A despeito da histórica disputa do empresariado no campo da educação, pelos recursos públicos e para cimentar a concepção econômica da educação, sua atuação é catapultada com a constituição do Movimento Todos Pela Educação (TPE) em 2006. Desde então, o empresariado, organizado como classe para si, alinha seus prepostos e reúne aliados para disputar sistematicamente um projeto político pedagógico hegemônico nos âmbitos do Estado estrito e da sociedade civil.
A partir de 2006, o TPE – que tem entre seus sócios-fundadores figuras vinculadas a governos e a grandes empresas e bancos (à exemplo de nomes como os de Jorge Paulo Lemann, Gustavo Ioschpe, Fernando Haddad, Emílio Odebrecht, Cesar Callegari, Jorge Gerdau Johannpeter, Maria Alice Setúbal e Maria Helena Guimarães de Castro) – conduz o encaminhamento das políticas públicas de educação, sempre atentando às diretrizes de Organismos Internacionais. Exemplo dessa afirmativa é o fato de que, malgrado a polissemia do termo “qualidade da educação”, o sentido da qualidade educacional tão clamada pelo empresariado é o bom desempenho do alunado brasileiro, por exemplo, nas avaliações em larga escala produzidas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Outros exemplos tangíveis são os fatos de que a concepção pedagógica de desenvolver habilidades e competências é indicada pela Unesco e que a atual introdução, nos currículos escolares, do “aprender a empreender” e das competências socioemocionais são eufemisticamente chamadas de sugestões (financiadas) do Banco Mundial.
A crescente hegemonia do empresariado na educação brasileira revelou, de um lado, que as forças reunidas no TPE lograram êxito na tarefa de organizar o consenso “espontâneo” em torno da narrativa de que o Estado é incapaz e ineficiente de operar a democratização da educação com qualidade. Outrossim, que obtiveram sucesso ao amalgamar a lógica empresarial de metas e resultados a baixo custo, mesmo que por meio de amplo controle e de instrumentos coercitivos. De outro lado, porém, o mesmo processo revelou que o robustecimento dessa hegemonia fora dialética e peremptoriamente acompanhada pelo aumento da destinação de recursos públicos para setores privados (à exemplo dos financiamentos estudantis no ensino superior), pela precarização estrutural e do trabalho docente (vide os sistemas de ensino estaduais e municipais que reestruturam suas redes com vistas a enxugar seus gastos), pela acentuação da dualidade educacional estrutural (com a diversificação de etapas formativas) e pela restrição do acesso ao conhecimento historicamente acumulado (com as reformas curriculares que varrem pra fora as disciplinas não diretamente úteis ao mercado).
Ao acompanhar esse processo, identificamos que esses e outros tantos efeitos deletérios são decorrentes e aprofundadores do que denominamos mercantilização e mercadorização da educação. Com o termo mercantilização, referimo-nos ao processo pelo qual, historicamente, a educação escolar foi paulatinamente reduzida a elemento de valor da mercadoria força de trabalho e subsumida à forma-mercadoria. Já com o termo mercadorização, referimo-nos ao processo pelo qual o próprio processo educativo e suas ferramentas pedagógicas foram transformadas em mercadorias em si, sendo comercializadas em um novo nicho de mercado, qual seja a esfera educacional. Demonstramos em nossos estudos que ambos os processos são simultâneos e históricos, mas que foram significativamente aprofundados sob a égide do neoliberalismo que, enquanto agressiva contrarreforma, exigiu um apassivamento das massas que, no âmbito da educação, somente sob subsunção da educação poderia ocorrer. Para nosso coletivo, o “empresariamento da educação de novo tipo” reúne essas três dimensões e funciona como ferramenta conceitual para explicar a formação dessa trincheira de aparelhos privados de hegemonia junto ao Estado.
