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MUNDO

Aumenta a tensão na Argélia, entre o regime e os manifestantes. Liberdade para Louisa Hanoune

Joana Benário, de São Paulo, SP

Há mais de dois meses o povo argelino exige, com a sua mobilização, o fim do regime. Todas as sextas-feiras, milhões de pessoas manifestam-se com gritos de “Fora o Sistema” e mobilizam-se por uma revolução democrática. O ex-presidente renunciou e o regime não tem substituto. O atual processo revolucionário não enfraquece, mas os militares não querem perder o controle.  Há novas eleições anunciadas para o próximo dia 4 de julho e o exército se empenha numa vasta campanha anticorrupção, uma ameaça velada para eliminar seus adversários políticos.

Uma pequena retrospectiva sobre os principais passos do processo atual

* 10 de fevereiro: o presidente Bouteflika anuncia sua candidatura para concorrer a um 5º mandato.

* 22 de fevereiro: início das grandes manifestações populares contra esta candidatura.

* 11 de março: é anunciado o adiamento das eleições presidenciais previstas para 18 de abril

* 2 de abril:  com base nas demandas populares, o Exército declara que não reconhece o presidente Bouteflika e provoca sua renúncia. O chefe da Assembleia, Abdelkader Bensalah, assume o poder interinamente.

* Em meados de abril, as investigações sobre a “corrupção” do antigo regime se aceleram. O poderoso Chefe do Estado Maior, Said Gaad, também Vice-Ministro da Defesa, anuncia uma operação contra a corrupção, tanto do antigo séquito de Bouteflika, como do exército. No início de maio, começa uma onda de detenções patrocinada pela justiça militar.

O Ramadã (1), jejum religioso muçulmano, acaba de começar, mas não impediu que os estudantes saíssem às ruas neste dia 7 de maio, em dezenas de milhares, como ocorre todas as terças-feiras, há 10 semanas. Como um deles diz: “Não vamos parar até que a mudança seja efetiva”. “Estamos determinados a continuar a luta pacífica até o desmantelamento do sistema e o estabelecimento de uma república democrática”, cantam os manifestantes. Depois de mais de 20 anos de um regime ditatorial, o envolvimento direto das pessoas, especialmente dos jovens (55% da população tem menos de 30 anos), como atores principais, é o elemento central da crise política na Argélia.

Nesta décima segunda-feira de mobilizações, nas ruas das principais cidades do país, manifestantes gritavam slogans hostis às eleições, à banda corrupta e diziam que não parariam. “Não às eleições, desde que o sistema esteja em vigor”. Eles exigem a saída de Bensalah (presidente interino), Bedoui (chefe de governo) e Bouchareb (Presidente da Assembleia Nacional), que simbolizam o governo de Bouteflika, e permanecem no poder.

Desmantelamento da “banda”

Na ausência de abertura política, o chefe do exército lançou uma importante operação anticorrupção. No domingo, 5 de maio, a Direção Geral de Serviços Internos (DGSI, recentemente devolvida ao controle do Exército (2) ) deteve as figuras-chave do poder anterior: Said Bouteflika, irmão do ex-presidente, assim como dois generais do exército, o General Mohamed Mediène (Toufik) (ex-diretor da DGSI) e seu sucessor e Athmane Tartag (disse Bachir) que foram presos e acusados de “conspiração contra a autoridade do Estado e do exército.” Eles serão julgados por um tribunal militar e podem enfrentar condenações pesadas. (3)

Vários empresários e altos funcionários próximos ao ex-presidente foram presos nas últimas semanas ou convocados pelos tribunais, incluindo os irmãos Kouninef, Ali Haddad e o ex-primeiro-ministro Ahmed Ouyahia. Segundo o jornal Mediapart, a operação é encarada pelos manifestantes como um desvio das demandas da revolução democrática.

Louisa Hanoune presa

Em 9 de maio, a líder do Partido dos Trabalhadores (PT), Louisa Hanoune, foi colocada em prisão preventiva pelo tribunal militar de Blida, depois de responder a uma convocação do juiz de instrução como testemunha na investigação de Said Bouteflika.

