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OPRESSÕES

Série Quilombo dos Palmares: resistência negra à sociedade colonial escravista – parte I

Por: André Freire, colunista do Esquerda Online
Apresentação

Neste novembro, quando lembramos do Dia da Consciência Negra, o Portal Esquerda Online apresenta uma série de três artigos sobre a relevância histórica do Quilombo dos Palmares.  Esta pequena série é apenas uma parte dos materiais que serão publicados sobre a luta contra o racismo no Brasil e no mundo, durante as próximas semanas. Palmares foi o principal marco inaugural da resistência negra a sociedade colonial escravista, implantada por Portugal nas suas possessões em solo americano. A primeira parte da série é dedicada à discussão sobre a resistência negra na América portuguesa. A originalidade e a importância da formação do Quilombo dos Palmares é discutida na parte II. Por último, no terceiro parte, e a título de conclusão, é discutida a relação dialética entre Palmares e a origem africana da maioria dos membros fundadores; e o ainda necessário reconhecimento do Estado palmarino na História brasileira. As referências bibliográficas serão publicadas ao final da Parte III, no último artigo.

Parte I – A resistência dos negros na América portuguesa

A economia colonial esteve assentada, em todo seu período, no trabalho escravo negro. O sistema escravista brasileiro até conviveu com outros tipos de relações de trabalho, como uma pequena parte de trabalho livre assalariado, especialmente na fase do Brasil imperial. Mas, estas relações sempre foram subordinadas à relação de trabalho absolutamente hegemônica, que foi a escravidão.

Dominava toda a sociedade um sistema escravista, ou, em outras palavras, um sistema de produção social baseado no trabalho escravo. Os proprietários dos meios de produção – terras, matérias-primas, instrumentos de trabalho – eram também proprietários força de trabalho, constituída de trabalhadores mantidos em estado de escravidão“ (FREITAS, 1978, página 21).

A condição social do negro no Brasil colonial era equivalente a uma mera propriedade, um animal, “sem alma”, apenas um objeto para produzir e gerar lucros cada vez maiores para os seus senhores. Por exemplo, as Ordenações Filipinas, recompiladas no período da União Ibérica, regulava o comércio de escravos como parte do capítulo dedicado aos animais.

Esta condição ganha contornos ainda mais dramáticos e cruéis nos Engenhos de cana-de-açúcar, onde o negro escravizado é submetido ao trabalho intensivo, com jornadas excessivas e extenuantes, a maus tratos, mutilações e tortura. A situação era tão grave, que eles possuíam uma expectativa de vida, em média, de no máximo uma década ou ainda menos, cinco anos, se trabalhassem direto na lavoura.

A minoria de escravizados que conseguia sobreviver a essas condições e ultrapassava a idade de trinta anos, era considerada improdutivo por causa de suas péssimas condições físicas. A maioria destes escravizados acabava sendo alforriada, e vivia na completa miséria nos centros das províncias.

Havia também os casos mais cruéis e absurdos, onde estes escravizados considerados improdutivos e um “peso morto” foram simplesmente assassinados pelos senhores de engenho.

Foi contra esta condição, em primeiro lugar por de ter sido retirado de suas terras na África e, em segundo lugar, por ter sido colocado na condição de escravo em outro continente, que assistimos um número expressivo de revoltas, das mais variadas formas e dimensões, marcando a resistência do povo negro contra sua condição de escravo e contra o sistema colonial.

A historiografia conservadora relativa ao período colonial sempre procurou diminuir o papel do negro na construção desta sociedade. Seja diminuindo seu papel na produção da riqueza ou ainda, simplesmente, ignorando a resistência permanente que os negros protagonizaram contra a sua condição de escravo.

Esteve sempre presente a ideia de progresso nas Colônias, associado a benfeitorias realizadas pela colonização europeia. Onde sempre foi destacado o papel preponderante dos grandes proprietários de terras, vindos da Metrópole ou sendo descendentes diretos de europeus, a frente da construção da economia colonial.

Várias ideologias que buscavam justificar ou, de alguma forma, amenizar a escravidão foram sendo criadas. Sempre apontando para uma pseudo-superioridade da raça branca em relação à negra ou indígena.

Uma das ideologias muito presentes foi uma tentativa de associar às dificuldades de desenvolvimento econômico e social das províncias coloniais a existência e crescimento da mestiçagem do branco europeu, em primeiro lugar, com os nativos indígenas e, principalmente, com os negros africanos.

Os mestiços, especialmente os “mulatos”, mesmo quando conseguiam a alforria e algum desenvolvimento profissional ou econômico, nunca se libertaram de sua condição de “meio branco meio negro”, vivendo sempre como seres inferiores à elite branca e senhorial da Colônia.

