vermelha e chapéu é uma “incubadora humana”, de propriedade do Estado de Gilead, e cedida ao Coronel Fred para fins de procriação. Com todas as nuances da história, o papel da aia, tido como central, e por isso rigidamente controlado, é um só: conceber filhos para o Estado. Despidas de todos os seus direitos, as aias são mulheres férteis, algo raro no “tempo futuro” de Gilead por conta de um acidente radiativo – demonstrando, assim, a contradição entre o possível avançar do capitalismo e a própria manutenção da vida – e, portanto, precisam ser controladas e obrigadas a gerir e parir.

Ora, não é esse o mesmo papel imposto no mundo não ficcional às mulheres pelo capitalismo patriarcal? Distantes do fictício mundo de Gilead podemos achar, bem aqui no nosso tempo histórico, as mesmas imposições ao sexo feminino. Como nos explica Evelyn Reed no livro “Sexo contra sexo ou classe contra classe”: “Um homem rico necessita de uma mulher que lhe dê herdeiros legais, que sejam portadores de seu nome e que herdem sua propriedade”. (REED, Evelyn. Sexo contra sexo ou classe contra classe. São Paulo, Sundermann, 2011, p. 48). 

Porém, nem todas as mulheres em Gilead vestem vermelho, nem todas são aias. Serena Joy (Yonne Strahovsky), a esposa do capitão, veste azul e, apesar de tão encarcerada ao lar quanto Ofrred, ou poderíamos dizer, tão submetida às regras e à moral de um estado patriarcal quanto esta, desfruta dos privilégios do conforto e, o mais importante, pertence, inegavelmente, à outra classe social, a mesma do capitão Fred. Em Gilead, Serena e o capitão, mesmo que às vezes frustrados e infelizes, fazem parte da classe social que detém o poder, controla a economia, as forças armadas e se beneficia do sistema de governo. A detestável vida das mulheres de azul, as senhoras, ou mesmo a limitada e vazia vida do capitão não nos fazem ter pena dos mesmos, mas somente desejar uma sociedade diferente. O universo distópico em tela nos leva à reflexão de que, preservada a propriedade capitalista, a humanidade pode, fora das telas, alcançar uma sociabilidade tão destrutiva e subjetivamente miserável que nem mesmo os privilegiados poderão ser felizes. 

Mais que isso, descobrimos no decorrer da série que Serena Joy foi, no passado, uma figura pública e grande incentivadora do Estado de Gilead. Defendeu a submissão da mulher e teve papel fundamental na sustentação, teórica inclusive, da ideologia do partido que funda o novo Estado. Em algum momento da série o próprio comandante lembra a Serena que no regime atual “é ele quem manda”, deixando para trás o tempo em que os dois tinham voz. Nem por isso Serena se revolta, abre mão de seus privilégios, ou fica mais doce com Ofreed, pelo contrário, o novo papel social que a mesma representa se prova absolutamente necessário para a manutenção da imagem do país, que antes de ser uma ditadura teocrática era os Estados Unidos da América.

Em outro lugar da mesma história ficcional, também temos as marthas, mulheres que vestem roupas verdes, e são muito menos lembradas por nós do que Ofredd e Serena. As marthas são responsáveis por fazer o trabalho doméstico. Tal qual no real capitalismo contemporâneo,  onde o trabalho doméstico é historicamente gratuito e invisível, isto é, um trabalho não-pago, as marthas de Gilead são mulheres sem valor e sem privilégios, e o são justamente pois o seu trabalho não pago é fundamental para a reprodução ampliada do capital, ou seja, para a produção de mais-valor e, por conseguinte, de privilegiados. Sem pretensão de oferecer resposta, podemos nos perguntar por que as mulheres da classe média branca, com algum grau de autonomia, a quem inegavelmente o regime democrático-liberal contemporâneo consegue – depois de décadas de luta, convém lembrar – conceder alguns direitos, se identificaram mais com as aias do que com as marthas? Identificação essa que gerou muitas mulheres fantasiadas de aias em todo mundo no halloween e no carnaval, sendo impensável até aqui, ou desprovido de glamour, imaginar uma fantasia de martha. Estarão as mulheres de classe média branca esmagadas entre a possível liberdade dos afazeres domésticos, apresentada pelo capitalismo como prêmio maior, porém inegavelmente escravas do aprisionamento sexual, enquanto o Estado for fundando na propriedade privada? Por esse motivo o debate das chamadas “novas teorias feministas” seria tão pautado pela discussão de sexo? Ou nutririam um desejo secreto de ser uma mulher de azul?  