O golpe jurídico-parlamentar de 2016 e sua covntinuidade figurada na eleição de Jair Bolsonaro suscitaram especulações sobre a continuidade desse empresariamento, isto é, sobre um possível divórcio entre as agendas da Educação do Estado estrito e do empresariado – este tão bem relacionado com a aparelhagem estatal comandada pelos governos petistas. Nesse âmago, vale lembrar que à época do governo Temer forças conservadoras exigiram o atendimento de algumas de suas reinvindicações no âmbito educacional pelo apoio dado ao Impeachment – vide as duas principais exigências da bancada evangélica negociadas: a introdução do ensino religioso e a retirada das questões de gênero e sexualidade da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017 para o ensino fundamental e para a educação infantil. Na ocasião, houve reação contrária de algumas frações do empresariado; entretanto, os tensionamentos entre forças liberais e conservadoras foram pontuais e em nada atingiram o processo de aprovação e implementação da BNCC e de outras medidas de contrarreforma na educação que já vinham sendo conduzidas.
Todavia, no início do governo Bolsonaro, surgiram novas tensões e questionamentos sobre a dinâmica dessas forças. Embora o atual presidente tenha acenado positivamente ao empresariado ainda na época de campanha, recebendo os empresários Viviane Senna e Mozart Ramos e sendo receptivo às suas ideias, as primeiras dúvidas surgiram no âmbito da indicação de Bolsonaro ao Ministério da Educação. Já em 2018, os rumores de que o indicado para o cargo seria Mozart Neves Ramos (atual diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna e indubitavelmente a opção favorita do empresariado) geraram explícitas oposições da bancada evangélica. Logo em seguida Bolsonaro tentou abafar os rumores, desmentindo a suposta indicação. Porém Mozart afirmou à imprensa ter sido convidado e estar descontente com a postura do Presidente.
Apesar de o segundo indicado ao cargo de ministro da educação não ter sido alguém da confiança do empresariado, é fato que houve algumas tentativas de diálogo. Ainda em janeiro, o então ministro Ricardo Vélez recebeu representantes do TPE e tomou conhecimento do documento “Educação Já!”, elaborado por esses com vistas a, como sempre, estabelecer metas e apresentar caminhos para enfrentar os (históricos) problemas da educação brasileira. No mês seguinte, em mensagem enviada ao Congresso, Bolsonaro afirmou que o foco do MEC no âmbito da educação básica seria a ampliação do ensino técnico, a militarização das escolas, o combate à (suposta) doutrinação e à “sexualização” precoce, bem como que a BNCC, aprovada após cinco anos de intenso trabalho da organização empresarial Movimento pela Base Nacional Comum, seria revista pelo novo governo.
Em março o MEC começara a receber críticas robustas, inclusive do empresariado. À época, a presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) afirmou em entrevista que o MEC não tinha comando nem política para educação, bem como que estava decepcionada com a falta de disposição ao diálogo e com os extremismos do então ministro. Além disso, a presidente demonstrou insatisfação com a falta de retorno do MEC sobre diálogos anteriores, nos quais o Consed afirmou, com total apoio do empresariado, a necessidade de promover o regime de colaboração e criticou a desvinculação de gastos do Programa de Apoio à Implementação da BNCC (PRO-BNCC).
No início de abril Ricardo Vélez foi demitido por Bolsonaro e o cargo foi assumido por Abraham Weintraub, economista do mercado financeiro. Logo após a nomeação, a gerente executiva do TPE, Priscila Cruz, afirmou publicamente, em nome do Movimento, que Weintraub é extremamente semelhante a Ricardo Vélez, sobretudo no que tange ao forte perfil ideológico e a falta de experiência no âmbito educacional. Afirmou ainda que, justamente por isso, o MEC continuaria inerte e deixando de priorizar as questões educacionais urgentes. Por outro lado, afirmou Priscila Cruz, a indicação de Weintraub poderia ser vantajosa no que tangia à sua capacidade de articulação política, posta sua proximidade com o Ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni.
Em meio a essas disputas, a trincheira dos aparelhos privados de hegemonia empresariais que atuam na educação pareceu posta em ameaça. Seus intelectuais, perplexos com a rejeição de fazer parte desse bloco no poder, buscaram em seus aliados vinculados aos aparelhos estatais, como o Consed e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), apoio para obter força política visando romper essa barreira. Poucos dias após a nomeação de Weintraub, foi lançada no Congresso a Frente Parlamentar Mista da Educação, com o objetivo de reunir parlamentares em torno das prioridades da educação básica. A Frente é integrada pelo Consed, pela Undime e por organizações de cunho empresarial, como a Fundação Lemann e o TPE, e tem como base para encaminhar políticas públicas de educação os documentos “Educação Já!” e a “Agenda de Aprendizagem” – este último produzido pelo Consed e pela Undime.
