Há quase meio século tombava na luta Carlos Marighella, o inimigo público número um da sanguinolenta ditadura militar, infame regime implantado no Brasil com o golpe de 1 de abril de 1964. Marighella nasceu em 05 de dezembro de 1911, na cidade de Salvador-BA, primogênito de uma prole de oito filhos. Seu pai era o ferreiro Augusto Marighella, imigrante italiano recém-chegado ao Brasil, enquanto que sua mãe se chamava Maria Rita, descendente de africanos haussás. Essa herança familiar e social o menino levaria para o resto da vida: a tradição secular de luta do povo brasileiro contra a opressão, vinda da mãe, e o ideal socialista internacional, emanado do pai.
Enquanto brincava e estudava pelas ruas de Salvador, Carlos entrava em contato com a sabedoria popular, com as injustiças e a prepotência dos poderosos da Bahia de todos os mandos e desmandos. Foi nesse contexto que iniciou sua militância em torno das causas políticas de seu tempo, no movimento estudantil e popular. Em 1932, por precocemente criticar em prosa e verso o então todo poderoso interventor Juracy Magalhães, conheceu pela primeira vez o inferno dos cárceres brasileiros ao ser preso. No ano seguinte entrou no Partido Comunista do Brasil, fato esse que alterou radicalmente sua existência.
Com isso teve que deixar pra trás o curso de Engenharia, os amigos e sua Salvador natal, isso depois dos acontecimentos que resultaram na fracassada tentativa de tomada do poder pelo partido em novembro de 1935. Por decisão também do partido passou a atuar no sul do país, inicialmente no Rio de Janeiro e, posteriormente, em São Paulo. Já no contexto da ditadura do Estado Novo foi preso por mais de uma vez, tendo sido submetido as mais brutais e variadas sessões de torturas e humilhações comandadas por Filinto Muller, o temido chefe da polícia política do regime varguista. Em todas essas ocasiões se comportou com bravura e honradez, traços esses marcantes de sua personalidade. O calvário de Marighella e muitos de seus companheiros de sofrimento nas masmorras do regime ditatorial só acabou com a anistia decretada por Vargas em abril de 1945.
Em liberdade ajudou a reorganizar o PCB, agora na legalidade, compondo sua direção nacional. Na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte foi eleito parlamentar pelo Estado da Bahia, sendo um dos mais ativos da bancada do partido na elaboração da Constituição de 1946. Nesse período em que foi deputado buscou articular as ações parlamentares com a luta extra-parlamentar das ruas, buscando organizar e dar vazão às demandas do povo pobre e da classe trabalhadora. Essa experiência durou pouco, pois o conservador governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra anulou o registro do partido e depois cassou o mandato de seus 15 parlamentares. Por outro lado, no mesmo ano em que teve seu mandato cassado, nasceu seu único filho, Carlos Augusto Marighella, em 22 de maio de 1948. Apesar da perseguição e do arbítrio, a classe dominante brasileira e seu Estado repressor não conseguiram barrar o ascenso das lutas sociais no Brasil dos anos 1950/1960, aquilo que posteriormente o historiador Jacob Gorender (também baiano e membro do PCB como Marighella naquela época) caracterizou como a maior mobilização popular da história do Brasil republicano. Apesar de todas as dificuldades imposta pela clandestinidade ou semi-clandestinidade, Marighella teve papel destacado como dirigente e organizador das massas naquela conjuntura, a exemplo de sua participação nos vários movimentos paredistas que pipocavam então, a como a greve dos 300 mil em São Paulo, processo esse que se intensificou e desaguou nos grandes embates do governo João Goulart e suas reformas de base.
Como sabemos hoje, esse impasse a que a luta de classes chegou no Brasil foi resolvido com um Golpe de Estado empreendido pelas elites dominantes, que contou com o aval do imperialismo norte-americano. Entre os dias 31 de março e 1 de abril de 1964 Carlos Marighella, que se encontrava no Rio de Janeiro, fez o que estava a seu alcance para resistir e derrotar os golpistas no calor da hora: fustigou a inércia do PCB e seu reboquismo politico; incitou as autoridades governamentais para que o chamado “dispositivo militar” fosse acionado e posto em ação contra as tropas de Minas Gerais comandadas pelo General Mourão Filho; entrou em contato com companheiros do movimento sindical, popular e estudantil para que a greve geral ganhasse as ruas; agitou, fez discursos em comícios relâmpagos, distribuiu panfletos que ele próprio redigiu etc. Com o triunfo das forças golpistas, não restou outra alternativa para Marighella que não tentar salvar a “própria pele”, ao deixar às pressas o apartamento em que morava no bairro do Catete, juntamente com sua então companheira Clara Charf, e mergulhar na incerta e cada vez mais difícil vida de comunista na clandestinidade. Porém, ainda inconformado com a derrota desmoralizante, Marighella não se deu por vencido e se recusou a entregar os pontos às forças golpistas momentaneamente triunfantes.