Os homens nessa sociedade também têm seus lugares socialmente determinados e nem todos têm direito a “ter mulheres”: existem os comandantes e donos do poder, os soldados (que exercem o poder de polícia), os trabalhadores, os camponeses e os rebeldes que junto com as rebeldes são perseguidos e mandados para o degredo e trabalhos forçados. Sim, existe rebeldia e oposição, e pra ela é relegado uma espécie de desterro ou encarceramento, onde os opositores do regime, mulheres e homens, são confinados, obrigados a fazer trabalhos forçados e mortos. 

Nesse ponto chegamos à pergunta do início “por que Serena Joy não é nossa aliada?” – ou melhor: “por que serena Joy é nossa inimiga?”. Serena Joy, apesar de sofrer com o encarceramento feminino ao espaço privado, com o afastamento total das mulheres dos espaços de poder e por vez até “se rebelar” contra seu capitão, é, sem dúvida, uma agente do Estado de Gilead. Pertencentes a um lugar material desde sempre muito distante das marthas ou das aias, as senhoras de azul são membros da classe dominante, que se beneficia enquanto classe do estado de dominação feminina de Gilead. Mesmo que possam em algum grau sofrer, e sofrem, com essa opressão, em última instância se beneficiam dela.  

Por último, analisarmos “a rebeldia” nos damos conta que ao nosso lado nos campos de trabalhos forçados (colônias) estão não “Serenas Joys” arrependidas, mas todas que foram perversamente consideradas não-mulheres: aquelas que não podem engravidar, homossexuais, viúvas, adúlteras, feministas e os homens que lutam contra esse sistema de coisas. E é por isso que devemos seguir afirmando sem medo aqui e agora, usando como exemplo literário a assustadora, mas infelizmente não tão distante Gilead, que ao invés de querer fazer alianças indiscriminadas com as mulheres de azul precisamos dar as mãos a aquelas e aqueles que estão, indistintamente do sexo, ao nosso lado no “campo dos rebeldes” em defesa da liberdade. 

Isabela Blanco é advogada, Mestra em Direito pela UFRJ, carioca e marxista.

** “Em defesa do feminismo”, no título deste artigo, é uma referência e homenagem da autora ao livro de Leon Trotsky “Em defesa do Marxismo” no qual Trotsky trava uma derradeira batalha ideológica contra uma ala do SWP (Socialists Works Party) em defesa da União Soviética. Mesmo essa tendo sofrido considerável e determinante desvio burocrático, a autora sustenta que deve ser defendida frente aos ataques do Fascismo e do Imperialismo. O projeto “Em defesa do feminismo” vai buscar defender de todas as deformações a ideia de um feminismo de classe e marxista. Rejeitando, por um lado o “reducionismo da classe de esquerda, que entende a classe trabalhadora como uma abstração vazia; homogênea” (ARRUZA, Cinzia; BHATTACHARYA, TITHI; Fraser, Nancy em Feminismo para os 99%. Um manifesto. São Paulo, Boitempo, 2019, p 122 e 123) e, por outro, a “neoliberal progressista, que celebra a diversidade em benefício próprio” (idem), entendo, tal qual muitas companheiras feministas-marxistas, que apesar de todas as degenerações impostas ao feminismo, este deve ser defendido e propagado. Esse texto, movido pela expectativa do livro “os testamentos”, é seu projeto piloto. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Arruza Cinzia; Bhattacharya, Tithi e Fraser, Nancy. FEMINISMO PARA OS 99% UM MANIFESTO. São Paulo: Boitempo, 2019.
Atwood, Margaret Elanor. O CONTO DA AIA. Tradução de Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
Reed, Evelyn. SEXO CONTRA SEXO OU CLASSE CONTRA CLASSE. São Paulo: Sundermann, 2011.