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Canção para dona Elzita e para que todas as mães se reconheçam

Carlos Zacarias

Carlos Zacarias é doutor em História e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde leciona desde 2010. Entre 1994 e 2010 foi professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde dirigiu a Associação Docente (ADUNEB) entre 2000 e 2002 e entre 2007 e 2009. Colunista do jornal A Tarde de Salvador, para o qual escreve artigos desde 2006, escreve às quintas-feiras, quinzenalmente, sobre temas de história e política para o Esquerda OnLine. É autor de Os impasses da estratégia: os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil (1936-1948) (São Paulo, Annablume, 2009) e no ano passado publicou De tédio não morreremos: escritos pela esquerda (Salvador, Quarteto, 2016) e ainda organizou Capítulos de história dos comunistas no Brasil (Salvador, Edufba, 2016). É membro da Secretaria de Redação da Revista Outubro e do Conselho Editorial das revistas Crítica Marxista, História & Luta de Classes, Germinal, entre outras.

Morta no último dia 25 de junho, aos 105 anos, Elzita Santa Cruz não teve o direito de enterrar seu filho Fernando. Buscou por 40 anos, sem sucesso, alguma notícia sobre o paradeiro do jovem que, como tantos outros, havia desaparecido nos tempos da Ditadura. Nessas décadas, Elzita recusou-se a mudar de casa, onde preservava o quarto do filho, e também de número de telefone.

Meses depois de ter seu filho desaparecido em fevereiro de 1974, Elzita escreveu ao marechal Juarez Távora, indagando se era “justo”, “humano” e “cristão” que “um órgão de segurança encarcere, depois de sequestrar, um jovem que trabalhava e estudava, sem que à sua família seja dada qualquer informação sobre o seu paradeiro e as acusações que lhe são imputadas?”. Não era justo, mas assim era o Brasil e por isso Elzita temia o destino de Fernando que havia caído nas mãos da repressão. Sem se intimidar, junto com Risoleta Collier, mãe de Eduardo, que desaparecera com Fernando, procurou pelos jovens junto aos órgãos de repressão na vã esperança de poder responder ao que havia perguntado ao marechal: “Que direi ao meu neto quando jovem for e quando me indagar que fim levou o seu pai, se ele não tiver a felicidade de ver seu regresso? Direi que foi executado sem julgamento? Sem defesa? Às escondidas, por crime que não cometeu?”

40 anos depois do desaparecimento de Fernando e Eduardo, que eram estudantes e militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML), suas famílias, enfim, tiveram notícias dos seus destinos. Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, ambos haviam sido presos e em seguida executados por agentes do DOI-CODI do Rio, que depois incineraram seus corpos numa usina em Campos Goytacazes.

Como outras mães, Elzita não pôde enterrar o seu filho, mas incansável na busca pela verdade, felizmente não teve o infortúnio de ver o vilipêndio pronunciado por Bolsonaro contra sua memória e a de todas as vítimas da Ditadura. O chefe do Executivo, após dizer que poderia contar para Felipe, filho de Fernando e presidente da OAB, o que havia acontecido com o seu pai no período militar, numa live enquanto cortava o cabelo, afirmou, irresponsavelmente como de costume, que o estudante havia sumido por uma ação da cúpula da APML.

Elzita e todas as mães e pais de desaparecidos e vítimas da Ditadura são a antítese do Brasil de Bolsonaro. Longe desse país de escárnio e vergonha, o país que dona Elzita e todas as mães de vítimas do Estado sonharam, a canção que ecoa, e que sabe a esperança, é a que se inspira em Drummond: “Morrer acontece/com o que é breve e passa/sem deixar vestígio./Mãe, na sua graça,/é eternidade/Fosse eu rei do mundo,/baixava uma lei:/Mãe não morre nunca/mãe ficará sempre/junto de seu filho”. Para que Elzita e todas as mães dos que lutam por um país justo e democrático se reconheçam.

 

Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, de Salvador (BA)