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MUNDO

Reino Unido: novas derrotas de Theresa May causam adiamento do Brexit

por Márcio Mousse, de Londres

Na última semana, a Primeira Ministra Theresa May submeteu ao Parlamento Britânico, em uma segunda tentativa, seu Projeto de Acordo de Saída da União Europeia (Brexit). Este Projeto, que foi feito em acordo com as autoridades da UE, havia sido derrotado pelo Parlamento Britânico em janeiro deste ano pela maior margem de votos que um Governo já teve contra na história do parlamentarismo do país. O Projeto foi derrotado porque os setores pró-Brexit o achavam muito “soft”, ou seja, que apresentava pouquíssimas mudanças na relação da Grã-Bretanha com o Bloco Europeu – além de uma importante diferença quanto à questão da fronteira com a Irlanda (na Irlanda do Norte), o chamado backstop.

Dois novos Grupos mudam o cenário na composição política do Parlamento

Embora Theresa May tenha sobrevivido ás várias derrotas em sequência, e ainda não tenhamos a antecipação das Eleições Gerais no Reino Unido, algumas recomposições políticas alteraram a correlação de forças no Parlamento de Westminster.

O ERG (Grupo de Pesquisas Europeu), apesar do nome, reúne os Parlamentares do Partido Conservador que defendem uma separação mais profunda com a União Europeia (UE), o chamado hard-Brexit. Na prática, se comporta como um partido dentro do Partido Conservador, com uma bancada que influencia de 80 a 90 deputados. Seu líder, Jacob Rees-Mogg, é um parlamentar ultraconservador, que defende bizarrices que vão desde o fim da legalização do aborto (legal e provido pelo estado no país há mais de 50 anos) até a volta da liberação da caça às raposas. No quadro político atual, podemos considerar que faz oposição pela direita ao Governo, principalmente nas questões relativas ao Brexit. Embora tenha ocupado o espaço do (quase) falido UKIP, não se assemelha aos partidos de extrema-direita europeus.

O TIG (O Grupo Independente), também apesar do nome, de independente não tem nada. Embora não se assuma enquanto um partido (ainda vai a um processo de formalização), já se comporta como uma bancada. É formado por deputados da direita do Labour, os chamados Blairistas – que não aceitam que o Partido Trabalhista tenha a postura de esquerda anticapitalista (e socialista) de hoje sob a liderança de Jeremy Corbyn. Junto a eles, estão alguns Conservadores descontentes com o deslocamento dos Tories à direita no processo do Brexit. É o grupo idealizado – e informalmente dirigido – pelo ex-Primeiro Ministro Tony Blair. Infelizmente, nem todos os Blairistas (sequer os do Parlamento) já deixaram o Labour para ingressar no TIG – ainda há muitos deles a serem “convidados” a seguir este rumo. Hoje são cerca de 10 deputados.

O UKIP – que até poucos anos atrás era considerado o partido mais dinâmico da Europa – não está mais no Parlamento. Também perdeu praticamente todos os mais de 200 representantes em Conselhos Locais (“vereadores”) que tinha pelo país. Ainda tem representantes na bancada britânica do Parlamento Europeu, que (a princípio) não será renovada nestas eleições de maio – devido ao Brexit – e se o for provavelmente serão varridos de lá também. Seu antigo líder, Nigel Farage, primeiro político europeu a ser recebido por Trump após sua eleição, já deixou o UKIP e diz estar em busca de um novo rumo político. Hoje, abriga o ex-hooligan neonazista Tommy Robinson, e sua base social passou a ser uma ultradireita marginal, lumpem e bastante minoritária – focada no discurso ultranacionalista e anti-islâmico. Perdeu sua base social para a esquerda – o Corbynismo – e os setores burgueses que os apoiavam para a direita do Partido Conservador – o ERG.