Posteriormente, outra ideologia muito difundida, foi à busca por dar um amparo científico para a escravidão, defendendo a necessidade do “embranquecimento” da população, como uma das condições para que finalmente nossa região encontrasse o caminho de desenvolvimento.

Nada mais falso, pois ao invés de identificar o atraso econômico, político e social de nossa formação como Nação a própria existência de mais de trezentos anos de escravidão, quis explicar o nosso atraso através da presença do negro africano. Apenas mais uma ideologia racista, que tinha o objetivo de legitimar a escravidão e apagar o papel central do negro na construção de nossa economia e de nossa cultura.

Uma das ideologias mais fortes sobre o período da escravidão, que permanece até hoje muito presente, é que de alguma forma ela teria sido atenuada, devido a uma relação de “consentimento mútuo” nas relações sociais, entre os senhores de engenho e os escravizados.

Esta ideologia buscou negar o antagonismo social entre senhores de engenho e escravizados, passando a ideia de uma integração entre as duas principais classes sociais do período colonial e imperial de nossa formação.

Essa foi uma das conclusões, por exemplo, da leitura de obras importantes, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, um dos ícones do discurso da democracia racial na sociedade brasileira.

Escravidão e conflitos sociais

Ao contrário de uma situação de integração, o que realmente marcou de forma permanente a história da escravidão foi um profundo conflito social, marcado por um lado pela exploração dos senhores de engenho e pela Coroa portuguesa sobre o trabalho do escravizado, e por outro pela resistência dos negros, a todo o momento, contra essa condição desumana.

O escravo sempre teve duas opções no contexto do seu cotidiano: ele poderia compor-se ou rebelar-se. Eram duas escolhas nitidamente diferentes, mas ambas implicando em como se localizar em face da dominação senhorial, no que se teria estratégias de sobrevivência diferenciadas a partir de uma mesma condição. O fato geral da dominação existia, mas a atitude com relação a ela não seria uniforme, com alguns partindo até mesmo para a coonestação, gerando a figura patriarcal do negro bom …, por exemplo, para a Casa Grande.  Por outro lado,  reação também não poderia ser considerada como uniforme e o Quilombo poderia ser visto como o topo da radicalização do processo do enfrentamento.” (ALMEIDA, 2001).

Com uma visão ampla, podemos ver que a resistência do negro a escravidão aconteceu de diversas formas e dimensões, principalmente: nas fugas individuais ou coletivas, na formação dos Quilombos, no assassinato de senhores de escravos e seus feitores e na participação – em maior ou menor grau – em rebeliões políticas contra o sistema colonial. Houve também outras formas mais desesperadas: como abortos forçados de mães escravizadas e suicídios individuais ou coletivos.

Na fase da Colônia, assim como na fase imperial, os negros – sejam como escravizados ou libertos – tomaram parte ativa nas principais rebeliões contra a autoridade constituída. Podemos citar alguns exemplos: Malês, Farroupilhas, Balaiada, Cabanagem, Sabinada, entre tantas outras. Inclusive, muitos escravizados conquistaram liberdade na região meridional da Colônia, entre os anos de 1835 – 1845 – o período da existência República Farroupilha.

A reação mais geral foi, entretanto, o quilombo” (CARNEIRO, 1966) – na construção dos Quilombos assistimos a forma de resistência mais difundida e permanente. Foi encontrada em praticamente todo o período em que durou a escravidão, e se espalhou em todo o território da Colônia, e depois também na fase imperial. Os Quilombos se transformaram assim na principal marca da resistência permanente do negro contra a escravidão.

Na fuga do cativeiro é possível identificar um primeiro despertar da consciência contra a sua condição de escravo. É ainda um estágio preliminar, na maioria das vezes individual, embora tenham acontecido muitas vezes fugas já organizadas coletivamente. Mas, a fuga já pode ser interpretada como uma negação inicial da sua condição de escravo, imposta pelo senhor, especialmente nos Engenhos de cana-de-açúcar.

A fuga era a única forma de libertação que concebiam e nisso se pareciam certamente aos escravos de todos os tempos. Assim, uma vez consumada a evasão nada lhes afigurava mais importante que evitar a reescravização e sobreviver a luta contra a natureza. Mas se a tendência à insulação sempre foi característica das rebeliões escravas, também é verdade que no processo mesmo da luta pelo domínio da natureza e contra as tentativas de reescravização eram insensivelmente arrastadas a conflitos com o inimigo e à incitação de outros escravos à rebelião.” (FREITAS, 1978).

