ABORTO E RACISMO INSTITUCIONAL: CRIME OU QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA?
De julho a setembro estaremos engajadas em um calendário de campanha pela legalização e descriminalização do aborto no Brasil. Queremos debater a realidade do aborto clandestino nos locais de trabalho e estudo, estaremos nas ruas em defesa da vida das mulheres e em Brasília nos dias 03 e 06 de agosto para travar um duro mas necessário debate. Trata-se da audiência pública no STF sobre a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 442, a ação que discute a descriminalização do aborto no Brasil até a 12º semana, ação ajuizada pelo PSOL. Em linhas gerais, a ação discute que a criminalização do aborto pelo Código Penal brasileiro de 1940 não se justifica, que a sua criminalização está em confronto com a Constituição Brasileira, que sua permanência é uma violação aos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação e uma violação dos direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar das mulheres brasileiras.
Travaremos um duro debate, que está apenas se iniciando, pelo direito à vida das mulheres, pelo reconhecimento de sua autonomia, pelos seus direitos reprodutivos e sexuais, e pelo reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, que o aborto é um grave problema de saúde pública e não um problema de penal.
É muito difícil falar sobre aborto. Para as mulheres, definitivamente, este não é um tema fácil. Elas não querem falar sobre o assunto, querem esquecer pelo que passaram. Apesar de todos os estereótipos e de todo o estigma que rondam o tema, as brasileiras que já abortaram são mulheres absolutamente comuns e muito próximas de nós.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), globalmente, entre 2010 e 2014 ocorreram mais de 25 milhões de abortos inseguros anualmente. Uma taxa alarmante que coloca o aborto como um problema de saúde pública que tem afetado a vida de milhares de mulheres pelo mundo. No entanto, a OMS chama a atenção para o fato de que a maioria dos abortos inseguros ocorreu em países em desenvolvimento, países pertencentes à África, Ásia e América Latina.
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) aos 40 anos uma a cada cinco mulheres no Brasil já realizaram pelo menos um aborto, isso significa, segundo a pesquisa, que o aborto é um evento reprodutivo frequente na vida das mulheres brasileiras. Quando falamos que essas mulheres são comuns, estamos querendo afirmar que são mulheres de todas as idades, casadas ou não casadas, mães ou não, pertencentes a todos os tipos de religião, das mais diversas classes sociais, etc (1). A PNA aponta que no Brasil, somente no ano de 2015, ocorreram pelo menos 503 mil abortos clandestinos. Considerando o fato de que o aborto é criminalizado no país e que os números são bastante subnotificados, esse número é bastante elevado e muito significativo.
Ao mesmo tempo em que as pesquisas apontam que o aborto no Brasil acontece em todas as classes sociais, demonstram também que essa realidade possui uma frequência maior na vida reprodutiva das mulheres negras e indígenas, mulheres essa com baixa escolaridade, baixa renda familiar e prioritariamente das regiões Norte e Nordeste do País (2).
Na vida das mulheres negras não acreditamos que isso seja fruto do acaso. Elas também são maioria nos índices de violência de gênero, na precarização do trabalho, nos subempregos, na informalidade, nos índices de pobreza, portanto são mulheres mais vulneráveis socialmente pelo racismo e pela sua condição de gênero. No Brasil a violência proporcionada pela desigualdade capitalista tem um peso histórico e brutal sobre essas mulheres, nos índices vitimização por aborto clandestino não poderia ser diferente.
O Estado criminaliza as mulheres que abortam no Brasil, garante cadeia ao invés de políticas públicas que possam, de fato, garantir amparo e segurança para essas mulheres, não enuncia a questão em seus desenhos de política institucional com educação sexual nas escolas, garantia de bons atendimentos no SUS, garantia real aos mais diversos tipos de métodos contraceptivos. Não se discute educação sexual nas escolas com seriedade, não há um compromisso real do Estado com essa discussão, e se resume os métodos contraceptivos às camisinhas nas campanhas para o carnaval. Usa-se, inclusive, um suposto conhecimento desses métodos por toda a população como desculpa para que as mulheres não possam abortar “o que não falta são formas para não engravidar, ela engravidou porque quis!” é o que se repete como senso comum. No entanto, a realidade é bem diferente.
A realidade mostra que existem barreiras reais entre conhecer e ter acesso a métodos contraceptivos (3), principalmente para a população mais pobre. Métodos como o DIU (Dispositivo Intrauterino), por exemplo, não são acessíveis a todas as mulheres (4). Os atendimentos na rede de saúde são precários, ainda há um tabu sobre o assunto quando as adolescentes procuram informações, e a contracepção de emergência ainda está longe de ser uma realidade para todas as usuárias do SUS. Além disso, todo e qualquer método contraceptivo está suscetível a falhas, mesmo que devidamente utilizados. Isso deveria ser óbvio, mas não é. Na prática é preferível para o Estado responsabilizar apenas as mulheres por uma gravidez indesejada e fechar os olhos para a precarização do atendimento.