Na semana seguinte, Priscila Cruz, Claudia Costin e Tabata Amaral discutiram os rumos da educação no evento “Veja Exame – 100 dias de governo”. No debate, afirmaram que os problemas educacionais do país já foram diagnosticados por especialistas e que já se sabe o caminho para a resolução, mas que, infelizmente, a vontade política está concentrada em assuntos polêmicos que em nada influenciam os índices educacionais. Ambas faziam, por óbvio, claras menções ao forte viés ideológico do governo Bolsonaro.
Demonstrando o caráter dinâmico das correlações de forças e a força do empresariado brasileiro, no mesmo mês o Ministro Weintraub procurou Viviane Senna e Ricardo Paes, do Instituto Ayrton Senna, para um acordo de cooperação técnica. A partir deste, o economista-chefe do Instituto se colocou à disposição do MEC para aprofundar maneiras de contribuir para a implementação de políticas públicas voltadas para as escolas, e afirmou em entrevista que agora há o que com o ex-ministro Ricardo Vélez não havia: clima para começar algo mais frutífero. Na semana seguinte, Weintraub sinalizou ao empresariado que discutiria um plano de ação conjunto e definiria a agenda integrada tão clamada pelo empresariado.
No encontro, do qual participaram integrantes do Consed, da Undime, do TPE, do Instituto Ayrton Senna, do Instituto Natura e outros, foram apresentados os temas considerados prioritários e que estavam indicados na “Agenda da Aprendizagem” e no projeto “Educação Já”, relacionados com as metas do Plano Nacional de Educação que até então vinha sendo ignorado por Bolsonaro. A presidente do Consed, Cecilia Motta, elogiou publicamente a iniciativa do MEC de escuta, afirmando que agora o Ministério poderia aproveitar o que já existe de bom e com base em evidências.
No mês de junho, entretanto, ficou clara a fragilidade dessa integração do MEC com o empresariado, o Consed e a Undime. No dia 11, foi anunciado que os secretários municipais e estaduais de educação haviam decidido criar uma agenda comum, posto que o MEC não havia mais dado sinais sobre a continuidade dos programas. Em entrevista, Priscila Cruz traçou sete pontos emergenciais para o MEC, afirmando que, mesmo já havendo consenso entre os gestores sérios de educação sobre o que precisa ser feito, o MEC foi incapaz de, em seis meses, apresentar uma agenda propositiva no que diz respeito à educação básica. Nessa mesma entrevista, a gerente do TPE não economizou críticas ao ministro Weintraub: fazendo alusão às trapalhadas e cenas ridículas protagonizadas pelo ministro (à exemplo do corte versus contingenciamento, do uso de chocolates para explicar os cortes e o vídeo feito com guarda-chuva no MEC para afirmar que há sobre o ministério uma “chuva de fake news”), Priscila afirmou que o ministro se comporta como animador de torcida, divulgando vídeos engraçadinhos e polêmicos enquanto a educação no Brasil está abandonada.
No mês de julho, o Ministério, aparentemente em uma nova tentativa, lançou o “Compromisso Nacional pela Educação Básica” em parceria com o Consed e a Undime, tocando em assuntos de grande interesse do empresariado. O objetivo “é impulsionar a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio e a educação para jovens e adultos e tornar o Brasil referência na América Latina até 2030”, bem como integrar as esferas federais, estaduais e municipais constituindo um arranjo colaborativo. Apesar das metas ousadas (e certamente apoiadas pelo empresariado), o compromisso não define qualquer verba e define pouquíssimas ações concretas para a concreção das prioridades estabelecidas (à exemplo da construção de creches e escolas cívico-militares). Além disso, vale lembrar que poucos dias após esse lançamento, o governo anunciou cortes nos repasses de verba para a educação básica, atingindo programas voltados para a educação em tempo integral no ensino fundamental e médio, para as creches, a alfabetização e o ensino técnico.
