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Ameaça às LGBTI+ no pós-eleição: caça às bruxas no neo-obscurantismo

Por: Carlos Henrique de Oliveira*, de São Paulo, SP

O assassinato político de Marielle Franco, a prisão política de Lula da Silva e a eleição da extrema-direita através da figura de Jair Messias Bolsonaro para a Presidência são os marcos de uma situação reacionária para as pautas de emancipação, direitos sociais e da classe trabalhadora. Diante disso, a população LGBTI+, – assim como a indígena e a negra, sobretudo periférica – encontra-se em situação de desvantagem e perseguição com o aumento da violência LGBTfóbica na sociedade civil e no próprio plano estatal. Agora não somente pela omissão característica das últimas décadas, mas também pelo embate cultural e de costumes baseados numa moral religiosa fundamentalista e que nega, de fundo, o direito à existência das práticas sexuais dissidentes e das identidades de gênero. Isso tudo se alia ao machismo e ao racismo estruturais do país, à violência urbana e policial contra a população pobre e negra, e a tendência de criminalizar os movimentos sociais, principalmente os que questionam as noções de propriedade, acesso à cidade e terra.

Somando-se ao histórico violento do país, onde em 2017 foram assassinadas no Brasil 445 pessoas LGBTI+, e ao dossiê de lesbocídio que aponta São Paulo como o estado que mais mata lésbicas, podemos apontar o exílio político do deputado federal Jean Willys (PSOL/RJ) que foi ameaçado de morte e de estupro à sua mãe, a suspensão do reconhecimento dos nomes sociais de pessoas trans em instituições públicas de Santa Catarina (onde o governador é do PSL, partido bolsonarista), e a reação entusiástica de seguidores da extrema-direita, nas redes sociais, com a notícia do assassinato de Kelly da Silva, a travesti que teve seu coração arrancado por um jovem transfóbico, como indicadores do nível de periculosidade e barbárie para a sobrevivência de LGBTIs no país.

Mas esses fatos são símbolos, arquétipos acabados de algo que teve início com a ascensão do favoritismo de Bolsonaro a preencher o vácuo do PSDB no cenário de polarização política com o Partido dos Trabalhadores (PT), já antes do pleito. Mesmo com as dúvidas que ainda existiam sobre a possibilidade de Alckmin conseguir desbancar o oponente da extrema-direita através do monopólio do tempo de TV na propaganda eleitoral, já era fato sabido até pelas “pedras do caminho” que a pauta moral e de costumes de Bolsonaro, aliado ao grande apelo ao combate à corrupção do juiz Sérgio Moro, à segurança pública militarizada e mais ostensiva, “matando bandido e vagabundos”, já se tornava popular na sociedade.

Através de uma tática eleitoral baseada no mapeamento de perfis psicológicos arquetípicos de milhares de usuários de redes sociais, sobretudo do Facebook e Whatsapp, e com o envio em massa de diferentes tipos de fake news para milhões de pessoas mais suscetíveis a acreditar em tais ou quais mentiras, a população LGBTI+ e os movimentos sociais que defendem suas pautas foram imensamente caluniados, atrelados a planos conspiratórios de dominação mundial, de destruição da família tradicional, do caráter e da tradição judaico-cristã. Ali cavava-se a suspeita sobre nós.

Baseado em delírios ultradireitistas de Olavo de Carvalho, – delírios estes que bebem de fontes como a de Steve Bannon e inclusive é financiado por este grupo internacional de extrema-direita – a cruzada contra qualquer sombra de racionalidade e sensibilidade foi crescendo. Ela foi ganhando corpo nos famosos e capilarizados “grupos de família do zap” e seus congêneres essas ideias, popularizando a tese inventada pelo setor mais reacionário da Igreja Católica no fim dos anos 90: a de que existe uma “ideologia de gênero” que deseja “subverter” a natureza, questionar a naturalidade biológica e “de deveres morais e sociais” entre os diferentes sexos, com o intuito de destruir a sociedade e a família.

