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BRASIL

Um ano após a oportunidade perdida: uma discussão de balanço com o MES sobre oportunismo eleitoral nas eleições de 2018 no RN

Juary Chagas

Não é uma questão de teoria, mas uma questão de prática. É na prática que o homem tem que provar a verdade de seu pensamento.

Marx & Engels, A ideologia alemã

 

O confronto das posições políticas na esquerda, e em especial entre os marxistas, é parte do melhor de nossa tradição.

E há ainda um componente adicional quando se trata do debate político entre os socialistas. Diferentemente da investigação teórica ou da pesquisa – que exige dos indivíduos uma postura mais aberta para tentar extrair da realidade conclusões com o máximo de objetividade – a política é o campo da “certeza”.

Isto não quer dizer que quem faz política não tenha um momento da análise objetiva (ou pelo menos deve ter), mas a política exige intervenção, ação para modificar a realidade e, por isto, ao definir-se politicamente nenhuma organização pode manter-se em posição de reflexão indefinida. Põem-se em marcha suas interpretações como se esta fosse a verdade, porque agir naquele momento é necessário. E é o tempo, ou melhor, a realidade prática que irá sempre atestar a veracidade ou não das posições em disputa.

Passado um ano após as eleições de 2018, a realidade prática repõe a necessidade de reavivar uma discussão com o MES (Movimento Esquerda Socialista), com quem travamos – exatamente quando realizávamos a fusão entre os antigos MAIS e NOS, para constituir a RESISTÊNCIA – dura polêmica acerca das eleições para governador do Rio Grande do Norte.

Com a nitidez de que a vocação da esquerda socialista deve ser a de priorizar as lutas, a organização e a mobilização social como estratégia fundamental, nos preparamos – e também buscamos influenciar o conjunto do PSOL – para, entendendo que as eleições poderiam se constituir como um ponto de apoio para nossas lutas, construir candidaturas que pudessem expressar as reivindicações e as mobilizações dos trabalhadores, negros e negras, mulheres, LGBTs e todos os segmentos explorados e oprimidos.

Foi aí que nos surpreendemos, através de um anúncio na imprensa, de que o empresário Carlos Alberto Medeiros estaria deixando o PT, filiando-se ao PSOL e se apresentando como pré-candidato ao governo do Rio Grande do Norte. Toda a operação de “captação”, filiação no PSOL e definição de Carlos Alberto como candidato a governador foi feita pelos companheiros do MES, que são majoritários na direção do PSOL no Rio Grande do Norte.

QUEM ERA O CANDIDATO ESCOLHIDO PELO MES PARA REPRESENTAR O PSOL NAS ELEIÇÕES DO RIO GRANDE DO NORTE

Carlos Alberto Medeiros é um empresário potiguar que possui de uma rede de restaurantes, com um patrimônio acumulado – segundo dados informados pelo próprio à Justiça Eleitoral à época – de mais de 3 milhões de reais.

Sua trajetória política é inconteste. Foi coordenador do PRODETUR (Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo do Nordeste) no Rio Grande do Norte, durante os governos de Wilma de Faria (PSB) e Iberê Ferreira (PSB), ambos historicamente vinculados às velhas oligarquias que sempre governaram esse Estado, e também foi vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Natal, um sindicato patronal do comércio potiguar.

Para além de sua riqueza centralmente obtida pelo faturamento das empresas, Carlos Alberto possui formação acadêmica e ideológica também publicamente conhecida: além doutor em administração de empresas, suas pesquisas dizem respeito a temas como “comprometimento organizacional”, estratégia, marketing e desempenho de empresas turísticas. Sempre foi um ativista e um ideólogo do empreendedorismo, com identidade de classe claramente definida, nunca tendo participado ou apoiado qualquer luta social, à exceção de causas empresariais. Sua passagem pelo PT e inclusive sua candidatura a vice-prefeito pelo partido em eleições anteriores fazia parte da velha fórmula petista de apresentar nomes palatáveis ao empresariado e à classe dominante, para ampliar seu espectro eleitoral.