Esta detenção levanta claramente a questão das liberdades políticas. O PT argelino defende em seu programa político a realização de uma Assembleia Constituinte. Desde o início da mobilização, o PT defende uma assembleia soberana e democrática, como saída ao atual processo revolucionário. Como denuncia o comunicado de imprensa do PT, trata-se claramente de um ato de criminalização da ação política independente, expressando a tentativa de controle do processo atual por meio do sistema judicial.

Muitas reações nas redes sociais contra a prisão da líder e da figura pública da esquerda, denunciando que o Exército quer forçar a aprovação de sua agenda nas eleições de 4 de julho, apesar de sua rejeição pelo povo argelino. Por seu turno, a Liga Argelina dos Direitos Humanos (LADDH) considerou que esta prisão abriu o caminho para “todos os cenários e todos os desvios”. Nas ruas de Argel, nesta sexta-feira, 12 de maio, apareceram os slogans “Por um Estado civil e não por um regime militar”.

Outros ativistas também sofrem intensa perseguição. Salah Dabouz, da Liga Argelina dos Direitos Humanos, por exemplo, sofre 14 processos diferentes por críticas à justiça realizadas pela internet. A Human Rights Watch denuncia o “assédio judicial”.

Eleições confirmadas, mas…

Tentando manter uma saída de crise no marco do regime, Bensalah, o chefe de Estado em exercício, fez um discurso ratificando a realização das eleições presidenciais para 4 de julho e pediu diálogo com setores da sociedade para implementá-las. Mas a esmagadora maioria não quer mais esse regime presidencialista, autoritário e antidemocrático e a Constituição que o apoia. Os manifestantes consideram Bensalah um presidente ilegítimo, apoiado pelo exército. “As pessoas retiraram sua confiança durante as manifestações, e tudo o que vem dele é ilegítimo. Nada é claro nas decisões tomadas pelo poder. Parece um jogo, um acerto de contas entre eles. Se eles saquearam o governo, pelo menos, mas … A manutenção do primeiro turno da eleição presidencial em 4 de julho é uma provocação”, disse um manifestante nas redes sociais.

Por outro lado, a dois meses das eleições marcadas, ainda não há lista de candidatos, nenhuma campanha eleitoral e várias cidades recusaram-se a atualizar o censo eleitoral. Levaria pelo menos seis meses, se não um ano, para organizar eleições reais, comenta-se. O script criado para desviar o processo de mobilização é incerto.

Do lado dos trabalhadores…

No 1o de maio, circularam pela internet vários chamados de diferentes setores dos trabalhadores, convocando a recuperação da UGTA, principal central sindical ligada ao regime e aos patrões. “Não queremos um general ou alguém ligado aos patrões. Queremos uma central sindical independente e democrática. Trabalhadores e estudantes, todos unidos. “

Diferentes setores estão em greve, incluindo professores. Entre outros, os trabalhadores da Companhia de Distribuição de Gás e Eletricidade (SDC) estão em greve há mais de três semanas em apoio ao movimento em curso (chamado hirak). Os manifestantes também exigem a saída do diretor, acusado de má administração. Eles impediram a visita do Ministro da Energia à fábrica da Sonelgaz.

Uma economia frágil dependente de hidrocarbonetos…

Além da crise política, o país também enfrenta uma grave crise econômica. O Instituto de Estudos Econômicos Xerfi (4), estima que “a Argélia é uma economia em agonia. Com a queda no preço do petróleo, as reservas cambiais caíram de pouco mais de US$ 194 bilhões, em 2013, para cerca de 82 US$ bilhões, em 2018. A renda petroleira tem servido durante décadas para financiar os gastos correntes e enriquecer os privilegiados do sistema, mas não financiou o investimento industrial. Resultado, em 2017, o nível da produção industrial pública representava pouco mais da metade da de 1989. O tecido produtivo privado é composto por 90% de microempresas que trabalham muito frequentemente no setor informal. Alguns dos contratos de fornecimento de gás com países europeus expiraram em 2018 e outros estão chegando ao fim este ano, e a Argélia talvez não consiga chegar a novos acordos com os seus clientes se as reservas financeiras forem insuficientes.

Segundo estimativas oficiais, o desemprego afeta agora 13,2% da população (mais elevado do que as previsões do FMI). A taxa é consideravelmente mais elevada entre os jovens (26%) e as mulheres (20%). Existem também grandes diferenças entre as condições de vida nas cidades e em áreas rurais.

