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BRASIL

Sintomas de uma esquerda ensimesmada

Veridiana Zurita*, de Indaiatuba, SP
Reprodução

Assistir Democracia em Vertigem com atenção de quem resiste (mais uma vez, e de novo) à narrativa hegemônica de uma certa esquerda, aquela que nos inebria (de novo, e mais uma vez) com mitos caducos e desgastados de mocinhos e bandidos é tarefa urgente. Assim como é urgente transformar a crítica em exercício que coloca narrativas em movimento, que suspendem e chacoalham mântras e fantasmas ideológicos que já não dão conta (se é que algum dia deram) do processo politico-social no Brasil.

Logo que terminei de ver o filme caiu no meu colo o fragmento do crítico de cinema A. O. Scott e que diz:

“Petra não produziu um trabalho de jornalismo objetivo ou de estudos acadêmicos, mas uma avaliação pessoal do passado e do presente de sua nação. Democracia em Vertigem é narrado em primeira pessoa, pela própria cineasta em uma voz que é, por sua vez, incrédula, indignada e auto-questionadora”.

Mas com muito alívio, a pergunta de um outro crítico chamado Marcelo Ikeda caiu nas minhas mãos, ele pergunta: “A quem esse filme se destina?” e eu continuo gritando pra tela do computador “E por quem a história é narrada?”.

Scott talvez tenha razão, não se trata de um trabalho pautado pelo jornalismo objetivo, nem por estudos acadêmicos e fica clara a intenção da Petra em traçar uma narrativa pessoal que avalie o passado e o presente “de sua nação”. Mas ela deixa a desejar, principalmente na tarefa de criar dinâmica entre o pessoal e o político. É exatamente nessa brecha – entre o pessoal e o político – que o caráter “auto-questionador” da diretora parece se anular. Petra, narra sob o ponto de vista dela que é o de uma classe média alta. Nem bom nem ruim. É ela vendo a história acontecer. Mas é ela vendo a história acontecer a partir de tal classe social. E nesse sentido, a narrativa que assisto não é uma reflexão auto-questionadora mas sim auto-referente, não só a si mesma, mas a uma classe social que compõem uma certa elite cultural no Brasil. Perceber a falta de auto-questionamento em sua narrativa é como perceber o narcisismo inerte e apático de uma classe social ensimesmada, da qual faço parte. Enquanto assistia o filme, fazia o exercício – quase que psicanalítico – de entender que em todos os momentos que minha identificação escorregava e se rendia à isca melodramática era porque eu estava – na verdade – me identificando com o espelho de uma classe auto-referente, que replica a si mesma, inclusive a maneira de subjetivar e narrar a percepção da realidade, uma bolha cognitiva. Ao contrário de Scott, não escuto no tom da voz da narradora “indignação” e “incredulidade”, escuto uma pessoa descolada de muitos fatos, que observa atônita os rumos da democracia burguesa, a voz de um sintoma da esquerda que insiste em achar que a democracia está ameaçada agora. A diretora revela o olhar sintomático de uma classe que parece sempre observar a realidade de cima, de fora, quase que imune, mesmo que crítica, identificada com a esquerda progressista e afetada pelos dramas e laços familiares, uma flaneur de drone. Quando Petra parece se implicar, colocando sua própria biografia em diálogo com o cenário político, a tentativa de auto-questionamento se enfraquece ainda mais. Ela tenta construir uma personagem de si mesma traçando, ao longo de sua própria biografia, paralelos com a história política do país. Mas o fato é que a autobiografia da cineasta não dá conta da histórica turbulência político-social do Brasil, ou pelo menos não da maneira como ela escolheu contar. Expor as relações atávicas entre pessoas da classe dominante no Brasil é dizer o óbvio em uma sociedade onde o privilégio é sistêmico e estrutural. A maneira como ela busca alinhavar relações entre sua própria biografia e o processo da “democracia” não consegue superar a construção de um retrato pessoal, individualizado, privado e protegido por privilégios. Ou seja, fala-se muito de Petra e a história de sua família e pouco de seu lugar de classe. Fiquei na expectativa de um auto-questionamento que fosse além da denúncia ‘en passant’ de uma família que representa o atávico baronato do país. No final ela fala de um “nós”. Ela diz algo do tipo “Será que vamos conseguir nos levantar dos escombros e criar algo novo?” Ou seja, de alguma forma ela se coloca como lugar de fala do cidadão Brasileiro abatido e que precisa se levantar. É como se ela estivesse dizendo “nós, brasileiros”. Mas quem é esse “nós”? Quem é o sujeito que (só) agora, com impeachment de Dilma, Lula preso e Bolsonaro no poder se questiona sobre a “vertigem” da democracia? A classe média alta. Petra parece se esquecer das muitas populações no Brasil que a todo momento – desde sempre – se levantam dos escombros. Os escombros são históricos. A pergunta no final do filme é sintomática. “(…) será que vamos conseguir levantar?” Ela evidencia que há uma classe que se percebe como centro, como referência, como lente de uma realidade que é mais complexa do que a sensibilidade muito bem paga pode compreender. A narrativa política que ela escolhe é a narrativa hegemônica dentro de uma esquerda que sempre se quis hegemônica. Dizer que o Lula errou porque fez coalizões ou que a Dilma não prosperou porque era fria (não dava o tal abraço), ou seja, não tinha o jogo de cintura do Lula, é apostar em uma narrativa que dá conta de alguns elementos sobre as problemáticas dos governos PT, mas não de todos. Martelar nessas questões, como se demonstrando que o eleitorado Lula e Dilma conseguem problematizar seus governos, é quase que uma forma de driblar a urgente necessidade de olhar para as contradições da esquerda e não ter medo de imaginar outras esquerdas. 