Para nós parecia nítido que a candidatura de Carlos Alberto ia na contramão do caminho que o PSOL necessitava trilhar, de ser um polo de resistência dos trabalhadores, lutadores sociais contra os inimigos de classe. Sua candidatura não ajudava a construir o partido como uma referência de esquerda, socialista, mas como um partido da ordem, pragmático e que apresentava as saídas  políticas restritas ao campo da “gestão”. Esta inclusive não era uma posição apenas nossa (do então #MAIS, em seguida, RESISTÊNCIA), mas de praticamente todas as correntes do partido. (1)

Apenas os companheiros do MES defendiam essa política e justificaram suas posições. Em artigo assinado no site do MES, Movimento Revista (2), diziam os companheiros:

O centro da polêmica está no fato de Carlos também ser empresário. Carlos é dono de 6 franquias de restaurantes e tem certo patrimônio acumulado. Em termos de classe, ocupa lugar na pequena burguesia. […] Carlos não é representante de oligarquia latifundiária, não é industrial e não é um financista ou banqueiro.

[…]

Sua candidatura será marcada pelo combate as oligarquias e a diferenciação do projeto de esquerda PSOLista, independente. E nesse sentido o professor tem fala privilegiada, justamente por ter rompido com o Petismo.

Construiremos o programa de forma aberta, democrática e coletiva. Certamente será um esforço para um diagnóstico preciso do estado e para a construção de um programa que aproxime as pessoas. Ativistas e não ativistas. O PSOL sairá fortalecido do processo.

 

Passado um ano da polêmica pública, a realidade prática demonstrou que a posição adotada pelos companheiros foi carregada de oportunismo eleitoral, sendo responsável para que perdêssemos uma oportunidade ímpar de afirmar um perfil combativo e classista nas eleições de 2018.

UMA DURA E IMPLACÁVEL REALIDADE: NADA DO QUE O MES PREVIU SE CONCRETIZOU

O primeiro “argumento” do MES para justificar a defesa da candidatura de um empresário no PSOL era de que ele não era um “representante de oligarquia latifundiária, industrial ou banqueiro”. É chocante perceber que para os companheiros o critério que nos impediria de ser contra essa candidatura era se somente se tratasse de um latifundiário, de um industrial, ou de um banqueiro, como se o fato de Carlos Alberto ser um empresário reconhecido no Estado e com larga trajetória de defesa dos interesses gerenciais não significasse absolutamente nada.

Os companheiros teriam algum grau de razão se, embora dono de 6 restaurantes, o programa defendido por Carlos Alberto se constituísse numa plataforma anti-latifundiária e anti-rentista. Definitivamente, não foi o que ocorreu.

Ainda durante a Conferência Eleitoral Estadual do PSOL no Rio Grande do Norte, Carlos Alberto distribuiu um documento intitulado “Carta aos militantes e filiados do PSOL/RN por ocasião da Conferência Eleitoral 2018”, no qual reafirma todo o seu perfil empreendedor e aponta defender concepções gravíssimas, alinhada com os interesses desses setores que os companheiros afirmaram que ele não representaria.

Neste documento, Carlos Alberto defendeu: “Hoje os consumidores conscientes buscam se alimentar de produtos orgânicos, por que não estimular fortemente a produção de alimentos orgânicos para exportação? Se não podemos ser os maiores produtores devido às limitações ideológicas de nosso território, por que não sermos os melhores em diferenciação?”. As oligarquias latifundiárias aplaudiriam sem vacilação o programa agrícola de Carlos Alberto, afinal, todo o sentido do agronegócio é justamente concentrar-se num modelo exportador a partir do qual não há qualquer lugar para medidas como a reforma agrária ou o incentivo a pequenos produtores, posto que está inserido numa lógica da concorrência internacional do agronegócio. A verdade é que o candidato defendido pelo MES propôs um programa genuinamente capitalista e oligárquico para o campo.

No tocante ao programa para industrialização, Carlos Alberto igualmente reproduziu sua perspectiva empresarial. No mesmo documento programático distribuído aos militantes, o empresário afirmou: “Não devemos prorrogar incentivos de indústrias já instaladas. A oportunidade tem que ser dada a todos, incentivos não devem ser perpétuos. Além disso, o incentivo tem que ser concedido aos pequenos antes de ser concedidos aos grandes”. O do ramo empresarial de Carlos Alberto não ser a indústria não o impediu se apresentar como um aliado dos grandes industriais, ao contrário de tudo que foi afirmado pelo MES. É um acinte a afirmação de que seja sequer cogitada a manutenção de isenções fiscais às grandes empresas. Sob o véu de “garantir primeiro a isenção aos pequenos, para depois conceder aos grandes” e tratar a questão como “problema de CNPJ” (ou seja, quem já recebeu não recebe incentivo, vai para a indústria seguinte da fila) reside a lógica de manutenção do desvio de recursos públicos para salvar as empresas capitalistas, o que é inaceitável.