A tese da ideologia de gênero foi se sofisticando na extrema-direita, até ser atrelada a supostas conspirações entre os movimentos LGBTI+, feminista, a ONU, movimentos israelitas de esquerda e toda a esquerda mundial, e esse proselitismo “gayzista, comunista e feminista” seria um dos responsáveis pela degradação ética, aumento de violência sexual, corrupção, aborto clandestino e mais uma série de desgraças sociais que foram sendo associadas ao “pecado” da população LGBTI+. Nesse bojo, em especial no Brasil, a população LGBTI+ também foi amplamente associada às religiões de matriz africana, de maneira a demonizar ambas populações e culpá-las por desgraças. Até chegar ao apogeu de associar a desproteção da infância e da adolescência às práticas sexuais dissidentes e às identidades de gênero trans e não-binárias, num clássico do fascismo dos anos trinta. Nisso, a desigualdade social, racismo, pobreza, concentração de renda, precarização do emprego são realizações estruturais descartadas no pensamento ultradireitista que se populariza, num movimento de tentar caçar culpados por todas essas desgraças que não sejam o capitalismo e muito menos os detentores do capital.

Este pensamento é muito semelhante ao predominante no Medievo europeu e até mesmo ao pensamento colonizador quinhentista: a de que existe “culpados” pelas desgraças sociais e intempéries da natureza, que seriam sinais da “mão de Deus” castigando a sociedade por causa do “pecado” da mesma. E o apelo ao fantástico, ao ilógico, é algo muito presente nas igrejas neopentecostais, cada vez mais populares entre a população, e que cresceram sem nenhum revés nos governos petistas e até mesmo fizeram parte da base dos governos FHC, Lula e Dilma. Ao ligar programas de TV, você percebe que este pensamento pré-iluminista é resgatado, tanto com a cura de doenças e infecções complexas como o HIV/Aids somente pela fé, fidelização à Igreja e o abandono do tratamento medicamentoso, como na explicação de problemas sociais através da lógica do castigo divino ao pecado.

Agora, como antes, é essencial ao sistema vigente, capitalista, utilizar-se de pautas morais e de costumes ora para pavimentar a acumulação primitiva do capital, como foi com a escravização e a colonização, ora para encobrir para a sociedade civil ações econômicas e trabalhistas impopulares, ora para justificar, através de opressões históricas e provenientes das sociedades estamentais, a maior exploração e até mesmo o descarte de alguns grupos populacionais – o que Achille Mbembe chama de política de morte, ou Necropolítica. Isso tanto através da racialização, da ideologia do racismo, quanto pela idéia do gênero na sociedade patriarcal somada à demonização das sexualidades. E quem auriu o poder brasileiro e em outros países sob a bandeira da extrema-direita atual segue esse modelo em sua versão completa.

Com a expansão de tais pensamentos no senso comum, as fake news tiveram campos férteis para germinar no Brasil. E junto com o aumento da moral conservadora, tornou-se muito fácil colocar como principais alvos de boatos e de acusações falsas e terríveis a figuras LGBTI+ como o Jean Willys e a Pablo Vittar, por exemplo. A partir daí, o país da escravidão, o país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo (mesmo sendo o campeão em consumo de pornografia trans no mundo) deu um salto de qualidade para o que podemos chamar de LGBTfobia eleitoral, que consistiu no uso deste ódio já existente para reavivar na sociedade tanto uma suspeição, como um medo e ódio agressivo às LGBTI+, principalmente às que se assumem publicamente.

O pensamento da extrema-direita sempre beirou ao anti-racionalismo e ao saudosismo da do absolutismo monárquico ou até mesmo da Idade Média. Na França de Vichy, nos anos de ocupação nazista, o Marechal Petáin dizia que a desagradável página de 1789 precisava ser virada, muitas vezes sendo apresentado pela mídia estatal como um “Marechal Joana D’Arc” – isso mesmo, a Santa Joana D’Arc – tendo como inspiração, dentre outros, do filósofo Charles Marraus, que era monarquista, defensor do legado de Luiz XVI e é o teórico que foi ressuscitado por Steve Bannon para retroalimentar a nova “internacional da extrema-direita”, que vem sendo chamada de “populismo de direita”. Esta ideologia é elucidada num trecho do artigo de Marc Olivier Baruch, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), no livro “A construção social dos regimes autoritários” de Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat (2010, p. 51):

Expiação e redenção apareciam frequentemente no discurso de Vichy, que, ao contrário, valorizava a necessidade do país de virar a página, longa sem dúvida […] mas não eterna do Iluminismo de 1789. Era os valores “eternos” que se precisava retornar, e foi uma das grandes ambições da Revolução Nacional tentar construir uma política baseada nesses valores.

Maurras foi um dos grandes inspiradores dessa corrente de pensamento. No momento em que era preciso definir as opções iniciais, o regime tomou de empréstimo a denúncia virulenta do intelectualismo, do individualismo e do igualistarismo. O primeiro, que conduzia a um ensino baseado no primado da razão, como concebia a República, era — mais do que a incapacidade do alto-comando militar — apresentado como o veneno mortal que quase levara a França a perecer.