Outro ponto em questão que deveria ser seriamente discutido é a responsabilidade sobre o planejamento familiar. Métodos como a pílula anticoncepcional, por exemplo, recaem exclusivamente sobre as mulheres. É muito comum que os homens se neguem a usar preservativos no momento da relação sexual, ou pior, que queiram se utilizar da gravidez como forma de prenderem suas parceiras em uma relação, isso é bastante comum em relacionamentos abusivos. Temos ainda os altos índices de estupro, a coerção e a intimidação das mulheres durante as relações sexuais. Existem, portanto, uma série de situações que levam uma mulher a uma gravidez indesejada que não está sob seu controle. Mas existe uma cultura machista que responsabiliza as mulheres pelo planejamento familiar e que não lhe garante escolhas reais sobre querer ou não ser mães.
PARA QUE SERVE A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL?
Essa é a pergunta que deveria ser a chave de todo o debate com relação a este tema. Ao abordarmos esse assunto não deveríamos começar pela pergunta “Você é a favor ou contra o aborto?” porque está não é a real discussão. A pergunta que deveríamos fazer para iniciar este debate é “Você é favorável que uma mulher seja presa por abortar?”. Se o Estado brasileiro não fornece condições mínimas para a garantia de um planejamento familiar, se não fornece saúde, educação sexual e não garante meios para que essas mulheres possam exercer de fato a maternidade, não tem o direito de prender, não tem o direito de responder com punição a um problema de saúde pública sob o qual ele também possui responsabilidade.
As mulheres brasileiras abortam e irão continuar abortando independente da proibição da legislação penal brasileira, essa não é uma afirmação retórica, é uma constatação empírica. Nesse sentido podemos afirmar tranquilamente que a criminalização do aborto no Brasil é absolutamente ineficaz, é uma sanção penal que não cumpre função alguma como norma punitiva.
E sabemos bem o alvo prioritário do sistema prisional brasileiro sobre negros/as, o encarceramento em massa no Brasil nos mostra essa realidade, esse é um sistema não só falido, mas que atua sobre a corporeidade da negritude, portanto não é através do sistema punitivo que vamos evitar o aborto. No entanto é a esse sistema que o Estado recorre para criminalizar as mulheres, se utiliza do exercício punitivo para dar conta de algo que a Organização Mundial da Saúde já reconhece como problema de saúde pública que vitima especialmente mulheres negras e pobres.
Então, se a punição do Estado não impede que as mulheres continuem abortando, se, pelo contrário, a criminalização expõe as mulheres ao risco de morte, a graves sequelas reprodutivas e as mais diversas formas de exposição física e psicológica, como se justifica que ainda se criminalize o aborto no Brasil? Poderíamos formular as mais variadas hipóteses, mas aqui é importante que se compreenda o seguinte: o Estado brasileiro faz coro com um discurso conservador e religioso de controle dos corpos femininos. Portanto, não se tem nenhuma preocupação real com a saúde das mulheres brasileiras. Aqui é nítido como é falacioso no Brasil o discurso sobre Estado laico. Quando o assunto é o aborto, o Estado brasileiro não é laico. Aliás, esse tema daria muito sobre o que se falar, porque a presença em nosso Congresso de uma bancada conservadora e religiosa, que, em nome de suas crenças pessoais, nega direitos às mulheres, aos negros/as e aos LGBTTs, tem mostrado que de laico o Estado brasileiro não tem nada.
Nesse sentido, estamos diante de algo bastante peculiar. Estamos diante de um Estado que, apesar de se dizer democrático de direito, expõe as mulheres a um tratamento desumano, degradante, que viola seu direito à vida, à saúde, a liberdade, a igualdade e ao planejamento familiar. Não é a toa que o lema da legalização do aborto nos movimentos feministas é “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal e seguro para não morrer!”. Porque para as mulheres essa é a real questão, a defesa do direito à vida das mulheres. Em todos os países onde o aborto foi legalizado aconteceram reduções reais de mortalidade materna em consequência de aborto inseguro, isso porque esses países compreenderam que a educação sexual, o acesso real a métodos contraceptivos, o amparo psicológico, a assistência social, e uma equipe de saúde preparada para amparar essas mulheres possuem muito mais eficácia sobre do que condená-las às prisões. O que as mulheres precisam é a maternidade não seja um fardo, uma obrigação, mas uma escolha absolutamente autônoma e livre.
NOTAS
1 – Pesquisa Nacional de Aborto, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232017000200653&script=sci_abstract&tlng=pt
2 – Idem
3 – A Saúde da mulher e a descriminalização do aborto
4 – Panorama da contracepção de emergência no Brasil, disponível em: http://www.cecinfo.org/custom-content/uploads/2016/12/versaofinal_completa.pdf
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