Como se não bastasse, Carlos Alberto também não apenas não foi capaz de atacar o rentismo como se propôs atuar em seu benefício. Ao afirmar que “De uma forma mais ousada, temos que induzir a criação dos negócios sociais teorizados por Muhammad Yunus”, Carlos Alberto apenas poderia causar alívio aos banqueiros por verem um candidato de um partido de esquerda reafirmando seus interesses. Muhammad Yunus nada mais é do que um banqueiro de Bengali. Seu banco, o Grameen Bank, tem o governo de Bangladesh como o principal acionista e foi criado para oferecer ativamente microcrédito para as famílias pobres, numa aplicação literal do que pregam os organismos internacionais em seus programas de “combate à pobreza”: não inverter as prioridades, tirando dos mais ricos para garantir direitos aos pobres e sim, oferecer-lhes microcrédito de forma a impulsionar o rentismo com o endividamento em massa da população. Este foi o candidato a governador defendido pelo MES: um empresário cuja referência é a de um programa criado por um banqueiro.

A afirmação de que, politicamente, a candidatura de Carlos Alberto seria “marcada pelo combate as oligarquias e a diferenciação do projeto de esquerda PSOLista, independente”, por ter “rompido com o PT”, também não se concretizou. Apesar de terem imediatamente aprovado um balanço eleitoral que afirmava que “No Rio Grande do Norte, nossa chapa ao governo composta pelo Professor Carlos Alberto e Cida Dantas foi uma alternativa às oligarquias do estado, que defendeu um novo modelo de desenvolvimento para o RN, fundamentalmente popular e democrático. Saímos orgulhosos pois, além de preservamos nossa independência à velha política, conseguimos eleger o primeiro Deputado Estadual da história do PSOL/RN”, (3) menos de dois meses depois a realidade foi implacável. Carlos Alberto, semanas depois de terminada a eleição no qual ele representou o partido por imposição do MES, decide unilateralmente integrar a equipe de transição do governo recém-eleito de Fátima Bezerra, do PT.

Ou seja, a “verdade” vendida pelo MES em suas avaliações e reafirmada por seu balanço de que Carlos Alberto se afirmaria como “alternativa alinhada ao projeto de esquerda do PSOL”, “independente”, que tinha “rompido com o petismo”, se desfez no ar. Ao fazer o anúncio de que pretendia ingressar no governo Fátima, Carlos Alberto não apenas descumpria uma resolução partidária (que o próprio MES depois foi obrigado a defender)(4), mas mostrava que sua “ruptura” com o petismo nada tinha de divergência programática, de aproximação com as posições do PSOL, mas na busca por um espaço eleitoral para se afirmar, já que na primeira oportunidade que se abriu para colocar em prática suas perspectivas de gestão – mesmo sob um governo do PT – não pensou duas vezes em entrar em rota de colisão com o partido e suas resoluções.

O resultado final do processo não poderia ter sido diferente. Após todo o ocorrido, Carlos Alberto deixou o PSOL e filiou-se ao PV (5), um partido fisiológico que apoiou o golpe parlamentar e as contra reformas de Temer e Bolsonaro, na sua eterna busca por uma legenda viável – já é cogitado a ser pré-candidato a prefeito de Natal em 2020 – que lhe confira espaço para seu projeto de gestão empresarial à frente do Poder Executivo. E, evidentemente, o prognóstico e o balanço do MES de que tudo culminou numa grande vitória, que o PSOL saiu fortalecido, na verdade se concretizou como um grande fiasco, marcado por um oportunismo eleitoral sem precedentes e do qual temos que tirar sérias lições.

BALANÇOS SÓ SERVEM PARA OS OUTROS? O MES DEVERIA RECONHECER SUA RESPONSABILIDADE

Em outubro de 2018, o MES, através de seu órgão oficial da internet (Movimento Revista), publicou um balanço público sobre as eleições daquele ano, no qual, dentre outras coisas, fez uma avaliação profundamente crítica da candidatura de Guilherme Boulos, por supostamente “não ter adotado uma posição independente em relação ao PT”. Disseram os companheiros:

A escolha do PSOL, desde 2015, de abster-se, nos momentos mais decisivos, de adotar uma posição independente do PT impediu que surgisse uma alternativa à esquerda com peso de massas.