12/03: A segunda votação do Projeto de Acordo – nova derrota de May

O mesmo Projeto foi à votação, novamente, neste dia 12 de março – cerca de duas semanas antes da data prevista para a saída do Reino Unido da UE, prevista para 29 de março. Na véspera da nova votação, a Primeira Ministra Theresa May viajou à noite para Estrasburgo, na França, onde se encontrou com Jean-Claude Juncker – presidente da Comissão europeia e um dos líderes das negociações com os britânicos por parte do Bloco continental. Nesta, reafirmaram uma “interpretação mais flexível” sobre a questão da fronteira irlandesa no acordo. Ao final, May e Juncker apresentaram as negociações como encerradas e o dirigente europeu deu um recado categórico aos parlamentares britânicos: “Esse é o acordo. Aceitem, ou haverá o risco do Brexit não acontecer”.

O dia seguinte, que teria a votação do acordo no início da noite, foi de ebulição política em Londres e em todo o país.  Os setores do Parlamento que mais pressionavam pelo hard-Brexit (ERG e DUP, principalmente) batiam cabeça em discussões públicas se recuavam e votavam com o Governo e sacramentavam um Brexit soft, mas garantido no final do mês, ou se mantinham sua posição e seguiam lutando por uma ruptura mais drástica com a UE, o que poderia incluir uma saída do Bloco sem qualquer acordo em vigor – o chamado No-Deal.

Durante a tarde, o advogado geral do Governo Britânico, Geoffrey Cox, soltou um parecer de que a “interpretação flexível” de Juncker e May tinha pouco valor legal e, sob o acordo a ser votado, o Reino Unido ainda poderia ficar sujeito ao problema do backstop na Irlanda. Após o anúncio de sua decisão, vários setores que haviam votado contra o Projeto em janeiro e discutiam apoia-lo agora declararam que seguiriam contra, e Theresa May caminhou para mais uma retumbante derrota na votação em plenário. Ao invés do recorde de 230 votos de janeiro, perdeu por 149. Menos, mas ainda assim uma derrota desmoralizante pra um governo no Parlamento, ainda mais considerando ser o tema central do mandato da Primeira Ministra May.

13/03: Trapalhada do Governo e mais uma derrota desmoralizam ainda mais May e a Direita

No dia seguinte, iria à votação no Parlamento uma Moção, proposta por Theresa May e que teria o apoio de praticamente toda a oposição, descartando a saída de No-Deal, que estava sendo proposta pelos setores mais à direita (principalmente o ERG). A Moção apresentada por May determinava que a Grã-Bretanha não sairia da UE sem um acordo entre as partes nesta data prevista, o dia 29. Como seu Partido se encontra rachado, principalmente com o bloco liderado pelo ERG que, na prática, faz oposição pela direita ao governo, May decidiu “liberar a bancada” para esta votação – ou seja, o Parlamentar Conservador que votasse contra o governo não estaria quebrando nenhum procedimento disciplinar do partido.

Porém, à tarde, Caroline Spelman, parlamentar do próprio Partido Conservador apresentou uma Emenda a Moção, que descartava o No-Deal, não apenas para o dia 29, mas para qualquer data de saída da UE. Como essa não era a linha de May, o governo solicitou que a deputada retirasse a emenda, o que esta atendeu. Entretanto, pelo regimento interno, como a emenda já estava protocolada, qualquer outro parlamentar poderia encaminhá-la, o que foi feito. As votações se deram no início da noite, e esta emenda foi a primeira a ser votada. O governo se posicionou contra a emenda e tentou forçar a bancada Conservadora a derrota-la, mas foi aprovada com uma margem de quatro votos.

Então, May deu um “cavalo de pau” e obrigou todo o partido, com uma “ordem de três linhas” (indicação de voto que, se a bancada não seguir, está sujeita às mais duras sanções no partido): votar contra a Moção que ela mesma havia apresentado. A estratégia do Governo era derrotar sua Moção e, consequentemente, anular a Emenda. Theresa May foi derrotada – ou seja, a Moção originalmente apresentada por ela foi aprovada – por pouco mais de 40 votos. Muitos dos Parlamentares Conservadores anti-Brexit, incluindo ministros de seu Gabinete, votaram contra May apesar da ordem expressa de voto contrário. Nenhum parlamentar foi sancionado, e nenhum ministro demitido de seu cargo, mostrando o tamanho da crise e desmoralização de Theresa May a frente do governo britânico.