Nesses quase duzentos dias, já fora demonstrada a complexidade da correlação de forças travada até então e a incapacidade do presidente de harmonizar os seus próprios aliados. No âmbito do MEC mais especificamente, onde já houve certamente o maior rodízio de integrantes da história, é possível identificar, de modo geral, a existência de uma disputa entre grupos vinculados a Olavo de Carvalho (ideólogo de extrema direita que se fez “guru” de um grupo de rasa e odiosa visão de mundo), os militares (que se apresentam como intelectual organizador da sociedade a qualquer custo e acima das rinhas ideológicas vulgares) e o grupo ligado à bancada evangélica (guardião da moral cristã, crítica da laicidade estatal e intolerante à modernidade das relações humanas e sociais). Neste cenário de pequeníssima política no âmbito do MEC, ainda podemos citar a pressão de um grupo de empresários do mercado educacional que enxerga nesses impasses internos entraves à fluidez e a aceleração de seus negócios.
Outro ponto que a nosso ver merece destaque é o fato de que, nesses últimos meses, ficou evidente que Weintraub e Bolsonaro são extremamente semelhantes no que tange ao temperamento intempestivo e irônico, bem como à crença na ilusão de que seu poder político é único e inabalável. Nesse âmago, é fato que as próprias declarações e ações do Ministro, que parece optar quase sempre pelo confronto direto, têm sido catalisadoras do inconformismo da população e sobretudo dos trabalhadores da educação. De nossa ótica, é importante lembrar que essa fração da população brasileira foi e continua sendo um dos principais alvos das ações do empresariado educacional, empreendidas com vistas à conquista de apoio e legitimidade às suas ações.
Nesse sentido, faz-se necessário refletir até que ponto a postura do ministro Weintraub e também do presidente Bolsonaro confronta diretamente o trabalho de conquista e organização do consenso, bem como de apassivamento dos trabalhadores, protagonizado pelo empresariado nesses trezes anos de existência organizada. Isso sem considerar que, de modo mais abrangente, o inconformismo dos trabalhadores pode oferecer riscos concretos e diretos à acumulação de capital (primeiro e último objetivo do empresariado).
Entendemos que, atualmente, há de fato uma correlação de forças travada no âmbito do MEC, sobretudo entre o empresariado e os intempestivos integrantes do governo Bolsonaro, que não deve ser menosprezada nem ter diminuídos os seus possíveis desdobramentos. Por outro lado, é estonteante assistir imóvel, do lado de cá da trincheira, dois grupos que embora divirjam, do lado de lá, sobre as táticas a serem seguidas, avançam desenfreadamente em direção a uma única estratégica que, em nome do capital, não poupa ninguém que assiste aos espetáculos midiáticos, políticos e parlamentares.
Em termos mais concretos, embora não seja possível nem o objetivo fazer previsões do futuro – posto que a própria movimentação dos atores de diversos segmentos no cenário político pode produzir alterações no seu desfecho – nosso acúmulo de pesquisa nos indica que a hegemonia do empresariado na educação atravessou três governos, cinco mandatos e se manterá sob essa nova direção. Se em parte no campo ideológico e político pode haver estranheza com o grupo no poder, o cimento ideológico da concepção econômica da educação e seus novos traços no bloco histórico neoliberal permanecerão, tanto no processo de mercantilização como no de mercadorização da educação. Ao que parece, no executivo, a liga “família e propriedade” será dada pela ortodoxia neoliberal de Paulo Guedes – um empresário, dito bem sucedido no mercado financeiro e educacional e que não vê sentido na educação como direito social, muito menos para todos.
Diante da atual conjuntura, é impossível crer que o sistema se destruirá por si mesmo; as disputas econômico-corporativas jamais transcenderão o pacto pela manutenção da supremacia burguesa às custas da classe trabalhadora. Se por um lado o tensionamento intraburguês poderia ser aproveitado pela classe trabalhadora organizada, disposta a deixar de patinar no mecanismo da reivindicação, é importante ter em mente que, por outro lado, da coalizão liberal-conservadora pode nascer um sistema de dominação ainda mais complexo e intransponível. Nesse sentido, a única afirmação que pode ser feita sem possibilidade de equívoco é a de que não há outra saída: somente a organização da resistência pode impedir a completa perda dos poucos direitos que nos restam.
Comentários