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BRASIL

“Democracia em Vertigem” – Da conciliação de classes à crise política

Gustavo Rotte, de São Paulo (SP)
Reprodução Democracia em Vertigem

“Democracia em vertigem” é um dos mais importantes registros de nossa história recente. A principal competência de Petra Costa, entre outras, é iluminar o período se equilibrando entre a criação de uma linha narrativa coerente, de ponta a ponta, dos últimos acontecimentos políticos do país. A parte principal do retrato se concentra entre a derrocada de Dilma e a prisão de Lula, os dois grandes pilares do fim de nosso último concerto democrático. Sem utilizar grandes análises políticas ou econômicas, Petra parte do movimento mais superficial e exposto da política brasileira, ordenando os fatos explícitos dos governos do PT para tentar, por fim, compreender os desdobramentos que levaram ao resultado da última eleição.

As pedras no caminho

O primeiro elemento de importância analisado no documentário é aquele que ela apresenta, precisamente, sob o nome de conciliação. É partir desse centro de gravidade que orbitam os elementos que culminam no fim do PT como liderança política do país. Com uma brevíssima introdução sobre o percurso de Lula, ela mostra como a vitória eleitoral, assim como a possibilidade de governar de fato, dependiam da conciliação entre povo e elite. Em uma sequência curta de trechos das campanhas presidenciais de Lula, vemos como a retórica voltada contra “os banqueiros” e os “grandes empresários” das campanhas de 89 e 94 dá lugar ao clamor pela necessidade de “apoiar todos os que querem produzir”, em 98. Em 2002, o discurso atinge o aceno explícito e abandona de vez a retórica antielitista, dirigindo-se com um carinho acolhedor aos empresários.

Isso, no entanto, não basta para consolidar seu governo e o PT ainda precisaria se comprometer com as regras do parlamentarismo brasileiro. Na falta de capital político para ganhar maioria, o PT teria se rendido à política do capital. Petra, que se mostra fazendo campanha pela eleição de Lula, trata o mensalão com uma sobriedade quase fria, e o escândalo não aparece como mera tentativa de destituir um presidente que representa os trabalhadores, mas como etapa incontornável de cooptação e adaptação de novo partido nas entranhas do poder. No entanto, se ela não fornece escusas para seu governo, também não se deixa levar pelas disputas doncasmurrescas sobre o culpado e a veracidade dos fatos – o que a preocupa é a narrativa política e como ela altera o cenário nacional. Tanto é assim que a aliança com o PMDB, o terceiro pecado da era Lula, aparece como uma revisão da estratégia de governança baseada em menos riscos e maiores concessões.

Com sua condução hábil a diretora mostra como o percurso do desenvolvimento do PT no poder se dava conjuntamente à redução radical da miséria e da pobreza, ao sucesso do desenvolvimento econômico e ao crescimento do prestígio do país, prestígio que ia da ascensão de camadas pobres a setores de consumo e formação até o elogio das maiores lideranças do globo. Tudo isso emoldurado pela figura carismática e inteligente de Lula. Por precaução, ela não diz explicitamente que ceder ao poder tradicional fora necessário para que essas mudanças ocorressem, mas faz com que Lula mesmo o diga: “Se Jesus viesse para o Brasil, teria que fazer aliança até com Judas”.

A narrativa até aqui fria muda completamente de figura com a aparição de Dilma. Dilma, aliás, aparece como figura que é atirada em cena, ao que parece, quase que contra sua vontade. Contrastando com a visão de seus detratores, entre eles alguns petistas, Dilma é apresentada como figura extremamente humanizada, vítima de uma fragilidade que foi imposta a ela pela conjuntura política. Mulher, ex-guerrilheira e mineira como a mãe de Petra, ela é descrita uma figura excluída, por excelência, de todos os parâmetros do poder masculino e patriarcal do covil de cobras que deveria manobrar. A novidade do tratamento é instigante e mostra a força do encontro ainda hoje infelizmente improvável entre uma diretora mulher e uma presidente mulher. Sua mãe, humilde e serena é o ponto de contato com Dilma, por vezes retratada quase como membro familiar. Assim, o retrato de Dilma é feito no tom da conversa privada feita em meio a olhares sinceros  e com a consciência profunda de um estado de coisas terrível sem superação possível. No dia de sua eleição, em meio ao primeiro abraço de Lula a sua sucessora, ouvimos a frase que simbolizava todo o incomodo de sua posição peculiar: “Ê presidente, o senhor inventou essa…”.