ERG e DUP tentaram apresentar uma Emenda que “disfarçava” o No-Deal em um “acordo unilateral”, o que foi derrotado por mais de 200 votos.

14/03: Brexit adiado – Theresa May respira, e joga definição para esta semana

Na quinta-feira, dia 14, a agenda do Governo previa aprovar no parlamento um indicativo de adiamento do Brexit – que ainda deve ser aprovado pelo Conselho da UE, o que provavelmente ocorrerá sem maiores problemas. Setores ligados ao ERG tentaram negociar com governos europeus mais à direita (como Polônia, Hungria e a própria Itália) que vetassem a autorização a tal adiamento – mas não obtiveram sucesso.

O plano do Governo era aprovar o adiamento do Brexit por cerca de quatro meses: de 29 de março a 20 de junho. E, nesse intervalo, tentar aprovar mais uma vez – via uma terceira votação ou mesmo uma quarta tentativa – seu Projeto de Acordo já amplamente rejeitado duas vezes. O Labour apresentou duas Emendas que previa um adiamento maior, para que o conjunto do Parlamento (e não apenas o Governo) pudesse construir outro Projeto de saída do bloco. Estas Emendas foram derrotadas por quatro e dois votos no plenário.

Uma Emenda propondo um segundo referendo foi apresentada pela deputada Sarah Wollaston, ex-Conservadora que agora faz parte do TIG. A Emenda foi criticada como inoportuna até pelas entidades que lutam pela nova consulta, como a pluripartidária People´s Vote (Voto Popular) – que pediu publicamente que não fosse encaminhada nesse momento. O Labour se absteve da votação, e a Emenda foi derrotada por mais de 200 votos. Só serviu para enfraquecer essa alternativa, e foi mais um revés de Theresa May – e para que o TIG e outros partidos pró-UE passassem o resto da semana “denunciando” Corbyn por não ter defendido esta posição.

Por fim, Theresa May conseguiu respirar, especialmente com as vitórias apertadas nas principais votações do dia. Seu plano é reapresentar o Projeto de Acordo nesta semana e, caso aprovado, proceder com a saída do Reino Unido da UE no final de junho deste ano.

Pressão da burguesia e perspectivas: Aprovar o Acordo, com a saída de Theresa May

Não é novidade que, desde o Refendo de 2016, os setores majoritários da burguesia imperialista britânica são contrários ao Brexit – especialmente as versões mais “hard” de ruptura com o bloco europeu. Ela vem fazendo pressão e política desde então para, se não reverter e enterrar a decisão do Referendo, fazer com que a saída britânica do bloco seja o mais “formal” e soft possível – deixando as estruturas comercias e fiscais praticamente do mesmo jeito que estavam antes do processo. Nesse sentido, sua pressão maior no momento é que se chegue logo a uma definição de soft-Brexit, para que acabe a instabilidade política – que inevitavelmente impacta o setor econômico e financeiro.

O “Mercado” queria a aprovação do Acordo na semana passada. Quando o advogado-geral deu o parecer técnico que esvaziava os argumentos políticos de May, a Libra entrou em queda acentuada. Quando o Parlamento descartou a saída No-Deal, a Libra subiu um degrau. Pelo Twitter, podia-se acompanhar as posições da CBI – Confederação das Indústrias Britânicas – reclamando da “bagunça” com que May e o Parlamento vinham conduzindo o processo. Agora, claramente, a pressão da grande burguesia será em aprovar o Acordo e a saída “mediada” em junho – procurando fechar esse processo de instabilidade de uma vez por todas.

Os setores partidários de um hard-Brexit, em sua maioria, sinalizam fechar com o Acordo – pois há de fato a perspectiva de que uma nova derrota de May cause um adiamento indefinido da saída, o que provavelmente desencadearia novas Eleições Gerais no curto prazo e, mais a frente, provavelmente, um novo Referendo. Além disso, o Parlamento europeu terá eleições ainda no primeiro semestre desse ano, e um adiamento maior do Brexit obrigaria o Reino Unido a participar dessas eleições para renovar sua bancada.

