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A coruja contra as trevas: estudantes, cientistas e militantes em defesa da Universidade Pública

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Para muitos mestrandos, doutorandos, bolsistas e candidatos a tal, a opção por uma carreira científica implicou, seja por tempo, ideologia ou mesmo conveniência “política”, uma certa indiferença, afastamento e às vezes até hostilidade em relação aos seus colegas de graduação do movimento estudantil, assim como à política partidária em geral no interior das universidades.

Os dois primeiros posicionamentos são até compreensíveis e razoáveis, eu diria, enquanto que o último é bastante perigoso e problemático. Aderindo, talvez sem saber, a uma ideologia academicista, seus adeptos ignoram que, assim como a manipulação de tubos de ensaio em um laboratório ou a coleta de fontes e informações em um arquivo, a atividade política pode e deve ser científica, na medida em que uma caracterização precisa da realidade social e uma práxis que possa intervir de modo a transformá-la, tanto no que diz respeito à universidade, quanto à sociedade em geral, só são possíveis se forem alicerçadas em critérios rigorosamente científicos, cujo objetivo é, em uma palavra, a apreensão racional do real. Nesse sentido, a ojeriza de não poucos dos estudantes-cientistas aos militantes socialistas do movimento estudantil é tão anticientífica quanto a repulsa de alguns destes últimos – também não poucos, convém lembrar- aos livros, à leitura, à pesquisa e ao estudo sistemático, sem os quais, longe de uma verdadeira práxis, tornam-se mais burocratas (muitas vezes, sem burocracia) do que cientistas, se assemelhando, assim, a muitos dos seus adversários cotidianos, nossos doutos colegas, amantes despolitizados de planilhas e reuniões institucionais. Assim, a segmentação academicista de cariz antipolítico de parte desses pós-graduandos e aspirantes a tal é tão anti-verdadeira e, portanto, anticientífica quanto àquela adotada pelo militante universitário alérgico a aulas, letras e laboratórios. Afinal, como disse certa feita Hegel, “a verdade está no todo”.

Os atuais cortes de bolsas são, como a cada dia fica “nítido como um girassol” de Fernando Pessoa, parte de um projeto irracionalista e mercadológico de destruição da Universidade Pública, em uma combinação macabra entre as trevas, os bispos e a bolsa. Tal projeto, assim como todas as suas etapas prévias, sem as quais ele hoje não poderia almejar a vitória, foi e é denunciado incontinentemente por muitos dos militantes universitários, muitas vezes cansados e cansadas, portando cigarro barato e café ruim, e mal alimentados por terem que passar o dia quase todo na universidade, quando não se deslocando perigosamente entre os seus campi. Vistos com antipatia e até mesmo perseguidos pelo Sinédrio acadêmico, esses militantes estudantis, esquecendo-se de que “um profeta só é desprezado em sua casa e sua pátria”, insistiram e ainda insistem diariamente em “atrapalhar as aulas” e alertar seus colegas e candidatos a cientistas sobre a tempestade neofascista que se aproxima, como se biblicamente dissessem: “Quem tiver ouvidos, ouça!”. Eles disseram, e muitos não quiseram escutar, e hoje, todos nós da comunidade universitária, incluindo, claro, os ex-graduandos nada afeitos à militância política e hoje sem bolsa, lamentamos em nosso imo – “ah, meus Deus, era tudo o que eu queria”.

O projeto antiuniversitário, entretanto, ainda não venceu, e suas cáusticas consequências, hoje já sentidas, ainda estão só no início. O pior ainda está por vir, mas não necessariamente virá. O jogo é jogado, e o lambari é pescado, diz o ditado popular cuja segunda sentença eu nunca compreendi ao certo, salvo pela perfeição da métrica e rima. Agora é hora dos estudantes se levantarem caso não queiram passar o resto de suas vidas esperando sentados, em vão, por um futuro digno, seja na universidade, seja fora dela. Não há mais tempo a perder, sob o risco de cairmos todos em perdição. O movimento estudantil deve abertamente afrontar o governo e todos os que, ativa ou passivamente, querem trazer a escuridão. Só a juventude hoje parece ser capaz de reunir forças para libertar Prometeu de suas correntes, e salvar a chama do conhecimento científico. O já citado Hegel disse que a “coruja de Minerva só levanta voo no crepúsculo”, e pode-se dizer que o filósofo alemão tem razão, já que, inegavelmente, o distanciamento temporal é um aliado para uma apreensão mais concreta do sentido, do caráter e da processualidade de determinado objeto da realidade social. A universidade, entretanto, não pode esperar para ver o que será dela depois que o projeto da lumpemburguesia iletrada e ressentida de Bolsonaro e consortes tiver sido de vez implementado. Não podemos contar com a sorte. O tempo urge, a luta é para ontem, e a coruja universitária vai ter que arriscar seu voo ainda durante o escaldante sol, sob pena da noite, quando chegar, nunca mais se acabar.