Guilherme Boulos, na preparação de sua candidatura, optou por uma linha política de não independência, que o impediu de apresentar um novo rumo para o país por não poder apresentar uma crítica real ao regime e a seus principais atores. (6)

Não pretendemos neste artigo contraditar o conjunto do balanço do MES acerca das eleições gerais, pois nossa organização já se posicionou publicamente sobre o tema, em artigo assinado pela companheira Carol Coltro.

Contudo, as afirmações realizadas pelo MES em seu balanço nacional das eleições e o modo como a realidade foi contundente diante da política adotada pelos companheiros no Rio Grande do Norte chega a assustar. A organização que afirma que a candidatura de Guilherme Boulos – que, em que pese seus limites programáticos, se pautou por um perfil classista, combativo e afirmando a total independência de classe, algo completamente ausente na estratégia petista – “optou por uma política de não independência” não tem qualquer semelhança com uma corrente que afirma que a candidatura de Carlos Alberto no RN – que defendeu um perfil empresarial e, ao final de sua campanha, sinalizou integrar o governo petista, sem qualquer crítica à sua estratégia de conciliação com as oligarquias, indo terminar seus dias no PV – se construiu com independência de classe e da própria lógica petista.

Ao não rever publicamente seu balanço, depois de toda a realidade que encerra os erros e o oportunismo eleitoral no qual se baseou suas posições, o MES incorre numa metodologia perigosa: a de que os balanços só servem para as outras organizações, nunca para si.

O MES deveria, até pela política de independência de classe que cobra dos outros, reconhecer sua responsabilidade diante do desastre que se abateu no PSOL do RN com a candidatura de Carlos Alberto, numa campanha que dividiu o partido e que terminou sendo feita apenas pelo MES.

Esta necessidade não decorre apenas de uma questão escolástica, da discussão sobre quem está certo ou quem errou, mas tem um sentido fundamental. As lições tiradas desse processo precisam servir para que a esquerda evite revisitar erros que comprometem a nossa estratégia de fortalecimento de uma perspectiva política de classe e anticapitalista.

Para que, no futuro, não percamos outras oportunidades. A dureza do momento não nos permite erros dessa magnitude.

 

NOTAS

1 – Surpreendidos com o fato e com os métodos utilizados para definir a posição dos companheiros do MES como a posição coletiva do PSOL, uma reação de praticamente todas as correntes do partido é desencadeada, com o objetivo de impedir o desastre. As correntes MAIS, Nova Práxis, LSR, Comuna e Avança PSOL passarem então a defender a pré-candidatura de Juary Chagas a governador pelo PSOL. A APS se absteve e apenas o MES defendeu a candidatura de Carlos Alberto.

2 – Ver em https://movimentorevista.com.br/2018/04/sobre-a-construcao-do-psol-no-rio-grande-do-norte-e-a-candidatura-de-carlos-alberto/.

3 – Ver em https://www.facebook.com/pg/psolrn/posts/?ref=page_internal a nota do PSOL/RN, na qual o partido expõe sua posição sobre o segundo turno das eleições de 2018 e introduz um balanço não consensual, aprovado pelo fato do MES possuir maioria no diretório do partido.

4 –  Em outubro de 2018, o PSOL aprova que, apesar do voto crítico em Fátima Bezerra, se manteria independente de seu governo e definia pela não permissão de seus filiados para integrá-lo. Os meios de imprensa do RN divulgaram amplamente a movimentação de Carlos Alberto e o PSOL (dessa vez com a concordância do MES) ameaçou-o de expulsão, como se pode ver em https://agorarn.com.br/politica/psol-avalia-expulsar-carlos-alberto-apos-ele-dizer-que-nao-deixara-equipe-de-fatima/.

5 – Ver em https://www.blogdobg.com.br/ex-candidato-a-governador-do-rn-pelo-psol-carlos-alberto-se-filia-ao-pv/.

6 – Ver em https://movimentorevista.com.br/2018/10/impulsionar-o-movimento-democratico-para-derrotar-bolsonaro-no-segundo-turno/.

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psol