O que Petáin queria dizer, fazendo coro a Marraus é que todo o lema básico do humanismo que foi se moldando após o Iluminismo deveria ser descartado para dar lugar ao pensamento quinhentista da colonização e da monarquia absolutista. É um enfrentamento entre romantismo e iluminismo na gestão da ordem mundial.

Mbembe (2018) vai falar justamente disso, desse elo entre a necessidade atual de expropriação extrema e de lucrar com a morte e a precarização, e denuncia, décadas depois, o que chama de necropolítica, como a principal faceta do estado de exceção, que completa a ideia eugênica de que só os mais “aptos” sobrevivem – algo muito a ver com o ideal fascista, mas também que se encaixa no que se espera do neoliberalismo (e por isso não há tanta incoerência em ressurgir o nacionalismo e o fascismo a essa altura, pelo contrário). Contudo, Mbembe também faz o alerta que Petáin fez, só que numa perspectiva antirracista e anti-neoliberal, da destruição do próprio projeto moderno de “humano” cunhado pelos europeus, trazendo as suas teses de “fim da era humanista” e do “devir negro” através da precarização da vida imposta pelo avanço do neoliberalismo. É o retorno do estamento e da sociedade sem nenhuma mobilidade que as classes dominantes (ao menos boa parte dela) querem.

Entretanto, tamanha regressão só é possível, como dizia Gramsci, se o Estado anterior ao bonapartista ou fascista, se a burocracia estatal, o establishment e o Judiciário colaborarem, ou se omitirem, como explica Gilberto Calil no artigo “Gramsci e o Fascismo: A cumplicidade do Estado e da Justiça”, disponível aqui. Não é difícil de se pensar no que acontece quando tal doutrina se mescla com o autoritarismo brasileiro, que possui um racismo estrutural na sociedade, um pensamento escravocrata nas relações sociais e de trabalho, e um pensamento machista e exclusivamente cis-heterossexual, não é mesmo? Dessa mescla, nasceu a grande fake news do “kit gay”, que foi um dos carros-chefes da campanha bolsonarista, levada até mesmo ao Jornal Nacional. A mentira do kit gay e da mamadeira peniana caem como a “mão na luva” para incitar o ódio à população LGBTI+ e atrelar nossas pautas de educação sexual e de gênero (e as pautas de sensibilização à diversidade) à desproteção da infância, a uma maquiavélica e pretensa manipulação da infância para instaurar o “autoritarismo gayzista” e o que eles chamam de “heterofobia” (um termo bizarro).

A indicação da pastora Damares Alves para ocupar a pasta do Ministério dos Direitos Humanos, Mulheres e Família simboliza a vontade política do novo governo de se aplicar tais pressupostos reacionários para a pauta dos direitos civis. Próxima ao ex-senador Magno Malta, defensor do Estatuto da Família e do Estatuto do Nascituro, ambos estatutos que, respectivamente, desprotegem as famílias não-tradicionais (as que não são compostas pelo núcleo formado por pai, mãe e filhos) e que proíbe o aborto em qualquer situação, até mesmo em casos de estupro (algo que hoje é permitido por lei), Damares Alves também é defensora mor da infância, mesmo tendo acusações pouco explicadas com a retirada de crianças indígenas de aldeias (afinal, a população indígena tradicional também é pagã).

Ao declarar que agora “inicia-se uma nova era no país onde menino veste azul e menina veste rosa”, e ao declarar que a educação de gênero e sexualidade não deve existir na escola, condenando a Holanda por supostamente “sexualizar bebês e ensinar-lhes a masturbação”, a ministra Damares aponta para o que seria as agendas dos direitos humanos do atual governo brasileiro: o não-reconhecimento das individualidades e das identidades trans e não-binárias, o tratamento das sexualidades dissidentes como algo imoral, e portanto, inadequado para crianças e adolescentes até mesmo como assunto não-erótico e, por fim, a associação cabal entre as pautas LGBTI+ com a sexualização de crianças e até mesmo com a pedofilia. Isso, além de perigoso para incitar o ódio da sociedade civil, abre portas para que soluções disfarçadas de “proteção à infância e à família” sejam, na verdade, maneiras de retirar direitos já conquistados pelas LGBTI+.