Em um documentário que se pretende falar sobre a democracia no Brasil não há quase questionamento sobre a democracia em si, ou sobre seus limites de classe, raça e gênero. Minto, há um momento em que tal questionamento finalmente aparece – aliás o momento mais marcante pra mim – quando Petra fala com uma das mulheres que limpa as escadas do Alvorada. A faxineira (adoraria saber seu nome, mas a diretora não pergunta, ou escolhe não colocar na tela). Aquela-mulher-sem-nome, faz um movimento emblemático em sua fala. Ela oscila entre o discurso da justiça contra a corrupção, já que Dilma é acusada e deve pagar, e o questionamento inevitável sobre o valor do voto já que a mesma presidenta foi eleita pelo povo. Ela demanda novas eleições e ao mesmo tempo se pergunta – enquanto senta na escada, descansa e repousa o pano de chão na perna – se há de fato democracia, se o voto garante a democracia e pra quem. Ali, imaginei que uma brecha pudesse se abrir, mas não. Petra segue na tentativa de alinhavar uma dinâmica entre a história da sua família e a da política no Brasil. A diretora passa batido pelo depoimento que mais denuncia a tensão (ou real vertigem) entre democracia e a luta de classes, mas não somente, ela passa batido pelo exercício de auto-questionamento que ela mesma não havia feito até então. O que aquela-mulher-sem-nome questiona, não é somente a democracia em si mas o discurso que ela mesma replica e sua autonomia reflexiva. O que assistimos nesse momento é alguém que percebe o abismo entre o discurso do senso comum e o exercício de leitura das contradições.

Não vale a pena discutir se o filme é bom ou não. Afinal de contas, se não superarmos a cultura do “like” seremos soterrados pela incapacidade crítica. Qualidade essa tanto desvalorizada pela direita – quando usa o anti-intelectualismo pra enfraquecer o poder político da reflexão – quanto pela esquerda quando acusa as divergências narrativas dentro de seu próprio campo político de “intelectualismo de esquerda” ou de “espezinhar a esquerda” ou ainda de “fragmentar uma luta comum”. Aí está, mais um sintoma dos tempos, sintoma perigoso. Nas várias vezes que a esquerda abre debate dentro de si mesma pra que justamente possa ser muitas outras – é acusada de fragmentar ou enfraquecer uma narrativa que precisa a todo custo ser uníssona, seja ela pra gringo ver, ou pra brasileiro dormir.

Assistir Democracia em Vertigem deve superar o gosto estético ou a identificação ideológica. O que me parece essencial é observar os sintomas que esse trabalho expõe como e por quem a história é contada e como nos identificamos com ela. Olhar pra brecha que Democracia em Vertigem não abre é olhar pro sintoma de uma esquerda no Brasil, seu ponto cego.

 

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Veridiana Zurita é mãe, artista, pesquisadora e feminista. Vive atualmente na zona rural no interior de São Paulo e desenvolve seu trabalho através de projetos multidisciplinares que possam suspender, torcer, desfazer e re-imaginar papeis sociais. Para conhecer alguns de seus trabalhos acesse: http://www.veridianazurita.com/
Artigo publicado também no site Outras Palavras