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BRASIL

Uma disputa de poder em curso

Luis Felipe Miguel*, de Brasília, DF

Falam da paranoia do clã Bolsonaro em relação a Mourão. Discordo da apreciação: não é paranoia. O vice age nitidamente para ocupar o vácuo de poder deixado pela inépcia do titular. Deseja se tornar regente, com Jair relegado à posição de rainha da Inglaterra, ou sucessor, o que exigiria um impeachment, renúncia ou quem sabe morte.

Existem muitas afinidades entre Mourão e Bolsonaro – o direitismo feroz, o desprezo pela democracia e pelos direitos, o horror à classe trabalhadora, o servilismo diante dos Estados Unidos, a adesão (mesmo que de ocasião) à cartilha ultraliberal. Nunca formaram uma chapa contrastante. Mas Mourão nunca foi um bolsonarista, nunca acreditou no “mito”. Sempre viu em Bolsonaro um instrumento para a realização de um projeto.

Bem mais esperto, o que aliás não é difícil, sabe escolher suas prioridades – e as prioridades são a destruição dos direitos dos trabalhadores, a redução do Estado e a desnacionalização da economia. Não é preciso entrar em guerra contra a Venezuela ou autorizar bases militares estadunidenses no território nacional, o que chama mais a atenção e desperta mais resistência do que entregar as riquezas minerais. Não é preciso comemorar publicamente o golpe de 1964 ou tecer loas em homenagem a torturadores, desde que a manutenção das forças armadas como guarda pretoriana do capital não seja ameaçada. Não é preciso comprar brigas em nome de gurus lunáticos. Dá para continuar sendo anticomunista raiz e conversar com um partido tão aberto a todos os tipos de diálogo quanto o PCdoB.

Não sei se Mourão já entrou na chapa antevendo a incapacidade de Bolsonaro ou se foi só depois da vitória que ele abraçou essa vontade de ser Temer. Mas há, sim, uma disputa de poder em curso, que do lado de Mourão é conduzida de maneira mais ou menos disfarçada, com algum grau de esperteza, e do lado dos Bolsonaros é conduzida, como esperado, da forma mais estúpida.

Mas há algo que não é estúpido na ação do ex-capitão e seus filhos. É a manutenção da mobilização de sua aguerrida base militante, que não está nem aí para a incompetência ululante do governo, para os escândalos, para os absurdos, que põe a devoção ao “mito” acima de tudo – e que deve alcançar algo como um em cada quatro ou cinco brasileiros, o que é um número assustador. Os Bolsonaros entendem ou intuem que essa base impede qualquer movimento mais forte em favor de Mourão, já que nenhum governo de direita sobrevive sem ela.

A busca de um novo pacto republicano implicaria chamar de volta a classe trabalhadora e a esquerda para a mesa, o que hoje exige um gesto: suspender a perseguição contra Lula, anulando os julgamentos injustos e colocando-o em liberdade. Há pouca dúvida que os setores hegemônicos da esquerda brasileira, viciados pela política de moderação, estariam dispostos a repactuar uma democracia muito limitada, sem sequer exigir o desfazimento de todos os retrocessos. Mas para o capital, assim como para a cúpula militar, isso é uma barreira intransponível.

Eles preferem o governo que está aí, do jeito que está aí, a reconhecer o campo popular como interlocutor político legítimo. O jeito de cada um – Bolsonaro, Mourão, a Fiesp – pode mudar, mas esse é um elemento comum, um grão de fascismo que está em todos.

 

*Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política da UNB, e autor de Democracia e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018)

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Governo Bolsonaro