Essas diretrizes estão presentes em outras pastas importantes para salvaguarda de nossos direitos. O ministério da saúde, por exemplo, foi ocupado por Luiz Henrique Mandetta e os primeiros atos da nova chefia do Ministério foram: tirar de circulação a cartilha de prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e de HIV/Aids destinada a homens trans e exonerar a diretora do Departamento das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV) Adele Benzaken. Após a repercussão negativa de ambas ações, o ministério tentou dar justificativas técnicas às ações, alegando que a antiga diretora do DIAHV seria chamada para auxiliar em outros assuntos da pasta, mas a própria Adele desmentiu, dizendo que “foi considerada inadequada” pelo novo ministério devido à cartilha trans e as campanhas de prevenção com linguagem focada na diversidade. Antes da exoneração, Mandetta afirmou que a prevenção do HIV deveria contar com campanhas que “não desrespeitem a família”, e ainda questionou a universalidade da distribuição de medicações anti-HIV naquilo que chamou de “banalização” da doença entre jovens.

É importante notar que ainda hoje a epidemia assola o Brasil. Em 2017 morreram cerca de 11,5 mil pessoas em decorrência da aids, sendo que cerca de 60% são negras e em torno de 2,8 mil mortes são de pessoas LGBTI+. Ainda há a prevalência de cerca de 40 mil novos casos de HIV por ano, e num momento de aumento da pobreza isso se resvala em outras doenças, como a tuberculose e a Sífilis. E dentro desse contexto, o ministro fala em enxugamento da máquina, “racionalização” da distribuição de recursos para o tratamento anti-HIV, e uma série de outras medidas, como o de desestímulo de políticas à população trans (vale lembrar que em São Paulo, por exemplo, o ambulatório de travestis e pessoas trans para o processo transexualizador funciona no CRT DST/Aids de São Paulo, sob a mesma coordenadoria).

O ministério da educação, como outro exemplo, foi ocupado por Ricardo Vélez Rodrigues, um acadêmico seguidor das ideias de Olavo de Carvalho e Charles Marraus. Além de ter um plano de “limpeza ideológica” para acabar com o que ele chama de “marxismo cultural” na educação pública e no ensino superior, realizando o que ele promete ser uma cruzada aos pensadores de esquerda e do progressismo, desafiando o direito constitucional da liberdade de cátedra, ele já extinguiu a Secretaria de Diversidade do Ministério da Educação, levando a termo a extinção das discussões sobre sexualidade e gênero nas escolas, algo que previne as violências LGBTfóbicas e machistas. Em recente entrevista afirmou que “a ideia de universidade para todos não existe” e que deve “ser reservada à elite intelectual”, e ainda criticou a “ideologia de gênero” que “ensina menino beijar menino e menina beijar menina”.

A chave de pensamento da “desproteção da infância” é algo que se repete, e vem sendo utilizada para perseguição às pessoas LGBTI+ no mundo todo, para além do modelo clássico de simplesmente punir as sexualidades e gêneros dissidentes por desrespeito a dogmas religiosos, como nas sociedades teocráticas da atualidade. A Rússia, por exemplo, aprovou uma legislação que proíbe a manifestação pública de afetividade entre pessoas LGBTI+, alegando proteção à infância e à adolescência de comportamentos “imorais”, na prática criminalizando novamente as sexualidades e identidades que fogem da heterormatividade, e empurrando essa população para a clandestinidade e ao aumento cada vez maior da violência da sociedade civil e de milícias paramilitares, que atacam e matam com o silêncio do Estado ou, como na Chechênia, com campos de concentração e extermínio.

Há o exemplo, também. de lugares onde existem bolhas “gayfriendly”, espaços onde há a tolerância de LGBTI+, mas uma tolerância atrelada muito à possibilidade de consumo, à classe social ou a origem étnico-racial. Um caso emblemático é o Estado de Israel, que devemos inclusive destacar a proximidade de Bolsonaro com Netanyahu, quebrando a tradição do Itamaraty de neutralidade com relação à Palestina.

Israel possui sua bolha “gayfriendly” em Tel Aviv, com limitações que o próprio apartheid realizado com o povo palestino (e seu consequente encarceramento em regiões militarizadas e as mortes de Gaza e Cisjordânia) impõe, e circunscrita muito naquela cidade… Várias/os ativistas, como Berenice Bento, chamam tal realidade de pinkwashing, termo que se remeteria a uma “lavagem rosa” para dar ares de democracia civilizada do Estado de Israel. Parte da própria comunidade LGBTI+ israelense alerta para o desrespeito a direitos básicos a ela imposto nos interiores e até em Jerusalém, inclusive com mortes já registradas ocasionadas por religiosos ortodoxos. Isso exemplifica que a criação de pequenas bolhas de “lugares protegidos” para pessoas LGBTI+ é insuficiente, por não trazer uma ação coletiva de proteção e mobilização social para manutenção e aumento de direitos, e, também, por estar atrelada a uma questão de estratificação social do consumo.