Sob esse ponto de vista inédito e no entanto extremamente apologético, tudo o que se passa em seu governo – a manutenção da aliança com o PMDB, na figura tenebrosa de Temer, a queda no desempenho econômico e a triste sina de estar no lugar de representação do poder quando a indignação, popular e difusa, se acendeu – parece pesar aos ombros de Dilma como uma sina má e extrínseca.

Como símbolo dessa posição, a Lava-Jato aparece como fato político novo que, sem nunca nem mesmo apontar conexão alguma com seu nome, provoca seu afastamento. A operação dirigida pelo ex-juiz (em todos os sentidos) Sergio Moro, que tem início cinco meses antes das eleições de 2014, vira a ponta de lança que dava forma a um caldo grosso, em que as indignações de 2013, antes difusas, encontravam uma forma conservadora, mascarada de luta implacável por justiça contra a corrupção.

Para Petra, esse é o ponto de virada dos poderes ideológicos em disputa. O primeiro passo é a transformação da investigação em arma política antipetista nas mãos de Aécio Neves, mais tarde também um investigado na operação. Sérgio Moro se funde então à grande imprensa brasileira e, a partir de ações anticonstitucionais, leva políticos à cadeia, criando novas demandas por “justiça” a cada noticiário. Ainda em um tom lisonjeiro ao que seria uma ingênua honestidade, Petra faz questão em dizer que o “erro político” que jogou Dilma para fora do palácio foi não ter tentado obstruir a investigação, como se o “certo” a fazer, no Brasil, sempre houvesse sido o ilícito.

Com a derrota eleitoral de Aécio e a direita tradicional tucana desmoralizada, começa-se a crise institucional. Aécio se recusa a aceitar o processo eleitoral, e os setores que se mantiveram às sombras das árvores que os governos do PT haviam plantado decidem desfilar sob o sol do ressentimento. Pois não foi apenas no âmbito da política e da justiça que se deu o processo, a situação abriu também a possibilidade de uma nova frente no campo de batalha das ideias.

A partir de uma adequação conceitual vertiginosa, a corrupção vira PT, e o PT corresponde ao esquerdismo, que na concepção dessa nova falange vai de Obama a Stalin. Petra não explica como se dá esse desenvolvimento, mas, pelo simples ordenamento causal dos acontecimentos, deixa ver os encaixes que foram se formando nesta quartelada ideológica. Assim, a história antes esfumaçada das forças regressivas toma forma, apesar de ainda lhe faltar um sentido.

Nesse quadro, constitui-se já uma imagem de um governo às avessas, projeto do que viria a ser de fato. Os militaristas de verde e amarelo – seria demasiado grosseiro chamar de patriotas ou nacionalistas um grupo que defende a privatização do país – trazem o apelo à ordem necessária, quase como complemento braçal à justiça da Lava-Jato. Olavistas e ultraliberais clamam para que o PT tire as mãos dos empresários. Fundamentalistas cristãos lamentam a destruição da família levada a frente por uma ditadura gay, comunista e corrupta. Não à toa, o único programa concreto e invariável do governo Bolsonaro até hoje é o “combate à ideologia”.

Nesse cenário, os setores da elite que haviam se satisfeito com a conciliação iniciada na era lulista passam a perceber que poderiam tem ainda mais poder, e dessa vez com mais liberdade em relação as restrições impostas pela política anterior. É o que aparece, por exemplo, nas explicações incomodamente sinceras dadas pelos deputados ao justificarem o apoio a um impeachment sem fundamentação. Isso nos faz entender como poderes de oposição tradicional ao PT, tucanos defensores do estado democrático de direito, trocam de lugar para onde se sentem mais livres para destilar o ódio em todas as suas versões opressoras e excludentes. Mais tarde, isso se comprovaria no percurso de Moro do tribunal ao ministério ou no modo como João Dória se alinhou ideologicamente ao bolsonarismo, sabotando com sucesso ala tradicional de seu partido capitaneada por Alckmin.

