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OPRESSÕES

A tragédia feminicida: misoginia, machismo e a responsabilidade do Estado brasileiro

Elita Morais*, de Maceió (AL)
Mídia Ninja

Faixa em ato em Belo Horizonte (MG)

FEMINICÍDIO: UM BREVE RESGATE HISTÓRICO

Nunca se falou tanto sobre um tipo específico de violência como se tem falado sobre feminicídio. E não poderia ser diferente. Não no 5º país do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), com os maiores índices de violência feminicida. As estatísticas do último período são assustadoras e evidencia uma verdadeira tragédia nacional. O feminicídio nunca vem sozinho, a ele precede uma série de violências físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais.

Não raro, a mulher vítima de feminicídio possui medida protetiva e já pediu por socorro de todas as maneiras possíveis e imagináveis. No entanto, as últimas pesquisas também revelaram que muitas das vítimas de feminicídio sequer procuraram antes os órgãos de segurança pública, o que pode caracterizar também um forte indício da desconfiança ou da falta de credibilidade na solução dos casos por parte do aparato de segurança pública do Estado. Inclua-se nessa violência o que chamamos de vitimização secundária ou revitimização, que ocorre quando aquela mulher é constantemente humilhada e ignorada pelo sistema de justiça e segurança pública. As delegacias de mulheres não são, definitivamente, espaços preparados para o acolhimento das vítimas. Pelo contrário, é comum as mulheres verem seus relatos colocados em questionamento, além da brutalidade e grosserias no trato. É uma verdadeira via crucis que, diferente do que se imagina não se inicia na delegacia com a denúncia, mas se arrasta, muitas vezes, por anos. São anos de maus tratos, de humilhações, de violências de todos os tipos, geralmente na presença dos filhos, até o seu cume ou estágio final: o feminicídio.

O feminicídio, a morte em decorrência da violência de gênero, expressa o que de mais perigoso existe no capitalismo: a misoginia, a aversão ao feminino. É a negação do outro e a objetificação completa da mulher e foi, por anos, descrito como “crime passional”, ou seja, o crime por “excesso” de amor e paixão. O feminicídio foi romantizado (e ainda continua sendo), descrito na figura do masculino que, supostamente tomado por uma violenta emoção (assim foi, durante muito tempo, justificado por juristas e pelo código penal brasileiro) tira a vida de sua companheira. Quando não, é narrado de forma patológica na figura do homem que mata porque supostamente é louco, psicopata, enfim, tudo que crie possibilidade para isentar de culpa a misoginia de homens que não entendem (ou não fazem questão de entender) que sua companheira é um ser humano livre como qualquer outro e que, quem ama, respeita a liberdade do outro. Esse é, portanto, o primeiro passo, para uma compreensão importante que precisamos ter: o feminicídio, ou melhor, os estudos em torno do tema assim como toda movimentação e articulação política dos movimentos feministas surgem porque era imprescindível nomear aquilo que não era nomeado, que ficava escondido nas estatísticas.

O termo feminicídio possui origem principalmente nos estudos da sul-africana Diana Russel, intelectual e pesquisadora que cunhou o termo para designar “o assassinato misógino de mulheres”. Interessante perceber que Russel não estava apenas interessada na nomenclatura ou na tipificação, mas em designar um termo que pudesse refletir a realidade das experiências de mulheres vítimas de violência de gênero. Na América Latina surge especialmente no contexto de uma série de crimes bárbaros contra mulheres na Ciudad de Juárez, no México. Os crimes chamaram a atenção internacional pela crueldade e brutalidade com que eram cometidos, geralmente com violência sexual, tortura e, finalmente, a morte, até hoje muitas vítimas continuam desaparecidas.

As “mortas de Juárez”, como ficaram conhecidas à série de assassinatos femininos naquela cidade, impulsionou os debates feministas sobre o tema e, no feminismo latino americano, um dos destaques foram às discussões travadas pela antropóloga Marcela Lagarde que destacou em seus estudos a responsabilidade e a omissão do Estado sobre aqueles crimes na medida em que se mostrava incapaz de fornecer a assistência e as respostas que as mulheres necessitavam. Além disso, Lagarde alargou o próprio conceito de feminicídio relacionando-o as omissões anteriores do próprio Estado com a falta de políticas públicas para as mulheres ligando a negligência estatal também as condições históricas femininas, condições essas que, nas palavras de Lagarde “geram práticas sociais que permitem atentados contra a integridade, a saúde, as liberdades e a vida das mulheres”. Os debates entre as ativistas feministas se pautaram, naquele momento, não apenas na necessidade de tipificação penal, mas na discussão sobre a responsabilidade estatal, na necessidade de políticas públicas e, no campo internacional, no reconhecimento de que as mortes por misoginia atentavam contra a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos das mulheres.