Internacionalmente já temos inúmeros exemplos de fechamento de regimes, seja em ditaduras clássicas, teocracias ou regimes democráticos militarizados, de perseguições que se ampliam ou se mantém à população LGBTI+ e que podem servir de modelo para a aparente vontade política do novo governo de diminuir direitos dessa população no Brasil.

E agora, o que fazer?

A situação é de gravidade, e é sim defensiva. A mudança da subpasta LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, Mulheres e Família, para a Secretaria de Proteção Global é uma mensagem de que o governo só apagará incêndios para a população LGBTI+, ou seja, só agirá num espectro de agir sobre a violência LGBTfóbica após ela acontecer. Toda a ideia de prevenção à violência através de políticas públicas focadas na educação sexual e de gênero, sensibilização da população e criação de programas de incentivo ao ativismo em direitos humanos cai por terra, porque resvala na já citada “desproteção à infância e adolescência”, segundo a percepção de família tradicional e do comportamento LGBTI+ como algo imoral.

Isso posto, a necessidade de se articular pelas bases é imperativa, sem se iludir com diálogos vazios com o governo, que não passam de seminários, encontros, fotos e resultam, logo em seguida, em políticas contrárias a nós, ou declarações transfóbicas. Por outro lado, a  unidade com setores que ainda queiram conversar com Damares não pode ser freada por sectarismos, devido à gravidade do momento. Estamos numa situação bem delicada, como a minha avó Altina dizia: estamos pisando em ovos. Indico inclusive a leitura do texto de Lucas Brito, sobre a mudança da subpasta no ministério dos Direitos Humanos, no Esquerda Online, disponível aqui.

O embate que deve ser feito é, para além do combate aberto aos assassinatos e dos cortes na saúde e educação que nos atinge diretamente, também contra o que Berenice Bento chama de LGBTfobia cordial, que copia o racismo à brasileira. O “racismo cordial” e a “LGBTfobia cordial” se caracterizam pela possibilidade de convivência pacífica, com a condição de que “a/o excluída/o não ouse cruzar determinadas linhas e se contente com a ficção da igualdade legal”. Com a condição de LGBTI+ poder existir desde que “ninguém nos impeça de chamar meninas de princesas e meninos de príncipes”, como diz a Damares. Ou poder existir sem acesso ao ensino superior porque “a universidade não é para todos”, como diz o Veléz Rodrigues, do MEC.

O ódio violento e os ataques acontecem quando tais excluídas/os ultrapassam essas fronteiras, e “quando a luta se dá nos marcos do reconhecimento, os conflitos se instauram”. Estamos num momento em que os poucos direitos que adquirimos cutucou a ira dos setores mais reacionários da sociedade, que agora estão no poder. Isso nos obriga a pensar em medidas urgentes e em unidades com diferentes segmentos, para garantir a sobrevivência do movimento LGBTI+.

No entanto, não podemos nos paralisar pelo medo. O governo ainda não conseguiu consolidar o programa protofascista, ou neofascista. Ainda estamos no início do governo, e o momento de barrar e tais retrocessos, inclusive nos aliando a pautas econômicas e trabalhistas como à contrária à Reforma da Previdência e o desmonte do SUS. Precisamos encontrar as brechas e disputas de fraços no próprio governo, aproveitar a irritação de militares com os olavistas do governo, as lutas intra-burguesas, a relação com escândalos como o de Queiroz e das milícias do Rio de Janeiro (milícias essas que mataram Matheuza e Marielle Franco), e pautas que vão ser tocadas nesse ano.

A divulgação pela Rede Globo, por meio da Lei de Acesso à Informação, sobre a pesquisa interna feita pelo Ministério da Educação sobre o ensino de gênero e sexualidade nas escolas é um saldo positivo para nós. A pesquisa encomendada ao Instituto GPP mostra que 55,8% dos brasileiros concordam com o ensino de gênero e sexualidade nas escolas, em contraposição aos 38,2% que são contrários e 6% que não souberam responder. Além disso, 62,6% da população não sabe explicar o que é ‘ideologia de gênero’. Isso precisa ser aproveitado e se transformar numa campanha intensa de prevenção à violência contra LGBTI+ na população, apelando inclusive para o emocional e a empatia das pessoas.