Nesse sentido, continuou buscando manter o moral e rearticular a resistência. Foi nessa condição que ele protagonizou um dos fatos mais emblemáticos da história da ditadura. Refiro-me ao episódio do cinema Eskye, na Tijuca, quando, em plena matinê do dia 09 de maio de 1964, Marighella foi surpreendido por um grupo de agentes do Dops. Mesmo com o recinto lotado de gente, inclusive muitas crianças, os policiais não pensaram duas vezes e atiraram à queima roupa no peito de Marighella. Este, mesmo desarmado e bastante ferido com os disparos, resistiu bravamente àquela prisão arbitrária e lutou enquanto pôde contra 14 milicos da polícia política da ditadura militar. Estes famosos acontecimentos serviram de matéria prima para Marighella escrever um conjunto de textos que reuniu e publicou no ano seguinte com o título de “Por que resisti à prisão”. Além de um verdadeiro libelo acusatório contra as arbitrariedades cometidas pela ditadura em seu nascedouro, esse importante livro também significou um dos primeiros balanços críticos acerca da derrota da classe trabalhadora e das forças populares com o triunfo do golpe de 1964 e a instalação da ditadura, por ele denominada de “militar e fascista”. Também ali aparece pela primeira vez (é verdade que ainda em esboço e no contexto mais ampla da resistência de massas contra a ditadura) algo que vai fazer a cabeça de Marighella e muitos de seus contemporâneos a partir de então: a questão da guerrilha e da luta armada contra a ditadura. É nesse contexto que ele intensifica a crítica e em 1967 rompe com o partido que militou por quase toda uma vida.
No ano seguinte resolve fundar a Ação Libertadora Nacional, uma das muitas organizações que participou de diversas ações na cidade para preparar a guerrilha no campo. Antes desse processo se completar, contudo, Marighella foi tragado pela morte. Depois de uma cilada armada pelos agentes da repressão, comandada por Sérgio Paranhos Fleury, chefe do esquadrão da morte e assassino de diversos oposicionistas do regime militar, Marighella foi fuzilado impiedosamente na Alameda Casa Branca, nas imediações do centro de São Paulo, na noite de 04 de novembro de 1969. Seu corpo foi enterrado às pressas, de forma clandestina e sob forte aparato das forças repressivas, em vala comum de um cemitério da capital paulista. Só em 1979, no contexto do relativo enfraquecimento da ditadura e da abertura política, seus restos mortais foram transladados para sua cidade natal e enterrados por familiares, companheiros e amigos no cemitério das Quintas. Em 1996 a Comissão de Mortos e Desaparecidos, instituída no governo FHC, desmontou oficialmente a farsa que a repressão montou em 1969 e reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro em sua morte. Esse processo formal se completou em 2012, já no governo Dilma, com a anistia post-morte e o pedido formal de desculpas à família.
Não é o caso de aqui fazer um balanço crítico da trajetória de Carlos Marighella, apontando com mais rigor os seus erros e acertos. Isso demandaria um texto muito mais denso e complexo, o que não é o caso destas modestas linhas que escrevo. De todo modo, faço minhas as palavras de Antonio Candido, grande crítico literário, professor e militante das causas socialistas no Brasil, que certa vez vaticinou sobre o nosso personagem: “Carlos Marighella deu sua vida pelos oprimidos, os excluídos, os sedentos de justiça. Ao fazê-lo, transcendeu a sua própria opção partidária e se projetou na posteridade como voz dos que não se conformam com a iniquidade social”. Hoje, a exemplo dos tempos sombrios que Marighella viveu e devotou sua causa, a classe trabalhadora e as forças populares e democráticas se veem diante de uma conjuntura bastante crítica. Afinal de contas, parte da população brasileira acabou de eleger um presidente que, dentre outros projetos abomináveis, defende o legado da mesma ditadura que assassinou Marighella e tantos outros lutadores do povo. Apesar das incertezas e temores, o momento presente também deve ser de unidade e coragem. Que o exemplo desse grande revolucionário e ser humano que foi Carlos Marighella nos ajude a sobreviver e seguir adiante na luta por um Brasil e um mundo melhor.
*Luciano Mendonça de Lima é historiador, comunista e militante das causas sociais e populares.
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