Esse breve resgate histórico sobre as lutas feministas para a construção do termo e do significado do feminicídio é importante porque, embora se tenha sérias críticas à tipificação penal em diversos países, inclusive no Brasil, é necessário se fazer justiça às lutas e ao esforço intelectual das mulheres nesse campo de estudo e reduzi-lo apenas a sua posterior tipificação empobrece a análise.

FEMINICÍDIOS NO BRASIL: A TRAGÉDIA DAS ESTATÍSTICAS E O RACISMO ESTRUTURAL

Pesquisa mais recente do Anuário Brasileiro de Segurança Pública constata uma situação bastante preocupante com o avanço significativo desse tipo específico de violência contra as mulheres em detrimento de toda uma legislação protetiva, como a própria lei Maria da Penha. No entanto, é preciso dizer que esse alerta não é de hoje. Uma pesquisa do IPEA que avaliou os impactos da lei Maria da Penha e a mortalidade de mulheres por agressões constatou que ocorreu apenas um leve decréscimo nas taxas de feminicídios no ano de 2007, ou seja, um ano depois da lei, voltando essas taxas a subir em níveis cada vez maiores nos anos seguintes. Na situação atual as pesquisas do Anuário constatam que entre 2017 e 2018 houve um total de 1.206 vítimas, um crescimento de 4% das taxas em níveis absolutos. O ápice dessa violência, segundo esse relatório, ocorre na faixa dos 30 anos de idade, sendo que 70,7% das vítimas possuíam no máximo o ensino fundamental. Nas investigações foi constatado também que pelo menos 88,8% dos feminicídios foi praticado por companheiros e ex-companheiros das vítimas. Todas essas taxas são velhas conhecidas dos movimentos feministas, o que significa que, por anos, nossas vozes pouco ou quase nada foram escutadas.

Outro dado imprescindível diz respeito à cor predominante das vítimas de feminicídio no Brasil, pelo menos 61% das vítimas são negras. Importa destacar que essas estatísticas não comportaram os números da Bahia, o que significa que muito provavelmente esses índices são superiores aos que foram constatados até agora. Os dados sobre vitimização negra foram, por muito tempo, a cereja do bolo das investigações sobre gênero, e falar isso significa alertar para a completa falta de atenção ao tamanho do racismo brasileiro, mais do que isso, o racismo no Brasil não pode ser um mero elemento a mais de análise ou apenas um corte metodológico nas pesquisas, as estatísticas há tempos evidenciam que esse racismo é estrutural, compõe a sociedade brasileira em seus mais diversos níveis e precisa ser o centro das investigações sobre a violência intencional. A categoria raça é um marcador social profundamente enraizado nos índices de desigualdade e vulneração social no Brasil.

É preciso também destacar os altos índices de imprecisões nas pesquisas sobre o tema e isso ocorre pela desorganização institucional desses dados a nível nacional. É um desafio fazer qualquer elaboração cientifica sobre as mortes femininas em decorrência da violência de gênero, isso porque os dados disponibilizados pelo sistema de justiça penal e os órgãos de segurança pública nos Estados são imprecisos e dispersos de modo que o acesso além de limitado evidencia a própria fragilidade dos números colocados à disposição dos/as pesquisadores/as. Quanto a esses dados, Jackeline Aparecida Ferreira Romio destaca que “sua maior limitação é a deficiência no preenchimento, dificuldades na disponibilidade dos dados nacionais (cada estado produz e administra seus próprios dados) e a ―polissemia na narrativa que compõe o documento (…) é comum localizarmos definições sexistas dentro do documento, uso de termos como amásia, etc”. Aliás, importa dizer que Romio, ao tratar das classificações do feminicídio, destaca o feminicídio reprodutivo, ou seja, o feminicídio como consequência direta da criminalização do aborto por parte do Estado brasileiro, as mortes de mulheres como fruto de uma política de controle dos corpos femininos. Uma categoria na qual as mulheres negras também estão entre as principais vítimas.