Este estágio inicial de consciência, de ser um “escravo fugido”, muda qualitativamente quando estes indivíduos “fora da lei” se propõem a organizar e se organizar num Quilombo. De “escravos fugitivos” eles passam a Quilombolas.

Como Quilombola, este ex-escravizado passa ser sujeito ativo de sua transformação, não só da sua condição, buscando preservar a liberdade conquistada, mas também, e de forma organizada, lutando contra o sistema escravista.

Existiram também diversos tipos de Quilombos, variando em sua forma de desenvolvimento e organização. Houve aqueles que se estabeleceram de fato como sociedades alternativas, que chegaram a abranger grandes contingentes populacionais, se estabelecendo como uma espécie de Estado paralelo, que praticaram uma economia interna que se opôs ao modelo colonial das grandes propriedades monoculturais escravistas – Plantation.

O maior exemplo deste tipo de Quilombo mais desenvolvido foi o de Palmares, que por sua dimensão e originalidade, merece ser analisado separadamente.

Mas, Quilombos com um grau similar de desenvolvimento seguiram aparecendo em todo o período colonial e imperial, especialmente nas regiões mais próximas da Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

Estes Quilombos significaram um módulo de resistência radical ao escravismo (MOURA, 2001), do ponto de vista da sua economia praticavam a posse coletiva da terra, o trabalho majoritariamente livre, em pequenas roças e realizando uma apropriação coletiva do excedente de produção. Tudo o oposto ao modelo de produção praticado nas grandes propriedades de terra dos senhores de escravos.

Existiram também Quilombos menos desenvolvidos, que não construíram economias mais complexas e não se estabeleciam de fato como sociedades alternativas. Estes não ocupavam de forma fixa uma mesma região, mas viviam em permanente conflito com as autoridades coloniais, a partir da prática de ataques pontais contra Engenhos e províncias, adotando uma tática de resistência muito similar a de uma guerrilha.

Porém, de uma forma ou de outra, a presença de Quilombos foi observada em todo território colonial: seja do extremo Norte Amazônico; até as regiões meridionais do Rio Grande do Sul; Praticamente em todo o Nordeste – com destaque para o entorno da Bahia e de Pernambuco; nas províncias que mais tarde seriam classificadas como Sudeste – Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo; e, ainda, em Goiás, entre outras regiões.

Se, por um lado, todo este amplo movimento de resistência dos negros escravizados não conseguiu efetivamente uma vitória no seu principal objetivo, o fim da escravidão – que só veio a ser abolida, tardiamente, no final do século XIX, a partir de uma medida da própria autoridade imperial – seria um equívoco não perceber e valorizar tanto a sua presença, como, principalmente, a influência marcante que exerceu no desgaste contínuo do sistema.

Durante os mais de três séculos de escravidão, verificamos um movimento da “Quilombagem”, um processo de desgaste permanente do sistema escravista.

De um modo geral, o Quilombo é visto como um ato de fuga do escravo, sem um projeto político ou uma configuração consciente dos objetivos estratégicos do seu papel como agente social. Se analisarmos do ponto de vista do comportamento de cada Quilombo isoladamente, isto poderá ser aceito. Mas, se analisarmos na sua totalidade o processo histórico da sua existência é que podemos ver como a Quilombagem se articula socialmente como arma permanente de negação do sistema. E o nega no centro do eixo mais importante para seu êxito: nas relações de trabalho entre o senhor e o escravo.” (MOURA, 2001).

Uma boa forma de verificarmos não só a presença efetiva, mas principalmente a importância da resistência dos negros escravizados, é avaliar a verdadeira “síndrome do medo” que ela exerceu sobre os senhores de engenho e a elite política colonial e, posteriormente, sobre a elite imperial.

A título de reflexão, certa vez, em tom irônico, perguntou Marcos José de Noronha e Brito, o Conde dos Arcos, Governador de Pernambuco e, posteriormente, Vice-Rei da Colônia:

E quem haverá que duvide que a desgraça tem poder de fraternizar os desgraçados?” (FREITAS, 1978).

No início do século XIX, a síndrome do medo, sofrida pelas elites brasileiras, se intensificou, principalmente a partir da vitoriosa revolução libertadora dos escravizados do Haiti, que simultaneamente acabaram com a escravidão, matando boa parte dos antigos senhores de escravos brancos, proclamaram a independência do país, construindo a primeira República negra e livre do nosso continente.

O chamado “Haitianismo” esteve presente muitas vezes no discurso político e ideológico da elite imperial brasileira, mas a sua origem vem de antes. Ele surge já no início da colonização, com o medo da elite colonial de uma revolta generalizada dos negros escravizados, especialmente depois do surgimento dos Quilombos e, sobretudo, do mais importante deles: o Quilombo dos Palmares.