Mas a crise beneficia alguns grupos. De acordo com o jornal “Jovem África”, trava-se uma guerra entre as gigantes americanas Chevron e Ocidental Petroleum (Oxy), para a aquisição da Anadarko, o grupo petrolífero americano presente na Argélia, Gana, Moçambique e África do Sul. Se a Oxy ganhar esta OPA (oferta de aquisição), o grupo petrolífero francês Total (parceiro da Oxy) passaria a ser o maior grupo de petróleo da Argélia. Em outubro de 2018, Total e Sonatrach (empresa pública de hidrocarbonetos argelina) uniram forças para criar o primeiro complexo petroquímico da Argélia. Lembre-se que a Argélia está entre os 10 maiores exportadores de gás do mundo. É o décimo sexto em reservas de petróleo.

Um mosaico de oposição dividida

De acordo com a revista Oriente XXI (5), não há uma, mas várias oposições, “divididas entre dois partidos rivais, a Frente das Forças Socialistas (FFS), o Agrupamento para a Cultura e a Democracia (RCD),  grupos islâmicos mais ou menos próximos dos Irmãos Muçulmanos e do regime deposto, herdeiros da Frente Islâmica de Salvação (FIS). Há também dois novos agrupamentos, o “Forças da Mudança” cuja figura de proa é Ali Benflis, antigo Primeiro-Ministro da nação de Bouteflika, e o “Coletivo de sociedade Civil” com 28 associações duas Ligas dos Direitos Humanos. Após 20 anos de proibição de participação política, estes últimos são muito prudentes em se expor, mas em poucos comunicados de imprensa estão desenvolvendo a sua vontade de insistir num diálogo político entre o poder (exército) e os manifestantes. Nas ruas, no entanto, cresce o sentimento do “Fora todos” generalizado à classe política.

Perspectivas

É demasiado cedo para definir o destino desta revolução democrática e social em curso. A força das mobilizações, esta irrupção das massas no cenário político, é a única garantia para o avanço do processo. Até o presente, não surgiu uma nova liderança política capaz de conduzir esta transição para um regime mais aberto e popular. Os estudantes são, sem dúvida, a força viva desta revolução popular e empurram toda a população e os trabalhadores. É importante envolvê-los com toda a nossa solidariedade.

O chefe do Estado-Maior do Exército, o velho general Gaïd Salah, personifica hoje o poder real e detém as alavancas das decisões políticas. Até agora, o exército era visto pela população como um aliado das suas reivindicações democráticas, mas as últimas detenções como a da ativista e dirigente política Louisa Hanoune demonstram uma firme decisão de manter o processo no plano controlado pelo poder, as eleições de 04 de julho. O processo de mobilização terá de se dotar de propostas políticas fortes e de consignas de poder, a fim de continuar a avançar no sentido de uma mudança de regime. A proposta de uma assembleia constituinte soberana e democrática pode ser uma delas, de grande importância para enfrentar os desafios pela frente.

NOTAS

1 – Ramadã é um ritual muçulmano de jejum, que dura do amanhecer ao pôr do sol sem comida ou bebida, coloca o organismo dos muçulmanos à prova. Este ano, é realizado de 5 de maio a 4 de junho à noite.
2 – 
A poderosa Direção Geral de Serviços Internos, (DGSI), uma verdadeira polícia política que tem registros sobre todos, laços reais com quase todos os círculos, políticos, ministros, chefes, jornalistas, policiais, mesquitas imanes, irmandades, líderes tribais … os serviços co-manejaram efetivamente a Argélia com a presidência da República por mais de vinte anos.

3 – O artigo 25 do Código de Justiça Militar, emendado em 2018, estipula que, em tempo de paz, “os tribunais militares permanentes vem casos de ofensas “especiais” ligados ao campo militar. Os perpetradores, co-autores e cúmplices dessas ofensas serão trazidos, militares ou não, perante os tribunais militares.

4 – https://www.liberte-algerie.com/actualite/lalgerie-une-economie-a-lagonie-310273

5 – https://orientxxi.info/magazine/algerie-le-compte-a-rebours-electoral-a-commence

https://orientxxi.info/magazine/algerie-le-compte-a-rebours-electoral-a-commence

 

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