É fácil concluir, portanto, que o problema é bem mais sério e as estatísticas muito piores do que parecem. Existem relações muito complexas na violência feminicida que precisam estar diante de nós e questionadas pelos movimentos feministas. Algumas pesquisas empíricas e os apontamentos do feminismo negro apontam para uma relação estreita entre a violência intencional em territórios periféricos (que vitimam especialmente a juventude negra no país) e as taxas de feminicídios. Nesse sentido é possível identificar que “onde há mais assassinatos de mulheres também há homicídios masculinos”.

Essa associação pode parecer até óbvia em um primeiro momento, considerando que ambas as taxas, ou seja, tanto os feminicídios como à violência intencional no Brasil afetam mais as populações em situação de vulnerabilidade social, no entanto, a realidade é bem mais complexa do que se imagina. Isso significa dizer que essas mesmas mulheres, negras em sua grande maioria, vítimas da violência de gênero (não nos esqueçamos, a violência feminicida esta diretamente relacionada a um ciclo de violências de gênero anteriores) estão cercadas por outras violências simbólicas que circundam a suas vidas: a violência policial racista, a perda de seus filhos, companheiros e familiares para a violência intencional nas periferias, o abandono estatal naquilo que é mais fundamental como saúde e educação. Isso porque, como dizia Marielle Franco ao falar sobre a violência nas periferias e as UPPs, o Estado brasileiro há tempos adota um modelo de Estado Penal totalmente integrado a um projeto neoliberal.

Portanto, temos um grande desafio que nos coloca também diante da necessidade de questionarmos, cada vez mais, qualquer tipo de modelo punitivista para a solução das diversas violências de gênero que perpassam a vida das mulheres no Brasil, pois esse questionamento nos leva, inevitavelmente, ao problema anterior já colocado nesse texto: o racismo estrutural. Hilary Potter, uma criminóloga americana, aponta o alto grau de desconfiança das mulheres negras com a polícia e de como essas mulheres, em determinados momentos, mesmo diante da violência de gênero, não buscam ajuda do aparato de segurança pública porque compreendem a atuação seletiva e racista desse aparato nas comunidades periféricas negras. No Brasil essa desconfiança generalizada e o medo da violência policial também perpassa a realidade de milhares de mulheres negras. Nossas exigências estão, hoje, em outro patamar: na identificação de um feminicídio de Estado.

A retirada de direitos, os altos índices de desemprego e, principalmente, o discurso de ódio ventilado pelo governo de Jair Bolsonaro é um risco para a integridade física das mulheres brasileiras. E o que falar da política irresponsável de armamento do governo? Onde vamos parar com isso? As mulheres são maioria da população contrária a essa política e não é difícil saber por que. As armas de fogo são os principais instrumentos utilizados no feminicídio. No último período foram os setores oprimidos os mais afetados pelas políticas desastrosas do governo Bolsonaro. A resistência feminista, anti-LGBTQIfóbica e antiracista têm se mostrado o caminho mais acertado para a garantia do direito ao futuro.

* Elita é advogada e mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas.

 

REFERÊNCIAS

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019.
FRANCO, Marielle. UPP A Redução da Favela em Três Letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. São Paulo: n-1 edições, 2018.
IPEA. Leila Posenato Garcia, Lúcia Rolim Santana de Freitas, Gabriela Drummond Marques da Silva, Doroteia Aparecida Höfelmann. Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil.

LAGARDE, Marcela. El feminicídio, delito contra la humanidade. In: Femincidio, Justicia y derecho. Comisión Especial para Conocer y Dar Seguimiento a las Investigaciones Relacionadas con los Feminicidios en la República Mexicana y a la Procuración de Justicia Vinculada, 2005.
MENEGUEL, Stela Nazareth; ROSA, Bruna Alexandra Rocha da; CECCON, Roger Flores; HIRAKATA, Vania Naomi; DANILEVICZ, Ian Meneguel. Feminicídios: estudo em capitais e municípios brasileiros de grande porte populacional. Revista Ciência e Saúde Coletiva, vol. 22, n. 9, p. 2.963-2970, 2017.
POTTER, Hillary. Un Argument for Black Feminist Criminology. Feminist Criminology, Volume 1, Number 2, 106-124, April 2006.
ROMIO, Jackeline Aparecida Ferreira. Feminicídios no Brasil, uma proposta de análise com dados do setor de saúde. Campinas, SP: 2017. Orientador: Tirza Aidar. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
RUSSEL, Diana E. H. Definicíon de feminicidio y conceptos relacionados. In: Femincidio, Justicia y derecho. Comisión Especial para Conocer y Dar Seguimiento a las Investigaciones Relacionadas con los Feminicidios en la República Mexicana y a la Procuración de Justicia Vinculada, 2005.