Além disso, algumas agendas exigirão nossa preparação, para não ficarmos somente a reboque dos ataques provindos dos ministérios bolsonaristas. Entre fevereiro e março o STF, muito provavelmente, se debruçará sobre a criminalização da violência contra LGBTI+ (tramitando no STF ainda sob o termo “criminalização da homofobia”) e nós precisamos disputar todo esse processo. Devemos pautar qual tipo de criminalização queremos, para que não incorra no encarceramento em massa da população negra e nem na lógica exclusivamente punitivista, que não melhoraria a vida das LGBTI+ negras e periféricas.

A Lei Maria da Penha, por exemplo, possui todo um arcabouço institucional e de diretrizes para a criação de Núcleos de Prevenção à Violência nos serviços públicos, a notificação compulsória da violência doméstica nos serviços de saúde, o encaminhamento do agressor para acompanhamento psicológico e reeducação sobre gênero, a criação de Núcleos e Centros especializados no atendimento à Mulher, a instituição de secretarias e coordenadorias da Mulher nos estados e municípios, e ações de prevenção à violência e do machismo nas escolas. Uma tipificação penal da LGBTfobia só fará sentido se ela também provocar as instituições brasileiras à prevenção da violência, se admitir que o raça, a classe social e o gênero também devem ser considerados para o estabelecimento de leis, jurisprudências, súmulas e políticas públicas, se tiver diretrizes semelhantes no que tange ao ódio às LGBTI+. E com certeza, caso o STF não adie mais uma vez o julgamento da criminalização, este será um assunto com ampla repercussão nacional.

Além disso, tendo em vista o número já muito alto para o mês de janeiro de 2019 de feminícidios e assassinatos de pessoas LGBTI+, juntamente com a escalada da violência política e LGBTfóbica durante e após as eleições de 2018, há a necessidade de se criar Redes de Proteção à vida de LGBTI+, forjando uma unidade entre ativistas, coletivos, movimentos sociais, entidades da classe trabalhadora, instituições parceiras e pessoas aliadas à causa, para que exista uma articulação de apoio mútuo nos campos jurídico, político, cultural e, sobretudo, da segurança pública.

A criação dessas redes se torna urgente devido à ascensão de perseguições, ameaças de atentados em espaços de sociabilidade, o aumento do ódio de segmentos da população, a difusão de notícias falsas sobre a comunidade LGBTI+, a desproteção cada vez maior do Estado na prevenção e punição das violẽncias praticadas contra nós e, também, o desmonte de políticas de saúde. É de suma necessidade ter mapeamento de entidades, serviços, gestores públicos e autoridades que sejam simpáticas e aliadas à pauta, ter uma rede de advogados ativistas, pessoas pensando em comunicação com a sociedade e com os coletivos e associações das periferias, em autodefesa e defesa coletiva a ataques e ameaças, articulação entre movimentos, e até mesmo em rotas de exílios para momentos mais sensíveis de perseguição e fechamento de regime.

Para além disso, tais redes de proteção precisam estar conectadas a brigadas anti-fascistas, que também vem sendo nomeadas, no último período, como “Brigadas pela democracia”. Esses grupos devem pautar tanto a proteção dos ativistas e das pessoas mais vulneráveis à nova política de Estado como as ações políticas de pressão social para manutenção dos direitos democráticos, dos direitos sociais, previdenciários e trabalhistas, contra o genocídio da população negra e a segurança pública com lógica de guerra, e o estabelecimento de uma unidade, pelas bases e de maneira territorializada, de todo o campo progressista e democrático da sociedade civil.

Como diz Angela Davis, em seu livro “A liberdade é uma luta constante”, precisamos lutar contra “o insidioso individualismo capitalista”, dando prioridade para as ações coletivas para mudar as barbáries do mundo, e isso passa por, inclusive, não cair nas armadilhas da mídia burguesa de nomear heróis e individualidades, pois, segundo ela, nenhum heroísmo individual consegue, sozinho, articular mudanças na sociedade; somente os movimentos sociais organizados e a ação coletiva, em massa, consegue pressionar governos e sociedades a ampliar direitos e mudar a realidade. E somente aliando as pautas de raça, gênero e classe social, enxergando essas questões como inseparáveis para a exploração do capitalismo, é que conseguiremos encontrar esforços para e horizontes de construção dum novo mundo.

*Carlos Henrique de Oliveira é militante do Núcleo LGBT da Resistência em São Paulo, SP.

 

REFERÊNCIAS

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