Nesse sentido, toda a pressão nos últimos dias tem sido em garantir que os deputados de direita que votaram contra o acordo mudem de posição – e o mesmo seja aprovado nessa semana. Isso evitaria tal adiamento do Brexit, os riscos de não haver Brexit algum e, principalmente, o colapso final do Governo, com a convocação imediata de Eleições Gerais – o que provavelmente levaria o Labour e seu líder Jeremy Corbyn a encabeçar um novo governo. A contrapartida deste acordo seria a renúncia, após o processo, de Theresa May.

Mesmo sendo esse quadro o mais provável, não é garantido que o processo terá esse desfecho. Há um custo político para grupos como o ERG e o DUP, que vieram atacando brutalmente o acordo e a “chantagem” da UE, votarem pelo mesmo. E, como muitas das principais votações têm se resolvido por margens bastante apertadas – pequenas quebras de votos podem ser decisivas.

A Esquerda deve lutar por eleições gerais já, não pela UE

Por um Governo Corbyn, sem Blairistas e a Direita, com programa anticapitalista!

Segundo as pesquisas de opinião, haveria hoje uma leve vantagem na opinião pública pela permanência do Reino Unido na UE, mas isso não significa que tal opção teria uma vitória garantida ou mesmo tranquila em uma nova votação popular. E isso é compreensível, pois mesmo com o país sendo parte da União Europeia, a pobreza e a desigualdade social não param de crescer em toda a Grã-Bretanha.

Estes são o resultado das políticas de austeridade dos últimos governos – que aplicam a receita da Troika europeia de cortes sociais, sucateamento de serviços públicos e privatizações. E mesmo quando governos nacionais procuram aplicar políticas contrárias a esse receituário, a UE é a primeira a tentar impedir que se busquem essas alternativas. Vide o que ocorreu em 2015 na Grécia, após o referendo onde a população definiu enfrentar a austeridade e a Troika – mas terminou traída pelo governo do Syriza. Virar as costas para esses fatos serve apenas para contribuir com o crescimento da extrema-direita na Europa, que vem em muitos casos conseguindo, de forma cínica e mentirosa, ocupar o espaço político de negação da austeridade fiscal imposta pela UE e seus efeitos sociais.

É natural que muitos ativistas, dentro e fora da Grã-Bretanha, enxerguem a permanência na UE e o sepultamento total do Brexit como a melhor resposta contra a extrema-direita. O Brexit foi o evento que inaugurou essa onda de fenômenos à direita da ordem neoliberal tradicional, baseados em fake-news, discursos de ódio e uma ideologia super-reacionária. Mas não é esse o caminho que nos fará ocupar esse espaço e construir uma alternativa de esquerda.

O que permitiu, depois da vitória do Brexit no Referendo de 2016, o crescimento do fenômeno Corbynista, não foi uma defesa apaixonada da UE – mas a afirmação de um perfil e um programa anticapitalistas – expressos nos combates contra as carcomidas estruturas Blairistas do Labour e, principalmente, o Manifesto For the Many, Not the Few. Como já dissemos, é um Manifesto com limitações, que não chega a ser um programa socialista. Mas é talvez o mais avançado, não apenas do Partido trabalhista britânico em décadas, mas também da esquerda internacional com influência de massas atualmente.

A luta principal dos ativistas de esquerda, partidos, sindicatos e movimentos sociais deve ser levar ao fim o falido governo Theresa May. E impedir qualquer outra saída que não a antecipação das Eleições Gerais.

Nessas, lutar por eleger parlamentares comprometidos com o programa anticapitalista do Manifesto, tirando os assentos não apenas dos atuais deputados Conservadores (incluindo os do ERG), mas também dos que defendem as mesmas políticas de forma “envergonhada”, mesmo que ainda sob a bandeira do Labour, como os Blairistas. Caso Corbyn venha a vencer as eleições, será necessário manter e ampliar as organizações independentes dos trabalhadores, para garantir que um futuro governo Corbyn aplique as políticas presentes no Manifesto e, mais que isso, vá além de suas limitações.

Foto: Jay Allen

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