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EDITORIAL

Ofensiva contra as mulheres no Iraque

Por: Zahra Ali*, de New Jersey, EUA.

A invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003 conduziu ao aumento de poder de forças confessionais (1) e a uma ofensiva contra os direitos das mulheres. Delineiam-se tentativas de reforma da Lei do Estatuto Pessoal, verdadeira regressão em relação às conquistas da revolução de julho de 1958.

No dia 1º de novembro de 2017, uma reforma legislativa que contesta radicalmente os direitos das mulheres foi apresentada ao Parlamento iraquiano. A reforma consiste em uma série de emendas à Lei do Estatuto Pessoal (lei nº 188, de 1959), que regulamenta os direitos das mulheres em termos de casamento, divórcio, herança etc.

Essa proposição é reveladora do contexto atual, marcado pelo aumento do poder de forças sociais e religiosas conservadoras e por uma instabilidade política importante. Ela representa uma ruptura com a Lei do Estatuto Pessoal iraquiana adotada em 1959 que se baseia nas jurisprudências religiosas sunitas e xiitas. A Lei, tal qual existe, aplica-se a todos os muçulmanos, sunitas e xiitas, e permite, portanto, as uniões interconfessionais.

As emendas propostas tornam possível a introdução de leis baseadas em princípios religiosos como a lei “Jaafari” (2), dominante entre os xiitas do Iraque, segundo a qual o casamento de uma menina é permitido desde que ela tenha 9 anos, idade considerada como a da maturidade. Assim, trata-se de uma revisão fundamental da idade de casamento, fixada em 18 anos para os dois sexos.

Essa reforma abre a possibilidade de enfraquecimento da autoridade do juiz designado pelo Estado em benefício dos tribunais religiosos. Desde 2003, a abordagem transconfessional e não religiosa dos direitos pessoais já está enfraquecida pelas forças sociais e políticas que regem o país. Desde a invasão americana, o Iraque é dirigido pelos partidos islamitas xiitas conservadores, e as ruas do país são dominadas pelas milícias confessionais conservadoras que se impõem pela violência.

Tentativas recorrentes desde 2003
Desde os primeiros meses de ocupação pelos EUA, islamitas conservadores xiitas manifestaram a ideia, durante uma reunião do governo interino iraquiano em dezembro de 2003, de recompor a Lei do Estatuto Pessoal iraquiana sobre uma base comunitária, como no Líbano. Essa proposta – a primeira desde a instauração da República Iraquiana em 14 de julho de 1958 – era justificada por Abdel Aziz Al-Hakim, líder do Conselho Supremo Islâmico do Iraque, um dos principais partidos islamitas xiitas que chegou ao poder com as forças americanas, como uma expressão da liberdade de crença que, segundo ele, fora oprimida no antigo regime. Tratava-se, na realidade, da afirmação do caráter xiita da identidade iraquiana, reivindicada por um grupo comunitário e político que sofreu discriminações e repressão violenta do antigo regime. A Lei do Estatuto Pessoal – que corresponde à lei nº 188 elaborada em 1959 e regulamenta as questões privadas (casamento, herança, divórcio etc.), reunindo o essencial da legislação sobre os direitos das mulheres – não seria mais aplicada de maneira unificada a todos os cidadãos iraquianos. Um código específico para os xiitas seria acrescentado, oferecendo, assim, o direito a cada comunidade de reivindicar seu próprio código.

A proposição do líder do Conselho Supremo Islâmico do Iraque nunca foi aplicada, mas foi reiterada na forma do artigo 41 da Constituição adotada em 2005. Embora esse artigo esteja na Constituição, ainda não está sendo aplicado, de modo que a lei nº 188 continua vigente. Contudo, recentemente, no contexto das eleições parlamentares, Al-Fadhila, outro partido islamita xiita, reiterou sua solicitação de introduzir uma Lei do Estatuto Pessoal exclusivamente inspirada na jurisprudência jaafari.