Os capítulos da farsa político-judicial que prendeu Lula e trocou Dilma por Temer, todos já conhecemos, ainda mais agora, com os vazamentos do Intercept Brasil. Também sabemos do papel explosivo e heterodoxo de Cunha nos últimos capítulos dessa história. Por fim, abria-se um novo capítulo em nossa república, e a conciliação mansa dava lugar ao combate aberto. Um capitão reformado do exército, conservador e há tempos embrenhado no poder corrupto seria a figura ideal para levar adiante essa nova onda.

O caminho de Petra

É essencial um comentário à importância de outro elemento fundamental no filme, a presença da própria diretora como parte da narrativa. Sem dever justificativa a ninguém, ela sabia que apresentar sua narrativa dependia de mostrar explicitamente seu lugar de fala. Para isso, ela escolhe se revelar em momentos cruciais do documentário. O filme é feito de registros históricos e entrevistas que segue um ritmo marcado, mas que é vez ou outra entrecortado repentinamente por planos longos e lentos que passam por dentro dos palácios da utopia modernista de Niemeyer. Essas intermitências revelam um respiro da autora, como se naquele espaço ela se sentisse confortável para respirar. Uma mudança de ritmo que parece ser ditada pela concessão política que a arte faz ao luxo – uma assinatura que indica o lugar de origem da diretora.

Petra-personagem é um amalgama de características que formam o lado da intelectualidade que esteve ao lado do governo petista. Filha de intelectuais guerrilheiros, neta de construtores burgueses. Em seu currículo uma formação que começa na USP, passa por Columbia e vai até a London School of Economics. Não é sem ironia que Petra conta que seu pai decidiu pela luta contra a ditadura a partir de sua leitura marxista em sebos de Nova York. É por isso que muitas vezes a contradição PT parece ser apenas uma expressão macroestrutural de uma contradição de sua própria vida – facilitada, por sua vez, pelas afinidades eletivas entre empresários e movimentos sociais em meio ao mundo globalizado. As placas de agradecimento aos grandes empreiteiros de sua família mostram sua realidade incômoda: entre o operário estatista Lula e o elitista neoliberal Collor, subjaz uma estrutura econômica que perpassa toda intenção política que já ocupou o palácio da Alvorada. Em um mundo no qual as narrativas se concentram cada vez mais na primeira pessoa do singular, Petra soube utilizar com integridade seu posicionamento político para colocar a política nacional em questão. Sua parcialidade autoriza uma certa objetividade.

No entanto, o documentário tem lacunas, que advêm também das próprias contradições da autora-personagem. Se ela lida bem com a compreensão dos desdobramentos das transformações políticas, ficam de fora as forças na base da sociedade, que são apresentadas por meio de um contato de choque, mediado pela câmera, com a diretora. Esses encontros mostram o quanto seu olhar se assenta muito melhor entre Di Cavalcanti e Sergio Rodrigues do que na hesitação flutuante da Praça da Sé. Ressoa no ar, sem conclusão, a fala de uma funcionária terceirizada da limpeza do palácio da Alvorada – por si só imagem das contradições do poder – sobre o Impeachment. Sem entrar no mérito partidário, ela reconhece de um lado o descrédito com política brasileira por sua ligação estrutural com interesses particulares e, de outro, a necessidade de uma solução política que tenha de passar pela participação popular.

Se certamente há pontos em que o relato pode ser questionado e rebatido, ainda assim ele é sem dúvida um olhar que diz algo de nossa realidade. Um olhar para si mesmo que toma a forma de uma autorreflexão necessária para todo o país ou, talvez, a forma de uma (auto)crítica essencial que o PT nunca poderia, nem gostaria, de fazer.