Seis meses depois da eleição de Bolsonaro são três os principais debates que atravessaram a esquerda no primeiro semestre. Eles nos remetem a três temas decisivos: (a) a natureza da derrota que a esquerda sofreu; (b) a caracterização do governo; (c) e qual deve ser a tática diante de Bolsonaro.
Diante de cada uma destas questões foram formuladas, essencialmente, três posições coerentes:
(a) a eleição de Bolsonaro deve ser avaliada somente como uma derrota eleitoral, portanto, circunstancial e transitória? Ou, ao contrário, podemos considerar que já ocorreu uma derrota histórica, portanto, devastadora, com consequências duradouras? Entre as duas posições, estão aqueles que aceitam que foi muito mais grave que uma derrota eleitoral, e reconhecem uma derrota político-social que abriu uma situação reacionária, mas argumentam que não deve ser comparada com uma derrota histórica, como a vitória do golpe em 1964;
(b) o governo de Bolsonaro deve ser avaliado como um governo normal de alternância dentro do regime democrático-eleitoral? Ou os primeiros seis meses confirmam que Bolsonaro seria incompatível com o regime semipresidencialista, e já está em desenvolvimento uma mudança autoritária com um novo equilíbrio de forças entre as instituições? A terceira hipótese defende que Bolsonaro não é uma continuidade da política do governo Temer com “extravagâncias”, ou seja, é um governo de extrema-direita com ambições bonapartistas, mas ainda não subverteu o regime.
(c) a melhor deve ser a ofensiva permanente, conhecida na tradição da III Internacional como a tática húngara, por ter sido defendida por Bela Kun no congresso de 1921, sob a bandeira Fora Bolsonaro, greve geral, porque o agravamento da crise econômica e social abre a possibilidade da derrubada iminente do governo. Ou deve ser a tática da social democracia alemã, formulada por Kautsky há mais de cem anos atrás: o quietismo, ou a construção de uma frente de oposição o mais ampla possível no Congresso Nacional, liderada pelas forças burguesas comprometidas com a defesa do regime democrático, aguardando as próximas eleições. Finalmente, a terceira posição é a defesa da tática russa, defendida por Lenin e Trotsky para a Alemanha no mesmo Congresso de 1921, ou tática do desgaste permanente, ou da frente única, ou ainda da guerra de posições, na formulação do italiano Gramsci: acumular forças nas mobilizações de resistência, até que uma mudança na relação de forças permita sair da defensiva e passar ao contra-ataque.
Quem avalia que já aconteceu uma derrota histórica, defende que Bolsonaro já deslocou ou está em vias de subverter o regime semipresidencial, e privilegia a tática quietista de construção da mais ampla Frente de oposição, apostando em uma possível vitória eleitoral, pelo menos em algumas grandes cidades, já em 2020.
Quem pensa que a derrota foi, essencialmente, eleitoral, caracteriza Bolsonaro como um governo de alternância limitado pelos freios e contrapesos do Congresso e do STF, e defende a tática da ofensiva permanente para derrubá-lo.
Quem pondera que não ocorreu derrota histórica, mas tampouco se deve reduzir o impacto das derrotas acumuladas desde 2015/16 a uma derrota eleitoral, define o governo Bolsonaro como uma coalizão de quatro correntes de extrema-direita com um projeto bonapartista ultrarreacionário que é uma ameaça às liberdades democráticas, e defende a tática do desgaste permanente, ou da frente única.
Há muita coerência interna em cada uma dessas três posições. Mas só uma delas é correta. Os três partidos de esquerda mais influentes no Brasil são o PT, o PSol e o PCdB estão divididos sobre estes temas. Não são os únicos, evidentemente, mas pela dimensão de sua implantação social, força eleitoral e capacidade de iniciativa política são os maiores. Outras organizações da esquerda, como o PSTU, o PCB, e a Unidade Popular têm graus variados de influência e, também, são muito mais homogêneas.
Não deixa, portanto, de ser curioso que estas três respostas estão, igualmente, presentes nos três principais partidos, ainda que com influência e peso diferenciados em cada um deles. Tanto no PT, no Psol quanto no PCdB há quem defenda a tática alemã, a tática húngara e a tática russa.
No PCdoB prevalece a primeira posição, embora as outras estejam presentes. Por isso, votaram a favor de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara. No PT há uma cacofonia estratégica. Por isso, apesar da maioria da bancada ter chamado ao voto em Freixo, e o Diretório Nacional ter fechado questão contra a reforma da previdência, um terço da bancada seguiu o PCdB no apoio a Maia, e os governadores entraram na negociação da reforma. E não faltaram até alguns que, há alguns meses atrás, especularam com uma possível queda antecipada de Bolsonaro.
No PSOL prevalece a tática do desgaste permanente. Mas há, também, defensores das duas outras posições, sobretudo, da tática da ofensiva permanente.
Sendo este o quadro do debate não surpreende que haja, também, muita confusão. O que prevalece na esquerda brasileira ainda é o empirismo, a oralidade, a improvisação. Porque não são poucos aqueles que se apropriam de um balanço da derrota, que não é compatível com a caracterização do governo, e menos ainda com a tática para enfrentá-lo.
Não faz sentido, por exemplo, defender que ocorreu uma derrota somente, eleitoral, porque Haddad teve quase cinquenta milhões de votos, e defender, ao mesmo tempo, que o regime da Nova República desmoronou. Se o regime foi subvertido, é porque a relação de forças entre as classes, e as relações políticas de força entre partidos e instituições evoluiu tão mal, mas tão mal, que não é possível simplificar a vitória de Bolsonaro como um acidente eleitoral.
Ou aqueles que defendem uma tática política que não é compatível com a avaliação do balanço. Não faz sentido, por exemplo, defender a tática da ofensiva permanente, mas avaliar que aconteceu uma derrota histórica.
Por último, por que o PDT e o PSB não são considerados nesta análise? Há uma enorme e, talvez, insolúvel controvérsia de critérios para definir o que é ser de esquerda, mas há, também, uma régua marxista para a classificação dos partidos. Entre outros critérios, a natureza social e a identidade ideológica. PT, PSol e PCdB são os partidos que, historicamente, conquistaram maior representação entre os trabalhadores e o povo, e reivindicaram, de alguma forma, o socialismo como referência programática.
Assim como não devemos julgar as pessoas pelo que pensam de si mesmos, não podemos avaliar os partidos somente pelo que dizem sobre si próprios. O PDT teve quatro candidatos a governador no segundo turno em 2018: Waldez Góes (Amapá), Amazonino Mendes (Amazonas), Odilon Oliveira (Mato Grosso do Sul) e Carlos Eduardo (Rio Grande do Norte). Desses, três passaram a apoiar o neofacista Bolsonaro: Amazonino Mendes, Juiz Odilon e Carlos Eduardo. PDT e PSB chegaram a ter, respectivamente, 30% e 34% de apoios à reforma da previdência apresentada pelo governo Bolsonaro, em suas bancadas de deputados federais. A candidata de Ciro Gomes a vice-presidente foi Kátia Abreu, uma liderança orgânica do agronegócio.
PSB e PDT se apresentam como de esquerda, mas não são. São partidos eleitorais ecléticos, com trajetórias imprevisíveis, composição político-social errática e, ideologicamente, inconsistentes. Alguns os definem como de centro-esquerda, mas mesmo essa caracterização ligeira parece precária, quase leviana. PSB e PDT operaram nas últimas décadas, essencialmente, como legendas de aluguel.
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