Quando adotada, em 1959, a lei nº 188 representava um dos códigos mais progressistas da região em termos de direitos das mulheres. Ela fora obtida graças ao ativismo das feministas iraquianas, em especial as da Liga das Mulheres Iraquianas (al-Rabitah), cuja figura emblemática, Nazihay Al-Dulaymi, grande militante comunista e primeira ministra mulher árabe, participara da redação.

Naziha

Naziha Al-Dulaymi

Nazihay Jawdet Ashgah Al-Dulaimi
A Lei do Estatuto Pessoal concedia até mesmo uma igualdade parcial em relação à herança, o que era – e continua sendo – absolutamente inédito para um código que uma assembleia de ulemás sunitas e xiitas ajudou a elaborar conjuntamente com as autoridades iraquianas.

A primeira República iraquiana dirigida por Abdel Karim Kassem nascera em um contexto onde a cultura política dominante era a da esquerda anti-imperialista iraquiana, em especial do Partido Comunista, na qual organizações de mulheres eram muito ativas. A reforma da Lei do Estatuto Pessoal sugere, portanto, uma ruptura com essa herança unificadora nascida da luta contra o imperialismo britânico.

“Em nome da religião, fomos roubados por criminosos”
As militantes dos direitos das mulheres no Iraque, como a Iraqi Women Network, a Iraqi Women Journalists’ Forum e a Organization of Women’s Freedom in Iraq, denunciaram essa tentativa de reforma da lei do Estatuto Pessoal pelos partidos que têm em comum o fato de serem conservadores e comunitários. Elas consideram que essa lei, embora imperfeita – ela foi reformada em um sentido mais regressivo pelo regime de Saddam Hussein nos anos 1990 –, preserva a unidade dos iraquianos em termos de direitos pessoais, em particular por permitir os casamentos interconfessionais. Sobretudo, garante uma leitura relativamente igualitária dos direitos da mulher (divórcio, idade do casamento e restrição da poligamia). De modo geral, o povo iraquiano e o clero xiita se opõem a uma reforma confessional da lei do Estatuto Pessoal.

Diversas são as militantes feministas que participaram do movimento popular de contestação do regime pós-invasão lançado em 2015 pela sociedade civil. A partir da praça Tahrir, em Bagdá, e se estendendo por todo o país, esse movimento questionou novamente a base etnoconfessional do sistema político imposto pelos EUA em 2003. Os manifestantes denunciaram o confessionalismo, o nepotismo e a corrupção estrutural do novo regime. Com o slogan Bis mil din Baguna al-haramyah (“em nome da religião, nós fomos roubados por criminosos”), os militantes da sociedade civil denunciam a instrumentalização do religioso pela elite no poder e sua incompetência em responder às necessidades fundamentais da população iraquiana: segurança, acesso a água potável, eletricidade e resolução da crise do desemprego e da moradia.

As militantes pelos direitos das mulheres no Iraque desejam obter mais direitos para as mulheres, e não o questionamento da legislação existente. Elas insistem na necessidade do poder civil e articulam sua luta pela igualdade de gênero àquela por um Estado civil (dawla madaniyya). Para elas, a igualdade de gênero se imbrica com a igual cidadania de todas e todos, muçulmanos sunitas e xiitas, muçulmanos e cristãos.

Tradução: Daniele Cunha, de Porto Alegre (RS), em 06/08/2018

(*) Zahra Ali é socióloga e professora assistente na Rutgers University, em New Jersey. Seu livro Women and Gender in Iraq: Between Nation-Building and Fragmentation será lançado pela editora Cambridge University Press em 2018. Publicado originalmente no site ORIENTXXI, em novembro de 2017.

 

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NOTAS
1 – N de T.: O termo “confessional” refere-se ao atrelamento a uma religião. Neste texto, diz respeito à submissão da legislação a princípios religiosos do islã.
2 – Do nome do Imã xiita Jafar Al-Sadiq (702-765), fundador da primeira escola do Islã.

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