Um mês do bárbaro, covarde e trágico assassinato de Mestre Moa do Katendê. Moa foi esfaqueado 12 vezes por Paulo Sérgio Ferreira de Santana, após uma discussão política em um bar de Salvador na noite de 7 de outubro, ao final do primeiro turno da eleição.
Réquiem a Mestre Moa do Katendê
O inquérito realizado pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e encaminhado ao Ministério Público (MP) apontou o motivo do crime: a “discussão político-partidária”. Segundo o inquérito, Paulo, ao saber da preferência política de Mestre Moa por Fernando Haddad (PT), pagou sua conta no bar, foi em casa e retornou com a arma do crime.
Mestre Moa era um guardião da cultura afro-brasileira, um sábio dos encantamentos emanados dos atabaques, hábil com as pernas na dança e capoeira, artesão e poeta, um verdadeiro intelectual orgânico do povo negro. Sua morte precisa ser encarada como uma perda irreparável e dessa tragédia precisamos tirar lições importantes. Não por acaso temos acordo com Carlos Prozato e Paulo Magalhães quando alertam, em documentário, para o fato de que Moa foi a primeira vítima.
Bolsonaro: um racista declarado no controle do país
Em primeiro lugar precisamos entender que vivemos um novo momento político, social e cultural no Brasil marcado por um tsunami conservador, elitista e racista. As diversas frações das classes dominantes brasileiras demonstraram, mais uma vez, que não estão dispostas a diminuir seus privilégios como aceitar as políticas de ações afirmativas nas universidades, demarcação de terras para quilombolas e direitos para as trabalhadoras domésticas.
Como consequência desse momento o país elegeu um racista como presidente. Ao longo dos anos Jair Bolsonaro (PSL) deu declarações preconceituosas, racistas e xenófobas. Durante a campanha o presidente continuou apresentando sua visão de mundo reacionária. É a primeira vez, pelo menos desde a redemocratização, que teremos um presidente abertamente racista, e isso, por si, implica numa mudança de estratégia para os movimentos negros.
Mudanças na realidade exige mudança na estratégia dos movimentos negros
O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão em 1888. Mas somente na década de 1990, sob a égide do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), admitiu-se oficialmente, pela primeira vez, que o Brasil era um país racista. O tráfico de escravos e os trabalhos forçados de milhões de africanos nas Américas foi um empreendimento desenvolvido pelos Europeus e que deu as bases para o capitalismo. Na contra mão da história, Bolsonaro declarou que não acredita que a escravização do povo negro foi realizada e patrocinada pelos europeus. Essa ideia tem como objetivo concreto negar qualquer possibilidade de reparação histórica, política, econômica e social. Não por outro motivo o programa de governo do presidente eleito é contra as cotas nas universidades e qualquer forma de reparação.
Logo após a confirmação da sua vitória eleitoral Bolsonaro apresentou duas ideias importantes para compreender seu pensamento racial. A primeira é que o Brasil, só após os governos do PT, foi dividido entre brancos e negros. Essa é uma ideia ancorada no caduco, mas eficiente, mito da democracia racial e que nega o racismo existente no país. Diversas vezes, durante a campanha, Bolsonaro apareceu ao lado de um homem negro com a camisa minha cor é o Brasil. Daí pode-se inferir que o novo presidente do Brasil negará as desigualdades sócio-raciais do país para ampliar o racismo.
As classes dominantes sempre tentaram passar a ideia de que no Brasil existia uma democracia racial, ou seja, que as tensões raciais do período escravocrata foram superadas por uma relação harmoniosa entre brancos e negros, o que fazia do Brasil um experiência racial única no mundo, diferente dos EUA e da África do Sul, onde vigorava segregação racial e/ou arcabouço jurídico racializado. Entretanto uma olhada nas comunidades periféricas e nos presídios brasileiros demonstram que as chagas da abolição tardia seguem abertas e que a profunda desigualdade social também é racial.
A segunda ideia de Bolsonaro que precisamos compreender é sua proposta para segurança pública. Na primeira oportunidade, após a eleição, o presidente eleito declarou que iria pacificar o Brasil como Duque de Caxias, patrono do Exército brasileiro: o algoz das revoltas liberais no século XIX, destruidor da Balaiada no Maranhão e genocida na Guerra do Paraguai. Os graves problemas da segurança pública serão aprofundados com a promessa de mais repressão e violência. A juventude negra, que hoje paga com a vida em nome da estratégia falida da guerra às drogas, será ainda mais abatida. Os governadores eleitos do RJ e SP, ambos apoiadores de Bolsonaro, já declararam que as polícias terão licença para matar.
Além da ampliação da repressão estatal a campanha de Bolsonaro também fez surgir um fenômeno novo: a ação violenta de grupos e indivíduos motivados por ódio contra mulheres, negros e LGBTs. Essas ações fascistas são realizadas com a conivência do “mito”. Ao ser questionado sobre a facada em Mestre Moa o então presidenciável disse que não tinha como controlar seus seguidores.
Consciência negra, memória das lutas e resistência: notas para reorganizar o movimento
Nós, negros e negras, não podemos tratar Bolsonaro como mais do mesmo. A premissa de que o Estado, para nós, sempre foi repressivo e assassino é verdadeira. Porém precisamos entender que a eleição de um fascista agrava de maneira qualitativa o racismo e nos impõe novas estratégias para enfrentar a ofensiva do novo governo.
A defesa da vida da juventude negra e das cotas nas universidades serão fundamentais daqui pra frente. Precisaremos aumentar nossa capacidade de articulação com outros movimentos sociais em defesa das liberdades democráticas e direitos sociais. Estes dois temas serão os alvos principais do próximo governo no que toca aos negros e negras.
Temos uma longa trajetória de resistência ao genocídio no Brasil. Os quilombos, as associações abolicionistas, os terreiros de candomblé, a capoeira, o Teatro Experimental do Negro, o feminismo negro, a Frente Negra Brasileira, os blocos afros, escolas de samba, afoxés e maracatus, MNU, o movimento Hip Hop, os grupos de estudantes negros nas universidades e o slam das minas são todos, cada um da sua forma e no seu momento histórico, afirmações da nossa negritude perante os ataques racistas do Estado brasileiro.
É hora de defender as conquistas que tivemos no período anterior e estancar o sangue que jorra nas periferias. Vamos ter que pensar coletivamente nossas novas estratégias e um arco de alianças com os demais setores explorados e oprimidos. O movimento negro pode cumprir um papel preponderante e decisivo na luta contra Bolsonaro. Nossa existência após quase três séculos de escravidão demonstra que antes de tudo somos resistência.
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